O Ministério Público e o direito humano à saúde da pessoa privada de liberdade no sistema prisional

Irene Cardoso Sousa

48ª Promotora de Justiça Criminal da Capital, especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Piauí. E-mail: irenes@mppe.mp.br.

Júlio César Soares Lira

5º Promotor de Justiça Criminal de Petrolina/PE. Especialista em Direito Público pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) – Campus Juazeiro/BA, Professor de Direito Penal e Criminologia da mesma instituição. E-mail: juliol@mppe.mp.br.

 

RESUMO

O artigo aborda a necessidade de interação entre os membros do Ministério Público pernambucano para uma atuação mais eficiente relativa à consecução do Direito Humano à Saúde das pessoas privadas de liberdade que estão inseridas no sistema prisional estatal. Visa também analisar os marcos constitucionais e infraconstitucionais que determinam o regramento da assistência à saúde dos reeducandos, enfatizando a imprescindibilidade de cumprimento da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional, propondo, ao final, uma forma de atuação norteada na eficiência e eficácia.

Palavra-chave: Ministério Público; Atuação do Ministério Público na Defesa dos Direitos Humanos; Direito à Saúde; Execução Penal.

 

ABSTRACT

The article addresses the need for interaction among members of the Pernambuco Public Prosecutor’s Office for a more efficient performance regarding the achievement of the Human Right to Health of persons deprived of their liberty who are part of the state prison system. It also aims at analyzing the constitutional and infraconstitutional frameworks that determine the rule of health care for re-educators, emphasizing the imperative of compliance with the National Policy for Integral Attention to the Health of Persons Deprived of Liberty in the Prison System, proposing, in the end, a way of acting effectiveness.

Key-words: Public Ministry; Public Prosecution Service in the Defense of Human Rights; Right to Health; Criminal Execution.

 

1 Introdução

Trazemos neste artigo o espírito do compromisso firmado há 70 anos na Assembleia Geral das Nações Unidas, que, reunida em Paris, em 10 de dezembro de 1948, proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos:

como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição.

Inobstante o texto traga apenas referências a direitos humanos e fundamentais, elencar o direito à saúde como égide de um tratado internacional é trazer à tona uma garantia que até então não tinha esse enfoque, além do que a conceituação de saúde fez refletir que a abordagem ultrapassa a falta de doença e passa pela garantia de direitos a serem exercidos com garantias globais.

Assim, quando surgem diplomas legais como a Lei de Execuções Penais (LEP), é princípio norteador a garantia desses direitos básicos. Nesse diapasão o art. 14 da LEP é preciso quando assegura que o preso e o internado terão assistência à saúde, seja no próprio estabelecimento penal, quando estiver aparelhado para prover tal assistência, seja em outro estabelecimento, quando, por evidente, não existirem condições na unidade prisional. A LEP garante o acompanhamento médico à mulher, inclusive, no pré-natal e no pós-parto, como também ao recém-nascido.

Porém, não obstante o mandamento legal, não é desconhecido de ninguém, mesmo para aqueles membros do MPPE que não trabalham diretamente com a execução da pena, notadamente a privativa de liberdade, que nossas cadeias públicas, presídios, penitenciárias não possuem espaços físicos condizentes com a dignidade da pessoa humana, nem recursos materiais e humanos suficientes para assistência à saúde, à educação, religiosa e social[1], como também não possibilita a garantia de todos os direitos elencados no art. 41 da LEP.

No dizer de Zaffaroni[2]:

A prisão ou cadeia é uma instituição que se comporta como uma verdadeira máquina deteriorante: gera uma patologia cuja principal característica é a regressão, o que não é difícil de explicar. O preso ou o prisioneiro é levado a condições de vida que nada têm a ver com as de um adulto: é privada de tudo que o adulto faz ou deve fazer usualmente e com limitações que o adulto não conhece (fumar, beber, ver televisão, comunicar-se por telefone, receber ou enviar correspondência, manter relações sexuais etc.). É também ferido em sua autoestima de todas as formas imagináveis, pela perda da privacidade, de seu próprio espaço e submissões a revistas degradantes. A isso, juntam-se as condições deficientes de quase todas as prisões: superlotação, alimentação paupérrima, falta de higiene e assistência sanitária etc., sem contar as discriminações em relação à capacidade de pagar por alojamentos e comodidades. O efeito da prisão, que se denomina prisionização, sem dúvida é deteriorante e submerge a pessoa numa “cultura de cadeia”, distinta da vida do adulto em liberdade.

Pois bem, diante dessa constatação, urge também que o Ministério Público pernambucano cumpra o seu mister, buscando promover a garantia aos direitos fundamentais do preso, que, por certo, não são alcançados pelos efeitos da sentença penal condenatória, notadamente quanto ao direito à saúde, conscientizando, primeiro, os próprios membros do parquet pernambucano da necessidade de se importar com a dignidade do recluso ou internado; e, logo em seguida, se dispondo a buscar a concretização da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP).

O que se propõe, portanto, é apresentar um modelo que possibilite aos membros do Ministério Público que tenham ou não (cabe também aos promotores de Justiça Criminais em face dos presos provisórios) atribuições na execução penal de garantir, de forma efetiva e eficiente, o direito à saúde ao preso e ao internado que estejam sob a égide do sistema prisional, buscando, assim, cumprir a legislação pertinente.

Demonstrar, ainda, que a amplitude legal do papel do Ministério Público no âmbito da execução da pena o permite tomar para si o protagonismo de garantir a assistência à saúde do recluso.

Buscar-se-á, destarte, apresentar uma proposta para que os promotores de Justiça possam dar efetividade a um direito tão primário para a dignidade do preso, procurando acabar com o hiato existente entre a legislação e a realidade nua e crua observada em quase todos os Estados do nosso País, onde o próprio Estado, as instituições e a própria sociedade negligenciam, não se importam, com o que ocorre intramuros das masmorras, apelidadas de presídios ou penitenciárias.

Almeja-se aqui que as propostas lançadas, adaptadas à realidade do nosso Estado de Pernambuco, possam servir para que a Procuradoria-Geral de Justiça, a Corregedoria-Geral do Ministério Público, com o apoio do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça Criminais (CAOPCrim) e do Grupo de Atuação Especial da Execução Penal (GAEP), promovam e fomentem o cumprimento da legislação pertinente, proporcionando aos promotores de Justiça que assumam o protagonismo da garantia da assistência à saúde do preso e do internado, o que, certamente, contribuirá para humanizar o cumprimento da pena privativa de liberdade e, em última análise, de maneira decisiva, na reintegração social do reeducando.

 

2 Do papel do Ministério Público na Execução Penal

O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis[3].

Para tal mister importa ressaltar que o Ministério Público possui uma atividade fiscalizadora em toda a sua atividade funcional, quer na esfera civil, quer na esfera penal. Sempre que estiver envolvido numa relação jurídica litigiosa, em um conflito de interesses, uma norma de ordem pública ou um direito indisponível, irrenunciável, impõe-se a função fiscalizadora do parquet. Porém, para fiscalizar, o Ministério Público poder requerer e então passa a ser, diretamente, parte processual, ou pode intervir. Renan Severo Teixeira da Cunha, apud Julio Fabbrini Mirabete[4], afirma que “pouco importa que para essa fiscalização vista as roupagens de parte requerente ou de órgão interveniente; sempre será órgão fiscalizador, com todas as consequências dessa atividade”.

Com relação à função fiscalizadora do Órgão Ministerial na Execução Penal, consoante a disposição do art. 67 da LEP, “o Ministério Público fiscalizará a execução da pena e da medida de segurança, oficiando no processo executivo e nos incidentes de execução”. Cabe inferir, então, que se lhe incumbe atuar em todo o processo executivo, isto é, desde o início do cumprimento da pena – art. 195 da LEP[5] – até seu final, com a consequente extinção da punibilidade do sentenciado.

Na lição de Mirabete[6]:

…Confere-se ao parquet a função de promover a observância do direito objetivo, atuando imparcialmente na verificação dos requisitos legais para o estrito cumprimento do título executivo penal. Como na execução penal entra em jogo um interesse público primário, que envolve um direito irrenunciável do condenado (status libertatis), é possível que se estabeleça uma situação em que se pretenda, como interesse público secundário, alterar ou mesmo extinguir os limites traçados no título executório. Nem sempre o interesse da Administração com os interesses genéricos e maiores de toda a coletividade, devendo o Ministério Público defender estes, orientando sua fiscalização para que se perfaça a exata aplicação da lei penal, processual e de execução penal.

E arremata o festejado autor:

A função fiscalizadora do Ministério Público não poderia ser executada se não se lhe dessem os meios para essa atividade fundamental. Assim, como corolário do disposto no art. 67, deve o órgão ser intimado de todas as decisões exaradas no curso do processo executivo, quer sejam jurisdicionais, quer sejam administrativas. Na primeira hipótese, cabe-lhe ainda opinar previamente, requerer e recorrer das decisões do juiz. Na segunda, pode valer-se dos meios processuais previstos na lei de execução, principalmente o procedimento judicial para apurar excesso ou desvio, representar às autoridades administrativas superiores contra ato abusivo de qualquer funcionário e requisitar providências da Administração Pública quando necessário.

Podemos, assim, divisar duas possibilidades de intervenção ministerial na execução da pena, sendo a primeira relativa à possibilidade de requerer deliberações judiciais relacionadas à concessão ou revogação de benefícios, instauração de incidentes, conversões e quaisquer outras providências que digam respeito ao desenvolvimento do processo executivo; e a segunda no sentido de intervir, mediante manifestações, em relação a situações que se materializam no processo de execução criminal que decorrem de pretensões do próprio apenado ou do seu defensor, como também, a partir de intervenções do conselho da comunidade, do pronunciamento do Conselho Penitenciário, de provocações ex officio do juiz da execução, entre outras.

Além da disposição genérica trazida no art. 67 da LEP em vários outros dispositivos da Lei de Execução Penal se reclama expressamente a necessidade de intervenção do Órgão do Ministério Público, previamente ao pronunciamento judicial. São casos de expressa determinação da LEP, por exemplo, a progressão de regime prisional (art. 112, § 1º, da LEP), da saída temporária (art. 123 da LEP), da remição (art. 126, § 8º, da LEP) e extinção da medida de segurança em face da cessação da periculosidade (art. 175, III, da LEP).

A ausência de manifestação do Ministério Público em todas as fases relativas à execução da pena, conforme consolidada jurisprudência, é causa de nulidade absoluta.

Temos ainda as disposições do art. 68 da LEP, que trazem uma série de atribuições do Ministério Público, em um rol que é meramente exemplificativo, abrangendo situações que, inclusive, já estariam previstas no próprio art. 67, em razão da sua amplitude genérica, considerando-se até desnecessário descrever as hipóteses daquele artigo da Lei de Execução Penal.

É possível concluir-se, então, que as funções do membro do Ministério Público no campo das Execuções Penais são mais amplas que aquelas que os próprios dispositivos legais da LEP enumeram, posto que está autorizado, inclusive pela natureza intrínseca do seu mister de defensor dos interesses primários da sociedade, a atuar nas questões não judicializadas da execução da pena, como é o caso de induzir as políticas públicas de assistência à saúde das pessoas privadas de liberdade inseridas no sistema prisional.

 

3 Do papel do Ministério Público na assistência à saúde das pessoas privadas de liberdade no Sistema Prisional

A fiscalização do Ministério Público nas execuções penais dá-se, portanto, de duas formas distintas: uma é o velamento da execução da pena em si e das medidas de segurança (oficiando no processo executivo e nos incidentes de execução); o outro é o acompanhamento nas condições de cumprimento dessa pena, principalmente de aspectos verificados na visita mensal obrigatória. O enfoque nesse último caso é a tutela coletiva de saúde, na conformidade da Resolução RES-CPJ 001/2002, publicada no Diário Oficial do Estado de Pernambuco do dia 22 de fevereiro de 2002.

Constituem direitos do preso: a alimentação suficiente, o vestuário, a assistência material à saúde, conforme art. 41, I e VII, da Lei n. 7.210/84, Lei de Execução Penal. A garantia ao direito à assistência material e à saúde das pessoas em privação de liberdade (PPL) consiste no fornecimento pelo Estado de alimentação, da manutenção das instalações higiênicas, além do atendimento médico, farmacêutico e odontológico preventivo e curativo, disposição dos artigos 12 a 14 da Lei n. 7.210/84.

O artigo 196 da Constituição Federal assevera que: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário as ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Tal preceito é complementado pela Lei n. 8.080/90, que estabelece princípios e diretrizes para a saúde em nosso País, em seu artigo 2º: “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”.

Mediante a criação do SUS pela supracitada lei, estabeleceu-se uma divisão de tarefas no que tange ao fornecimento de ações de saúde, assistência e vigilância, de maneira que o sistema básico de saúde fica a cargo dos municípios (ações, vigilância e medicamentos básicos), o fornecimento de ações de média e alta complexidade e a garantia de qualidade compete aos Estados federados e ao Distrito Federal, e a regulamentação especial compete à União. A lei indica, indubitavelmente, a composição de um sistema único, que segue uma diretriz clara de descentralização, com direção única para cada esfera de governo.

Nesse âmbito, foram definidos os papéis das esferas governamentais na busca da saúde, considerando-se o município como o responsável imediato pelo atendimento das necessidades básicas de assistência, vigilância e monitoramento, o Estado como responsável pela atenção às necessidades especiais, as de caráter hospitalar e o controle da qualidade destas ações.

Com o intuito de garantir o direito constitucional à saúde e o acesso com equidade, integralidade e universalidade e organizar as ações e serviços de saúde dentro dos estabelecimentos penais, o Estado de Pernambuco aderiu à nova Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) mediante Portaria nº 2.274, de 17 de outubro de 2014. O SUS estadual deve colaborar com a Vigilância Sanitária local em todos os aspectos que seja requerido e é o titular de responsabilidades pela reforma e adequação das áreas de interesse para a saúde nas unidades prisionais pernambucanas.

 

4 Da assistência à saúde. Da atenção básica à saúde. Da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional

Em 2003 foi criado o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP), pelo qual as ações e serviços de saúde ficaram sob a responsabilidade do Ministério da Saúde e do Ministério da Justiça. À época, o sistema prisional adotava uma postura que caminhava em direção contrária aos princípios de saúde, que constam na inserção do paciente no SUS para tratamento de saúde no território. Essa saída do SUS transferiu para as secretarias de ressocialização dos Estados a responsabilidade de contratar profissionais e até de fazer exames. Tal prática inviabiliza o verdadeiro sentido da saúde, que não é só tratar doença, mas inclusive preveni-las; ações fortemente realizadas no SUS, que possui por princípio esta forma de trabalho. Quando a saúde de uma prisão fica a cargo de uma secretaria de ressocialização, que não tem prática na área de saúde, as ações, geralmente, são apenas na cura da doença, que não é mais sinônimo de saúde. Hoje as práticas preventivas são realizadas apenas em campanhas nacionais, como a vacinação contra a gripe, ficando o presídio fora das ações preventivas do município no qual está localizado.

As políticas públicas do Ministério da Saúde voltadas para a população privada de liberdade têm passado por inovações. Em 2014, foi publicada a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), com o objetivo de garantir o acesso das pessoas privadas de liberdade no sistema prisional ao cuidado integral do Sistema Único de Saúde, ou seja, no território da atenção básica.

Hoje, a principal missão do Ministério Público de Execução Penal é fazer a discussão do retorno do preso ao SUS. Em Pernambuco, há de se avaliar os motivos pelos quais a SERES ainda detém toda a estrutura de saúde do sistema prisional, avaliar as responsabilidades e autonomia da secretária de saúde estadual, assim como os processos de municipalização, e, em conjunto, abrir procedimento específico para acompanhar o retorno das unidades prisionais para o SUS. O Ministério da Saúde deposita a verba na conta da Secretaria Estadual de Saúde, que a transfere para a SERES e esta executa a saúde no sistema prisional, num jogo de transferência de responsabilidade em que o principal perdedor é o preso que é atendido na rede SUS como alguém fora do sistema.

 

5 Da proposta para a atuação eficaz e eficiente do Ministério Público na garantia do direito à assistência à saúde

Para entender melhor a complexidade da necessidade de atuação do Ministério Público na área de saúde numa unidade prisional, elencaremos algumas situações demandadas na promotoria de execução penal. A primeira refere-se à garantia do objetivo-geral da PNAISP, que é o acesso das pessoas privadas de liberdade no sistema prisional ao cuidado integral no SUS. O promotor de Execução Penal também pode atuar em questões específicas, como a fiscalização constante da equipe mínima, conforme preconizado na Portaria n. 482 de 1º de abril de 2014, que institui normas para a operacionalização da PNAISP, no âmbito do SUS.

Quanto aos profissionais que atuam na área da saúde, dentro desse programa, não poderemos remeter para o patrimônio público exigindo concurso porque é peculiar e transitório a saúde como responsabilidade da SERES. Segue mais uma explicação indispensável. Conforme salientado acima, em 2004, foi transferida a responsabilidade da saúde no sistema prisional do Ministério da Saúde, através do SUS, para o Ministério da Justiça, no âmbito estadual para a SERES. Em 2014, depois de constatada a falta de estrutura de uma Secretaria de Justiça para atender a demandas de médico, enfermeiro, remédios, rotinas das mais diversas, houve a tentativa de retorno para o âmbito do SUS, o que já não era tão simples. Para que um município receba um novo encargo há de aceitar pactuar, e hoje é extremamente difícil um gestor aceitar administrar a saúde de uma unidade prisional, sequer aceita a prisão no seu território quanto mais prover a saúde. Então, apenas um município no Estado de Pernambuco pactuou, Canhotinho.

E hoje a saúde está num limbo entre Estado e município, pois o Estado faz repasse fundo a fundo para a SERES. Os problemas maiores são de pagamento de pessoal, pois a SERES não tem competência para pagar a mais como compensação por algumas funções como, por exemplo, farmacêutico. Outra forma de remuneração teria como ser feita por uma Secretaria Estadual de Saúde, e isso trava o trabalho por conta da rotatividade de pessoal que hoje acontece nos presídios. Não se pode exigir concurso para a área de saúde porque não é vocação da SERES contratar médicos ou outros profissionais, além do que o plano é de retorno para o município da gestão da saúde, estando provisoriamente na SERES. A Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco em 2018 assumiu a compra e distribuição de remédios, eis que já possuía rede e formas de compras apropriadas e inseriu as unidades prisionais, depois de uma crise terrível de abastecimento de medicamentos nos presídios e cadeias, causando diversos prejuízos em PPL que faziam uso continuado de medicações controladas, mister os com transtornos mentais. A SSE mantém também alguns profissionais, que estão em cada enfermaria, para manter o diálogo entre âmbito estadual e municipal, além de interferir com algumas especialidades, como foi em 2017 a contratação, a pedido do MP, de um médico infectologista que assumiu várias unidades como forma de controle de doenças infectocontagiosas que estavam se alastrando. São algumas soluções pontuais que foram surgindo. Sobre esse fato foi encaminhado à promotoria de saúde da capital o pedido de intervenção junto à Secretaria de Saúde para que fizesse uma sensibilização aos municípios no sentido de pactuar a gestão da saúde nas unidades prisionais. Alguns ajudam informalmente, como é o caso de Abreu e Lima, município onde está localizado o COTEL, que contribui com alguns insumos e medicamentos. Hoje a equipe, na maioria das unidades, está completa, urge explicar que esse acompanhamento é constante porque por vezes um profissional desligado demora a ser reposto. Até porque os baixos salários não são atrativos para um profissional atuar em uma unidade de difícil acesso.

Mais um exemplo é o acompanhamento da divisão das origens de contratação dos profissionais do setor psicossocial. Não é fácil visualizar numa unidade prisional qual assistente social é contratado com verba da saúde para trabalhar na saúde e qual é contratado para trabalhar na unidade fazendo serviço social exigido pela Lei de Execução Penal. Não havia diferença, causando uma preocupação principalmente para não haver desvio de função. Há que se entender essas equipes, suas necessidades, seu trabalho e sua missão dentro de uma unidade prisional, há necessidade de perquirir sobre um concurso público para área do psicossocial que não tenha demanda específica na saúde. Conforme preconiza a Lei de Execução Penal e o art. 45 do código Penitenciário do Estado de Pernambuco, que exige a equipe multiprofissional para fins de ressocialização e classificação do reeducando. Também há uma enorme a luta para assistente social e psicólogo não ficar fazendo carteirinha de visitação de preso, pois essa função é administrativa e caracterizaria desvio de função. Toda a fiscalização quanto a esse tema é foco do Ministério Público, que acredita na força desse profissional para ajudar na ressocialização e aproximação do PPL da família e da sociedade.

Por trás de uma notícia de fato em que a companheira de um PPL informava que tinha supostamente sofrido maus tratos pelos agentes penitenciários no hospital quando em visita ao seu companheiro que estava em custódia hospitalar há vários desdobramentos. Como funcionava a custódia hospitalar? Quem as fazia? Essa custódia por agentes plantonistas era em prejuízo dos poucos destinados ao plantão do dia na unidade prisional? A regulação dessa custódia hospitalar estava a cargo de que setor na SERES? Quem da família teria acesso ao PPL dentro do hospital enquanto estivesse custodiado? Após a internação para cirurgia esse PPL voltava várias vezes para ser internado, porque essa pessoa era mais tendente a estar sempre internado, como prevenir esses eternos retornos?  Tudo desdobrado através de uma notícia de fato que, se tratada individualmente, não teria utilidade para a execução penal. Essa perspectiva demonstra a importância do enfoque desse trabalho no âmbito do Ministério Público de Pernambuco.

Outro problema bastante comum na rotina carcerária é a dificuldade no comparecimento a consultas por falta de escolta, em razão do reduzido número de agentes penitenciários. Entender a questão da custódia hospitalar revela um esforço hercúleo para atender o acesso à saúde de 32 mil presos no Estado, pois para cada PPL internado são destinados 4 agentes penitenciários por dia, além do motorista que faz o transporte dos agentes na troca de plantões, e todos eram, até 2016, destacados do plantão da unidade, restando hiperdefasada a segurança da unidade com menos agentes disponíveis. O MP cobrou a implementação de central de custódia hospitalar, em que o agente penitenciário não seria deslocado do plantão de nenhuma unidade quando houvesse necessidade de custódia.

Foi verificada também a necessidade de padronização dos laudos médicos, que eram feitos à mão pelos médicos, muitas vezes ilegíveis, o que dificultava a análise de pedido de prisão domiciliar, além do que não eram diretos quanto à análise da gravidade da doença, único aspecto legal que era analisado pelo Ministério Público para dar parecer sobre o pedido da defesa. Além disso, os pedidos vinham sem o parecer do diretor da unidade, o que fazia demorar a análise do pedido acarretando mais escoltas e mais custódia hospitalar quando fosse o caso de uma prisão domiciliar. Além da necessidade de urgência na análise da demanda pelo judiciário nos casos que envolvessem problemas de saúde.

Outra grande questão é o tratamento de tuberculose no sistema prisional, pois ocasionalmente ocorrem surto nas unidades. Para um promotor de Justiça Criminal entender o que é um GENEXPERT, o que é uma busca ativa, porquê a necessidade de tomada de medicamento assistido e do isolamento e porquê um local que tem mais de 3000 pessoas pode ser um enorme risco caso haja um surto de tuberculose, porquê essas pessoas recebem visitas que voltam para sociedade e participam do nosso cotidiano demonstrando que em tema de sistema carcerário não existe mais lá dentro, todos se comunicam. Ademais alguns PPL são presos provisórios e circulam nos fóruns nos dias de audiência, e por fim, são cidadãos com direito à saúde.

A superlotação nos presídios, penitenciárias e cadeias prejudica o tratamento de doenças de pele, infectocontagiosas e marcação de consultas.

Em relação aos presos provisórios que necessitem de Prisão Domiciliar, faz-se necessário um diálogo permanente com os diversos promotores de centrais de inquérito e criminais, para que nesse contato direto sejam percebidas as práticas e rotinas de saúde das unidades prisionais e principalmente suas deficiências, pois, por exemplo, um preso que necessite de três hemodiálises de quatro horas por semana, demandaria para o sistema pelo menos dois agentes penitenciários e um motorista para essa custódia hospitalar rotineira. Promover um diálogo efetivo em todo o Ministério Público faria o promotor de Justiça criminal ter no promotor de execução um referencial para a decisão dessa prisão domiciliar, pois na maioria dos casos os presídios localizam-se em área muito distante dos fóruns.

Também é necessária a comunicação para entre os promotores criminais e a promotoria de saúde da comarca para fomentar a discussão do acompanhamento das unidades prisionais pelo SUS.

 

6 Conclusão

O fim precípuo desse artigo, destarte, foi o de demonstrar que há necessidade de que o Ministério Público de Pernambuco concretize o direito à saúde da pessoa privada de liberdade no sistema prisional, fazendo cumprir a legislação pertinente.

Demonstrou-se que a maneira de se lograr êxito no desiderato proposto é a interação de ações entre a Procuradoria-Geral de Justiça, a Corregedoria Geral do Ministério Público, a Escola Superior do Ministério Público (ESMP), o CAOPCrim, o CAOP Saúde, o GAEP, e, ainda, contando com o apoio e colaboração das Promotorias de Justiça Criminais, das Promotorias de Justiça de Execução Penal e das Promotorias de Justiça de Cidadania (Curadoria dos Direitos Humanos e Curadoria da Saúde). Cada órgão, evidentemente, dentro das suas respectivas esferas de atribuição, a quem cabe encetar ingentes esforços no sentido de assumir o protagonismo da garantia ao direito fundamental à saúde das pessoas privadas de liberdade no âmbito do sistema prisional.

O Ministério Público pernambucano, com o propósito de priorizar essas ações, deverá inserir a efetivação do direito à saúde das pessoas privadas de liberdade no sistema prisional no seu planejamento estratégico, estabelecendo plano de ação e metas para a consecução do objetivo estratégico de fazer cumprir a legislação pertinente.

O Ministério Público pernambucano implementará ações coordenadas e sistematizadas tendentes a garantir o direito à saúde da pessoa privada de liberdade no sistema prisional, por meio de realização de seminários, palestras, audiências públicas, etc., para sensibilizar os seus membros sobre a importância de garantir desse direito fundamental, visando o cumprimento das diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

 

REFERÊNCIAS

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SILVA, Ricardo Augusto Dias da. Direito Fundamental à Saúde – O dilema entre o mínimo existencial e a reserva do possível. Belo Horizonte. Fórum.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Editora Revan, 5ª edição.

[1]              Art. 11, da Lei 7.210/84.

[2]              Zaffaroni, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas. Ed. Revan. 5ª Edição. p. 135/136.

[3]              Art. 127, caput, da CF/88.

[4]              MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. Editora Atlas. 11ª Edição. p. 227.

[5]              Art. 195. O procedimento judicial iniciar-se-á de ofício, a requerimento do Ministério Público, do interessado, de quem o represente, de seu cônjuge, parente ou descendente, mediante proposta do Conselho Penitenciário, ou, ainda, da autoridade administrativa.

[6]              MIRABETE. Julio Fabbrini. Ob. Cit. p. 227/228.