O Ministério Público resolutivo e a busca da Justiça Social

Oswaldo Gouveia Filho

Procurador de Justiça do Ministério Público de Pernambuco aposentado. Diretor Consultivo e Fiscal da Associação do Ministério Público de Pernambuco. Ex-repórter do jornal Correio da Manhã (RJ).

RESUMO

Trata-se de constatação da transformação de um mundo cada vez mais interligado impondo a existência de um Ministério Público resolutivo e agente na busca da Justiça Social, pela proeminência que é intrínseca aos seus princípios informadores, sem qualquer diversionismo que possa quedar a sua verticalidade e descaracterizar seu próprio objeto.

A resolutividade não pode ser submetida à alinhamento ideológico que não se ajuste à própria destinação. A busca da Justiça Social é parte integrante no exercício da cidadania, como prevê o Estado Democrático de Direito nas relações entre o Estado e o Cidadão.

Garantias não escasseiam à Instituição para exercer a propositividade. Elas vieram com a Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988.

A consolidação é papel de todos nós, seus membros, inclusive para evitar desvios autoritários que firam direitos coletivos. 

PALAVRAS-CHAVE: Justiça Social; Ministério Público Resolutivo; Democracia; Propositividade; Autoritarismo; Ancestralidade.

1 Introdução

O tema não poderia ser mais oportuno: o Ministério Público resolutivo e a busca da Justiça Social. Justamente no momento em que o mundo enfrenta grande conturbação social causada pela pandemia do Covid-19 e expõe, de maneira arrasadora, o desequilíbrio social em muitos países e, inescusavelmente, no Brasil, abrindo ao Ministério Público o dever de protagonizar a redescoberta de valores institucionais na persecução de um processo remoto e longo.

Dir-se-á que pandemias sempre existiram. É verdade. Perícles, político ateniense na Grécia de 429 a.C., foi uma das vítimas da epidemia que ficou conhecida “Praga de Atenas” – provavelmente um surto de tifo –, que dizimou cerca de um terço da população de Atenas.  Quando o navio inglês Demerara aportou no Rio de Janeiro, procedente de Lisboa, em 1918, trazia duas centenas de passageiros, entre tripulantes e marujos, muitos infectados, disseminando o que se convencionou chamar de gripe espanhola. 

Cabe neste espaço um registro importante. Na realidade, a gripe chamada de espanhola não nasceu na Espanha e sim nos estados do Kansas e de Nova York, Estados Unidos, e foi levada para Europa em 1918, atingindo aproximadamente um quarto da população mundial. Vale também destacar fatos de grande significado para cristãos católicos: as crianças Francisco e Jacinta, irmãos de Lúcia, que teriam tido em Portugal a antevisão de Nossa Senhora de Fátima, morreram da gripe. No Brasil o Presidente da República Rodrigues Alves morreu infectado antes de tomar posse.

2 Tempos modernos

Em sua obra Como a Democracia Chega ao Fim, o professor de política na Universidade de Cambridge David Runciman analisa como o sistema global está sinergizado em suas atividades – nas finanças, energia, comunicações e transporte – de forma incontrolada. Ele vaticina: “Uma pandemia pode se espalhar em todo o planeta em poucas horas, graças ao imenso volume de viagens aéreas”. O impressionante é que o livro foi editado em 2018. E o importante é que a profecia aconteceu nos anos subsequentes. 

Nesse contexto, ergue-se um Ministério Público forte, autônomo, coeso, engrandecido pela constituição de 1988 vendo-se catalizador de um movimento que a crise sanitária expôs e tornou visível à nação.

O Ministério Público, nessa fase, está substancialmente afastado de sua precessão, dos distantes procuradores de César responsáveis pela defesa dos múltiplos interesses do Império Romano, e dos tempos em que, pela primeira, vez se institucionalizou, no século XVIII, na França, nas Ordennance de Filipe, o Belo, através dos procuradores do rei, que era então o próprio Estado, em contraposição ao feudalismo. Era um processo que desaguaria na ascensão da burguesia revolucionária em 1789, que atribuiu ao Ministério Público maior amplitude, reconhecendo a independência da agora instituição capacitada para acompanhar e observar o cumprimento das leis.

No curso de sua história, o engrandecimento não se deu de forma linear. Ocorreram oscilações que poderiam ser melhor contextualizadas em temática própria. Hoje, o Ministério Público pouco teria a ver com o do período do Brasil colonial, quando seus membros poderiam ser demitidos ad nutum pelo imperador ou por presidentes das províncias e ainda ressoavam as Ordenações Afonsinas, as Ordenações Manuelinas e as Ordenações Filipinas, sendo que o promotor de justiça só seria referenciado nas Ordenações Manuelinas.

A partir de 1988, o Ministério Público tomou o dimensionamento que hoje se conhece. Autonomia financeira, administrativa, orçamentária e reconhecimento inarredável de unidade, independência e funcionalidade. Frutos da Constituição Cidadã, como a nominou o presidente do Poder Legislativo Constituinte, Ulisses Guimarães. Considere-se que tal estágio não foi concessão graciosa. Poderíamos até dizer que nasceu no início de 1980, no célebre encontro de Curitiba, quando Associações estaduais e nacional do Ministério Público (CONAMP) elaboraram documento que se tornou público como Carta de Curitiba.

O artigo 129 da Carta Magna vigente, com seus incisos e parágrafos que tratam das funções institucionais do Ministério Público, estabeleceram diretrizes que, bem observadas e aplicadas, obrigam a propositividade prevalente, que aliada à resolutividade dos seus membros, serão responsáveis por transformações profundas, inserindo estamentos sociais mais degradados na cadeia produtiva e no conjunto do tecido social, auferindo-lhes, consequentemente, as benesses do bem-estar social irrestritamente, na melhor perspectiva do direito natural, e no resguardo e incremento das políticas públicas das quais são destinatários.

2.1 O Dever da Propositividade

Ao Ministério Público, os tempos modernos impõem o dever da resolutividade, da coragem institucional, da determinação, e diria até mesmo o dever da propositividade entendida como resolução prévia, uma antecipação do próprio dever.

Os precedentes históricos existem. A Carta de São Francisco, de 26 de junho de 1945, resultado da Conferência iniciada em 25 de abril de 1945, com a consequente Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1949, levariam, no curso dos seus prenúncios, a uma conscientização mais abrangente do conjunto social na luta por mais inserções de direitos e prerrogativas humanísticas que justifiquem e atendam suas aspirações.

3 A democracia como objetivo

É claro que a democracia é o objetivo. Porém, para que a democracia seja estabelecida, é necessário que a dicotomia entre direitos pessoais e coletivos seja superada; isto é, que direitos de parcelas muito mais amplas da sociedade tenham prevalência sobre pretensões individuais, por mais que estas possam parecerem justas, voltando-se para a construção de uma sociedade multiétnica e verdadeiramente plural, o que, até agora, em qualquer tempo, não se conseguiu. Pois seria consequência de elevado grau de consciência cívica e acendrado espírito público, pondo-se fim a injustiças inomináveis.

O mundo vivencia momentos inquietos. A partir de tal constatação, eminentes pensadores das mais prestigiadas universidades lançaram sinais de alerta em defesa dos valores da democracia. Nas circunstâncias postas, com o surgimento das redes sociais, ao mesmo tempo que se dinamizaram e universalizaram as conexões interpessoais, quebrando o oligopólio dos meios tradicionais de difusão de notícias, por outro lado propiciou-se o aparecimento de populistas demagogos e autoritários, rompendo o círculo antes a eles vedado pelo convencionalismo estrutural e ordem estabelecida, o que se convencionou chamar de establisment. São os chamados outsiders. Sobre eles, Yascha Mounk, em seu livro O Povo Contra a Democracia, escreveu:

Em anos recentes, foram os populistas que exploraram melhor a nova tecnologia para solapar os elementos básicos da democracia liberal. Desimpedidos das coibições do antigo sistema midiático, estão preparados para fazer tudo que for necessário para serem eleitos, mentir, confundir e incitar o ódio contra os demais cidadãos.

Ora, muitos cientistas políticos concordam com Mounk ao afirmar também que “ao empoderar os outsiders, a tecnologia desestabilizou as elites governantes do mundo inteiro”. Verdade absoluta. Veja-se o que ocorreu nos Estados Unidos, na Hungria, na Polônia, na República Tcheca e outros países, inclusive no Brasil. 

4 Sinais de alerta

Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo no dia 10 de março de 2020 – portanto nos primórdios da pandemia –, Yasch Mounk advertia que “o distanciamento social é a única maneira de barrar o avanço do coronavírus”. Ainda não tínhamos vacinas. E o autor exemplificou com duas situações: “Na primeira Thomas B. Smith, prefeito de Filadelfia, autorizou uma parada em 28 de setembro; nos dias seguintes, 12.000 corpos se empilharam nos necrotérios. Em St. Louis, pelo contrário, o comissário Max Starkloff ignorou objeções de empresários influentes e fechou escolas, bares, cinemas e eventos esportivos. Graças às medidas ousadas e impopulares, o total de mortos foi metade do da Filadelfia”. Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência. 

Yasch Mounk demonstra imensa competência como professor na Universidade de Johns Hopkins. Doutorou-se em Harvard e seu livro é intensamente citado. Inclusive porque aborda questões relacionadas com a recente Nota Pública da CONAMP de 11 de março de 2021, no que tange aos ataques a instituições de Estado que não estão sob influência direta do governo populista. 

5 Ameaça do autoritarismo

Steven Levitsky e Daniel Ziblat, ambos renomados professores de Harvard e co-autores do livro Como as Democracias Morrem, manifestam profunda preocupação com o autoritarismo. Esses autores têm fundadas razões de externarem imensas reservas para com o momento atual, até porque muitos de seus estudos são baseados e lastreados no cientista político Juan Linz, nascido na Alemanha e que vivenciou a Guerra Civil Espanhola.

E foi na intensa observação de Linz que os autores estabeleceram quatro sinais de alerta para identificar o autoritário populista: 

1º – Rejeitam em palavras ou ações as regras do jogo democrático;

2º – Negam a legitimidade do oponente;

3º – Toleram e encorajam a violência;

4º – Dão indícios de disposição para restringir liberdade de oponentes, inclusive a mídia.

A realidade com a qual nos defrontamos justifica a apreensão dos autores. Na sua obra questionam a segurança da democracia americana, questionam os turbulentos anos 1930 na Europa, questionam os sucessivos golpes de Estado na América Latina que desestabilizaram democracias no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Chile, valendo-se de repressões militares deslegitimadas e opressoras.

Em excelente trabalho sobre a história dos EUA, Estas verdades: história da formação dos Estados Unidos, Jill Lepore, professora de história em Harvard e colaboradora da revista The New Yorker, faz uma exposição impressionante no livro considerado por Bill Gates como “o relato mais honesto, e mais bem escrito, que já li sobre a história dos Estados Unidos”. Diz a historiadora e professora que: 

[…] o curso da história é imprevisível, instável como o clima e errático como a afeição. Nações prosperam e naufragam por obra do capricho e do acaso, devastada pela violência, corrompidas pela ganância, usurpada pelos tiranos, pilhadas por velhacos e aturdidos por demagogos. 

Lepore se refere a todas as nações, cabendo a cada uma o estudo e aprofundamento das suas contradições internas, observadas as peculiaridades locais, para aplicar medidas preventivas de salvaguardas sociais e contenção de ações que objetivam supressão de garantias conquistadas, em eventual desencadeamento de processo de negação do sistema democrático e do ordenamento jurídico.

Anne Applebaum, jornalista e historiadora norte-americana, autora do livro O crepúsculo da democracia, teme pelo fim do regime. Embora o fenômeno seja mundial e visível em vários continentes, o Brasil, em plena pandemia, experimenta os efeitos desagregadores do negacionismo militante com repercussões desastrosas na saúde, na segurança, no meio ambiente e em outros setores do país, com impacto desgastante no conceito universal de Estado-Nação.

Como fica o Ministério Público em momento tão crucial? João Ubaldo Ribeiro, em sua obra Política, afirma que “somente através da consciência política podemos aspirar à plena dignidade humana e à integral condição de cidadão”. Essa pode ser a ideologia do Ministério Público.

Nas derradeiras páginas do livro, o festejado acadêmico fala que herdou do pai “bons conselhos não sistematizados que passa adiante”. São dez, todos bons. Prefiro destacar o primeiro: “Não seja tutelado. Não permita que as pessoas resolvam as coisas por você, por mais que o problema seja chato de enfrentar. Não finja que acredita em nada do que não acredita, não deixe que lhe imponham uma opinião que você está vendo que não pode ser sua”. 

6 A busca da justiça social

Esse é o tema. Diríamos que ela é incessante. O grande mestre Roberto Lyra, na fidelidade extrema ao devido processo legal, não admitia a pressão publicitária e muito menos a “pressão arbitrária e ruidosa na Justiça”. Repugnava-o a quebra da ordem jurídica e democrática, importando ao Ministério Público o dever da imparcialidade. Infelizmente equívocos têm sido cometidos, não à sorrelfa, mas estandartizados, abandonando-se o “dogma democrático da presunção de inocência”.

O Ministério Público não é estranho expectador dos fenômenos sociais. A Instituição tem obrigação de ser partícipe e ativista para conter desmandos, ocupando seu próprio espaço no espectro da sociedade. O espaço social a que me refiro é a plena exercitação do dever funcional com responsabilidade ética, sem submissão à pressão publicitária, e muito menos conivente com a estandartização dos procedimentos legais, situações que Roberto Lyra objetava por considerá-las a “negação da ordem jurídica e da ordem democrática”. Ao representante do Ministério Público cabe rejeitar tudo que é disfuncional, valorizar as suas ações com os instrumentos de órgão de Estado de que dispõe, e execrar organismos estranhos formados com fundos bilionários irreconhecíveis, inclusive do exterior. Por fim, não esqueçamos o que disse Roberto Lyra: “O Ministério Público é fiscal da lei e está submetido a imparcialidade”.

Ao visitar no Rio de Janeiro o brilhante advogado Yvan Senra Pessanha, após retorno de longo exílio no México, encontrei-o no escritório que pertencera ao professor Roberto Lyra, do qual fora assistente e então sucessor, situado na Rua Araújo Porto Alegre. Na ocasião, presenteou-me com o livro Direito dos Presos e o trabalho jurídico Criminologia e Folclore, ambos autografados e dedicados “ao companheiro de velhas batalhas”. No conteúdo dos trabalhos estavam expressos os compromissos do discípulo para com o mestre: “a prevenção geral e indireta da criminalidade compete à política social, com alcance, atual e local, sobre suas causas”. Era a fidelidade devotada a sociocracia preconizada pelo mestre.

7 Conclusão

É inquestionável a importância do Ministério Público, que se credencia incansavelmente na dinâmica de um mundo em transformação clamando por mudanças. As referências que historiadores, sociólogos, cientistas políticos e correntes de historiadores formadores de opinião fazem sobre o declínio da democracia são inquietantes.

De fato. A insurgência do populismo autoritário e reacionário exibe sinais claros de contestação antissistema e negacionismo absoluto dos padrões convencionais dos valores democráticos.

Portanto, emerge dessas razões a verdadeira motivação para se obstar que se materialize a ruptura das instituições, que tem tido conquistas e avanços, mas que precisam ser consolidadas. 

A sociedade organizada tem dado prova de que pretende se posicionar politicamente, com bravura, sem rancores e com tolerância, na busca da justiça social plena, irmanada com espírito resolutivo e propositivo do Ministério Público.

REFERÊNCIAS 

RUNCIMAN, David. Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia, 2018.

MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia. 

LEVITSKY, Steven; ZIBLAT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

APPLEBAUM, Anne. O crepúsculo da democracia: como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas em nome da política. Rio de Janeiro: Record, 2021.

RIBEIRO, João Ubaldo. Política. Objetiva, 2010.

LYRA, Roberto. Novo direito penal. 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 5 out. 1988.

CASTRO, Ruy. Metrópole à beira-mar: o Rio moderno dos anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

LEPORE, Jill. Estas verdades: a história da formação dos Estados Unidos. 

PESSANHA, Yvan Senra. Criminologia e folclore. 

PESSANHA, Yvan Senra. Direito dos presos.