O efeito “Pôncio Pilatos” da decisão do STJ sobre a autorização formal do morador para o ingresso da polícia em residência

ANDRÉA KARLA REINALDO DE SOUZA QUEIROZ

Promotora de Justiça há 21 anos. Titular da 6ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania da Capital. Atual Coordenadora das Promotorias de Justiça da Infância e Juventude da Capital, sendo eleita pela segunda vez. Pós-graduada pela Escola Superior da Magistratura de Pernambuco (ESMAPE). Pós-graduada em Tutela Judicial do Meio Ambiente pela SAPERE AUDE e Faculdade Salesiana do Nordeste. Especialização, de longa duração, na Área da Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes pela Universidade de São Paulo (USP).

RESUMO

O presente estudo e reflexão crítica objetiva fomentar a discussão acerca da decisão da 6ª turma do Superior Tribunal de Justiça, quanto à formalização da autorização do morador/investigado para ingresso de policiais em sua residência. É preciso enxergar nesse cenário para além do aparente benefício para a lisura dos meios empregados para obtenção das provas. A decisão, ao instrumentalizar a forma dessa autorização do morador, afasta possível questionamento da defesa quanto à lisura dessas provas, bem como abre espaço, fora do Poder Judiciário, para buscas e apreensões que, na prática, não passarão pela liturgia do processo penal, onde as garantias legais não podem ser relativizadas.

PALAVRAS-CHAVE: Garantias legais; Provas ilícitas; Busca e apreensão; Autorização morador; Prerrogativas; Abuso de autoridade. 

 

A truculência das abordagens policiais é tema recorrente no cotidiano de muitos brasileiros que vivem em comunidades carentes. Se essa truculência não é materializada, via de regra, em bairros “nobres”, a notícia de sua existência não é desconhecida de ninguém, sendo rotineiramente divulgadas pela imprensa.

Não quero aqui jogar “pedra” na instituição Polícia, que tem indiscutível importância na sociedade, mas objetivo fomentar a discussão quanto à atuação de maus policiais que, ao agirem em nome do Estado, ultrapassam a linha tênue entre a legalidade e a ilegalidade durante as abordagens, ferindo de morte as garantias legais da pessoa. 

Recentemente (02/04), a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, seguindo o voto do relator, ministro Rogério Schietti Cruz, concedeu habeas corpus requerido pela Defensoria Pública de São Paulo, para anular prova obtida durante uma invasão à residência do investigado, que negou ter dado a necessária autorização para ingresso dos policiais, culminando na sua absolvição. O relator citou como precedente o julgamento, pelo STF, do RE 603.616, que decidiu que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em razões concretas, devidamente justificadas posteriormente, que indiquem que dentro da casa ocorria situação de flagrante delito. 

Chamo a atenção aqui para o fato de que o morador sempre pôde autorizar a polícia ou qualquer pessoa a entrar em sua residência. A recente decisão, porém, fará surgir prova material “incontroversa” dessa “autorização”. A intenção dos julgadores deve ter sido boa, mas, na prática, sugere que o Poder Judiciário “lave as mãos” para as incursões policiais que continuarão acontecendo, só que desta vez revestidas de “legalidade”, que dificultarão os posteriores questionamentos por parte da defesa.

Na prática, é como se os policiais pudessem expedir seus próprios mandados de busca e apreensão, antes, e só por lei, restritos ao Poder Judiciário, com prévia manifestação do Ministério Público, com toda observância à liturgia processual.

Não sejamos ingênuos! Os maus policiais, que já não respeitavam as garantias legais, também não o farão agora. 

É coerente, verossímil, que alguém, flagrado em via pública portando droga, para fins de tráfico, levaria a polícia até a sua residência, espontaneamente, para entregar o restante das drogas? Pois esta é a versão apresentada por policiais, constantes de vários procedimentos que envolvem apreensão de drogas em residências. 

Não devemos esquecer, nunca, do direito constitucional à inviolabilidade do domicílio, que está consagrado no art. 5º, inciso XI da Constituição Federal:

A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por ordem judicial.

Aqui vale um questionamento: se a própria ordem judicial só poderá ser cumprida durante o dia, será que a autorização do morador servirá para o dia e a noite?

E se for período noturno, quando os moradores já estejam recolhidos, é legítimo que policiais determinem que venham atendê-los?

Penso que não, de acordo com o §1o, inciso III do art. 22 da Lei de Abuso de Autoridade, que tipifica a conduta do agente público que cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco horas). A entrada, em qualquer horário, para fins penais, só é permitida em flagrante delito. Ora, mas para isso não precisa de decisão judicial, posto que firmados na Carta Magna. 

Apesar da preocupação externada na decisão do STJ – determinando que toda a operação seja gravada, inclusive o ato de autorização –, quem poderá garantir o que aconteceu nos momentos que precederam à gravação? 

Como preocupação de possíveis ilegalidades, foi concedido prazo de um ano pelo STJ para que a polícia se equipe, com meios próprios, para garantir a lisura das provas obtidas nessas circunstâncias, resguardando tanto a atuação dos policiais, como a da pessoa investigada. 

Para os bons agentes públicos, nada disso seria preciso. Já para os maus, tudo isso não será suficiente. A partir do conhecimento empírico, adquirido ao longo de muitos anos de atuação na persecução penal, surge essa inquietação, recordando nas tantas vezes em que as circunstâncias lavradas nos documentos policiais não traziam harmonia com o bojo das demais provas do processo. 

Sem dúvida, situações como as mencionadas, levadas aos Tribunais através de justos recursos, fez surgir a preocupação e necessidade de estreitar, ao máximo, as chances de lesão às garantias legais da pessoa. 

Tem-se ouvido muitas críticas ao julgado, só que no sentido contrário às reflexões aqui trazidas. Na verdade, há um grande questionamento social quanto à exigência da autorização formal a ser fornecida pelo morador, criticando o fato de que à polícia fora imposta dificuldade, enquanto que ao investigado fora concedida facilidade.

Não. Em nenhum momento a decisão tolheu a autorização constitucional de ingresso da polícia para os casos de flagrante delito. Essa hipótese tem previsão constitucional e independe de decisão judicial.

Porém, há de se reconhecer que mera suspeita não configura situação de flagrância que leve à invasão de um domicílio. A meu ver, além de o próprio morador, o Poder Judiciário é o único detentor da permissão legal para ingressos em domicílios, cuja decisão deverá ser robustamente fundamentada, a partir de fortes indícios apresentados pelos investigadores, para as hipóteses previstas no art. 240, §1o do Código de Processo Penal.

Um cidadão, esteja ele errado ou não, diante de um aparato policial, sempre estará em situação de vulnerabilidade. Não há paridade de armas. 

A reflexão trazida intenciona provocar um olhar crítico acerca da grande possibilidade que foi aberta de afastar, na prática, do Poder Judiciário a apreciação de lesão ou ameaça a direito, nos termos do inciso XXXV do art. 5o da CF, já que, depois de assinada a autorização e gravada a operação (ou parte dela), pouco ou nada haverá a ser questionado. A decisão, igualmente, afasta do Poder Judiciário (juiz natural), a competência de autorizar ou não a entrada da polícia no domicílio alheio. Ora, será muito mais fácil para alguns investigadores obterem a “autorização” do morador que submeter o pedido ao rito processual adequado.

Não podemos retroceder nas garantias já conquistadas. 

Cabe ao representante Ministerial, bem como aos demais atores jurídicos, ao analisar os autos de um processo, redobrarem a atenção quando esse tipo de autorização tiver sido “concedida”, confrontando as provas colhidas anteriormente com as provas produzidas judicialmente, filtrando cada detalhe e informação, formando uma espécie de rede protetora das garantias legais. Porque a ninguém interessa um processo julgado a partir de provas ilícitas.

O Estado Democrático de Direito deve ser fiscalizado pelo Ministério Público, guardião da Constituição Federal, pelo Poder Judiciário, Defensoria Pública, Ordem dos Advogados do Brasil e demais cidadãos.

REFERÊNCIAS 

BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-lei Nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em:  HYPERLINK “http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm”http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em: 29 mai. 2021. 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 5 out. 1988.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. 

Lei de Abuso de Autoridade: –  HYPERLINK “http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13869.htm”http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13869.htm