Neurolinguística forense no tribunal do júri: interface com ouvintes, surdos e intérpretes de libras

Fernando Della Latta Camargo

Membro do Ministério Público do Estado de Pernambuco, titular na 4ª Promotoria de Justiça Criminal de Petrolina/PE (atribuição no Tribunal do Júri). Pós-graduado em Direito Ambiental pela PUC/SP.

RESUMO

Partindo da transversalidade da neurolinguística como estudo das relações entre o cérebro humano e a capacidade linguística, o recorte do trabalho recai na aquisição, processamento e exteriorização da linguagem como forma de aperfeiçoamento de membros do Ministério Público brasileiro e interlocução e intérpretes da Língua Brasileira de Sinais (Libras). Com efeito, as demandas de atuação dos intérpretes de Libras cresceram por força da inclusão da pessoa surda no âmbito do Poder Judiciário, assim como o reconhecimento da autonomia das pessoas com referida deficiência sensorial para a prática dos atos da vida civil. Destarte, a neurolinguística forense funciona como importante canal de comunicação harmoniosa entre ouvintes, surdos e intérpretes de Libras nos diversos contextos da sessão do Tribunal do Júri.

Palavras-chave: Neurolinguística; Libras; Surdo; Inclusão; Júri.

1 Introdução

No campo do processo penal, a pesquisa judicial imparcial de natureza retrospectiva recai sobre fatos e materiais probatórios propostos pelos sujeitos processuais e exige a observância de um arcabouço normativo bem-estruturado e demarcado pela divisão de funções.

Tendo em vista esse quadro, a legislação pátria atribuiu ao acusador o poder-dever (nas ações de iniciativa privada o ônus é do ofendido) de impulsionar o Estado-Juiz e o ônus da prova sobre os fatos alegados. Ao réu, por sua vez, a oportunidade de resistência, pessoalmente, se habilitado ou por meio do patrocínio da defesa técnica (pública ou particular). Ao juiz, isento, o poder – potesta puniendi – (Pinheiro, 2010) de dirimir a controvérsia, aplicando o Direito e procurando a concretização da Justiça (Boschi, 2008).

Dito isso, importa registrar que passados anos nos bancos universitários, não é tarefa complexa entender que operadores do Direito não são formados para o enfrentamento das dificuldades inerentes ao pano de fundo oriundo do homem envolvido na demanda. Aliás, como bem alertado por Bonfim (2018), constata-se presente geração de profissionais jurídicos sedimentada no habitual tecnicismo espelhado no trinômio lei, doutrina e jurisprudência, o que do ponto de vista epistemológico indica baixa qualidade contemporânea de serviços prestados no ambiente forense.

Logo, extrai-se como incontrastável a falta de realismo entre aquilo que desliza desde cedo no imaginário dos acadêmicos de Direito, meros espectadores de aulas práticas de processo penal e atos solenes (audiências e plenários do tribunal júri), quando cotejadas com complexas interações processuais da vida profissional, influenciadas pelo fator humano e estratégico em cada atividade, quiçá na seara do tribunal popular, espaço de convencimento e busca de confirmação de validade do discurso pelos julgadores (Bittencourt, 2018).

Como se vê, sem embargo da necessária e urgente contribuição de ciências como a psicologia jurídica criminal, a criminologia, a vitimologia, a antropologia criminal, a perícia criminal, a psiquiatria forense, a sociologia criminal, a estatística criminal etc., atualmente relegadas ao segundo escalão na formação das presentes e futuras gerações de cultores do Direito, desponta a neurolinguística forense com instrumental capaz de sinalizar importantes avanços na busca da verdade subjacente ao processo.

2 Prognose e propósito

O estudo da neurolinguística forense é tarefa complexa e passível de críticas e qualquer que seja a vertente do operador jurídico ao decidir utilizá-la como mecanismo de trabalho, certamente ocupará tempo de estudo e reflexão sobre a estruturação de pilares relacionados à psique humana e a consequente influência direta ou indireta sobre a extensão e profundidade do depoimento prestado durante o desenvolvimento do processo.

Partindo disso, a neurolinguística compreende a análise das relações entre o cérebro humano e a capacidade linguística, com destaque à apreensão da linguagem, decodificação interna e exteriorização por meio de sons, símbolos e gestos (Bolque, 2016). De igual modo, a neurolinguística consubstancia o estudo das interações cerebrais que possibilitam a compreensão, produção e conhecimento abstrato da língua, tanto nas hipóteses normais, como naqueles cenários de distúrbios clínicos causadores de alteração nos mecanismos sensoriais adrede referenciados.

Como técnica multidisciplinar, a neurolinguística é dotada de valores próprios e sua abordagem no campo processual penal funciona como pedra angular da realidade externa ilustrada pelo delito e por todas as suas circunstâncias. Outrossim, o mecanismo neurolinguístico é capaz de proporcionar o entendimento a respeito da existência do fluxo representacional da realidade, iniciado a partir do fato e relacionado de forma interativa com cérebro humano da vítima, da testemunha ou do acusado, organizando a forma de processamento e transmissão do dado de informação durante a audiência de instrução processual.

De acordo com esse paradigma (Bear; Connors e Paradiso, 2008), a neurolinguística trabalha com vetores de identificação da realidade, uma vez que a linguagem espelha um sistema de sons, símbolos e gestos utilizados para a comunicação.

Dessa forma, com ressalvas aos cenários de afasias, por exemplo, a informação chega ao encéfalo por meio do sistema visual, auditivo ou sinestésico, ao passo que o esquema motor produz o discurso falado, a escrita e/ou gestual.

Assim, pondera-se que, ao processo de agregação de novos paradigmas de produção probatória no processo penal, a neurolinguística contempla o método de experiências vivenciadas no conteúdo da declaração da vítima, do depoimento da testemunha ou no próprio interrogatório do réu; portanto, consciências representativas da realidade e não a realidade propriamente dita, como um tabuleiro representativo de um território, porém não revela a área territorial propriamente dita.

Tendo como base esses pressupostos, argumenta-se a possibilidade de aferição, a partir da declaração das experiências vivenciadas no caso concreto que a vítima, a testemunha e o acusado possam realizar comportamentos previamente internalizados e destinados à produção de efeitos no processo, consoante à adoção de sistemas de omissões, generalizações, distorções, crenças, memórias e valores, de forma isolada ou concomitantemente considerados com o escopo de conferir a travessia via canais cerebrais a respeito daquilo que viu, escutou ou sentiu.

Na prática, o exercitor do Direito e das técnicas neurolinguísticas poderá examinar quando indivíduo intenciona uma reação positiva ou negativa do ponto de vista conclusivo. Em outros termos, ao mentir, omitir, revelar, distorcer ou generalizar uma informação, a pessoa provoca uma alteração real na base fático-jurídica de modo perceptível fisiologicamente pelo observador, na forma de reações como alegria, tristeza, aversão (asco), raiva, desprezo ou surpresa (Craig, 2013). É o caso, por exemplo, da testemunha que afirma em juízo nada saber sobre o assassinato da vítima, todavia, na verdade tem receio de o réu causar-lhe mal futuro e grave e, por conta dessa realidade, ingressa no estado anímico de autoproteção.

A respeito, tem-se que, na sucessão encadeada de atos tendentes a pesquisar, descobrir e reconstruir uma realidade fática, aspectos como o registro sensorial, a atenção e a memória atuam como marcadores de influência no conhecimento da verdade a ser materializada nos autos do processo.

Nesse trilhar, o desenvolvimento da neurolinguística forense nos programas de aperfeiçoamento funcional de membros do Ministério Público brasileiro traz consigo instrumental capaz de lançar luzes na escuridão das imperfeições humanas com a finalidade de subsidiar decisões judiciais substancialmente justas.

3 Da construção do conceito de pessoa com deficiência

Pautado em axiomas civilizatórios nacionais e internacionais de direitos humanos, criados a partir do abandono da ideia da pessoa com deficiência qualificada como conceito de natureza médica, o trabalho do hermeneuta perpassa, segundo o norte interpretativo do preâmbulo da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, para o estágio atual de conceito em evolução, definido na interação entre indivíduos com deficiência e as barreiras atitudinais impeditivas da plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade. O propósito de aludido diploma internacional foi assegurar a promoção, declaração e efetivo exercício liberdades humanas fundamentais.

Em suma, o art. 1º da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas e seu Protocolo Facultativo dispõem que pessoas com deficiência são aquelas que apresentam impedimentos de longo prazo de cunho físico, mental, intelectual ou sensorial, perenes, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade, em bases iguais com as demais pessoas.

3.1 Acessibilidade: destinatários dos serviços públicos prestados pelo Ministério Público brasileiro

Em território nacional, não podemos olvidar que, segundo dados do Censo do IBGE de 2010, o público estimado de pessoas com alguma espécie e grau de deficiência girava em torno de 24% (vinte e quatro por cento) da população, dados correspondentes à ordem de 46 milhões de pessoas, excluídas aquelas com deficiência intelectual.

Na linha preconizada por (Neto, 2021), falar de acessibilidade é considerar uma mudança de ótica, pautada na tradicional inserção de uma barra; uma rampa de acesso ao cinema, uma janela de intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras) durante o pronunciamento de uma autoridade pública em rede de comunicação, por exemplo e sem dúvidas direitos fundamentais respaldados no sistema de substituição para uma mudança de compreensão sobre acessibilidade como verdadeira viragem cultural, cimentada no sistema de apoio integrativo de exercício da capacidade jurídica do indivíduo com deficiência.

E não poderia ser diferente, pois importantes inovações despontaram da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, internalizada no ordenamento jurídico nacional em 2009 (Decreto nº 6.949/2009), assim como da Lei Federal n.º 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência), fontes formais para o intérprete visualizar a situação deficiência quando da avaliação biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar.

Vê-se então que, ao manejar novos parâmetros (art. 2º, §1º, I a IV da Lei n.º 13.146/2015), o lidador jurídico certamente evitará a chamada proteção deficiente de direitos fundamentais, outrora sedimentada no vetusto e monocular modelo biomédico da lesão como causadora de barreiras.

Em outras palavras, sob o cenário médico, considerado a aferição da lesão e da patologia do indivíduo como indicadores da falta de capacidade da pessoa para atos da vida civil, a intervenção do operador do Direito, seja na forma resolutiva, seja pelo manejo da via judicial, restará caracterizada pela abordagem segundo o modelo de tutela assistencialista de substituição e não de apoio ao sujeito de direitos.

3.2 Ministério Público inclusivo não é ação de caridade

A preservação da independência, autonomia e não discriminação de titulares de direitos fundamentais, disciplinada nos arts. 4º e 5º, da Convenção Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e arts. 4º e 5º da Lei Brasileira de Inclusão, residem na preocupação estampada no art. 5º, §2º, da CF/1988, uma vez que seu texto consagra o seguinte mandamento:

os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Dessa forma, é possível identificar substancial evolução quando cotejado o anterior sistema jurídico, configurado como de substituição de pessoas e o vigente sistema jurídico de apoio, ainda que se possa cogitar a incidência de cognição diminuta da pessoa com deficiência, forte no princípio universal de acessibilidade como razão de tratamento em bases iguais entre pessoas e devotado ao modelo inclusivo constitucional.

Diante do contexto de uma sociedade ainda tibiosa na concretização de valores fundamentais referentes ao ciclo vital existencial da pessoa com deficiência, emerge do poder-dever do Ministério Público, instituição de garantia do bem comum, ações como prestador de serviços informativos e promovente de soluções negociadas entre os poderes públicos, notadamente diante da pluralidade de cenários situacionais envolvendo sujeitos de direitos com deficiência, in casu, auditiva, e suas interações com as barreiras do mundo fenomênico.

Impende registrar, em arremate, o escólio de Muniz (2018) ao pontificar:

[…] somente com o exercício contínuo da cidadania, tal qualquer outra virtude, é que ela pode se aperfeiçoar, arraigado na cultura popular não só do conhecimento de seus direitos, e como exercê-los, mas também de seus deveres, em especial aqueles inerentes à cidadania, como o alistamento militar, o exercício do sufrágio e as convocações para o exercício da função eleitoral.

3.3 Teoria das Incapacidades do Código Civil de 2002: Reflexos no artigo 436 do Código de Processo Penal

Como não poderia deixar de ser, o legislador infraconstitucional pátrio, atendendo aos movimentos de direitos humanos iniciados como corolário da Segunda Guerra Mundial – sobretudo pelo reconhecimento da dignidade como pilar da liberdade, da justiça, da paz e da igualdade de todos – editou a Lei n.º 13.146/2015, espécie normativa propulsora de importantes modificações nos artigos 3º e 4º do Código Civil (Lei n.º 10.406/2002), a ponto de considerar como absolutamente incapazes para os atos da vida civil apenas os menores de 16  anos, sendo as demais hipóteses tratadas como incapacidade relativa ou por critério de exclusão, as demais hipóteses como capacidade plena.

Nessa senda legislativa, segundo aflora do sistema jurídico de apoio previsto no art. 6º da Lei n.º 13.146/2015, a deficiência, em si mesma, não tem aptidão para desfigurar a plena capacidade civil da pessoa. Aliás, nesse caminho, a tônica da proteção social restou direcionada para incidência de dois fluxos de apoio.

O primeiro, oportunizado de forma indireta, mediante a tomada de decisão apoiada, processo segundo o qual o indivíduo com deficiência elege pelo menos duas pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade, valendo a decisão tomada por pessoa apoiada nos limites do apoio acordado, produzindo efeitos para terceiros, nos termos do artigo 1783, §4º do CC.

O segundo, por sua vez, de apoio direto, encontra respaldo no art. 2º, §1º, I a IV, da Lei nº 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão), ao contemplar a acessibilidade em todas as suas formas como elemento declaratório do exercício pleno das condições pessoais e/ou sociais a serem identificadas segundo o modelo biopsicossocial de avaliação concreta e ampla por equipe multiprofissional e interdisciplinar.

Isso significa dizer que, a análise do índice de funcionalidade é deflagrada a partir da constatação da sociedade como causadora das falhas atitudinais, estruturais e culturais causadoras das barreiras que não permitem o livre desenvolvimento das capacidades da pessoa com deficiência, e não o contrário.

Esse tratamento, outrora incongruente e caracterizado pela exclusão da pessoa surda como julgadora no Júri, merece interpretação conforme a Constituição Federal. Nesse particular, e sem distinção entre ouvintes e surdos, Silva (2018) propõe uma reflexão ao afirmar que “os jurados são marinheiros em busca de compreensão”. Dessarte, a justificativa do presente trabalho encontra ressonância de duas ordens, igualmente importantes: a uma, oriunda do empirismo de nove anos como Promotor de Justiça atuante no Tribunal do Júri e umbilicalmente atrelado à noção da do parágrafo único do art. 1º da CF como fundamento de validade do órgão Poder Judiciário, todavia, reflexo do tratamento do surdo como cifra invisível junto ao Cenáculo Popular.

Esse estado de ineficiência do sistema de justiça brasileiro denota a conveniente vedação do recrutamento do surdo como pretenso integrante da lista anual de jurados do Tribunal do Júri e consequente ausência à sessão popular de julgamento do crime doloso contra a vida. É importante gizar que, ainda que ocorresse a seleção da pessoa com deficiência auditiva, encontraríamos desalentadora omissão na acessibilidade comunicacional, dada a não implementado por profissionais intérpretes da Libras.

Entrementes, o horizonte posto mostra a face vetusta da teoria da incapacidade civil internalizada por bacharéis em Direito egressos das academias jurídicas anteriormente ao advento do Código Civil de 2002, assim como operadores jurídicos habilitados na primeira década de vigência da atual norma geral de natureza civil.

Destarte, um dos grandes méritos do Estatuto da Pessoa com Deficiência foi lançar luzes sobre o art. 436 do CPP, uma vez que sua redação não faz alusão a qualquer reserva legal ao alistamento ao serviço do júri aos cidadãos ouvintes, maiores de 18 anos de notória idoneidade, ou seja, aptidão moral.

De acordo com Cunha (2017), o art. 436 do Estatuto Processual Penal pontua duas formalidades de ordem objetiva para o exercício da função de jurado: ser cidadão (brasileiro nato ou naturalizado) e contar com mais de 18 anos de idade. A par dos requisitos objetivos, a lei processual penal destaca uma cláusula subjetiva definida como notória idoneidade, moralmente aferida mediante pesquisa de antecedentes nos Cartórios da Infância e Juventude e Cartórios Criminais.

Aliás, a esse respeito, acrescente-se a lição de Farias (2018), pois o fundamento humanista do Estatuto da Cidadania salta aos olhos para revisitação do art. 436, do CPP frente ao urgente estágio de observação das barreiras como deficiência da sociedade e não pelo simples fato do indivíduo com deficiência auditiva apresentar algum prejuízo funcional.

No Brasil, obstáculos de ordem administrativa costumam funcionar como espaço de conveniência argumentativa ensejadora de proteção deficiente direitos fundamentais, materializada a exemplo de falta de articulação prévia do Poder Judiciário com institutos, associações ou entidades congêneres para o encaminhamento de ofícios e recrutamento de pessoas com deficiência auditiva, imprescindível atitude inclusiva.

Outra importante vertente, sem muito esforço empírico, reside na afirmação que o Poder Judiciário insiste em fazer ouvidos moucos sobre fundamentais conquistas dos surdos, conforme inteligência do artigo 17 da Lei nº 10.098/2000:

O Poder Público promoverá a eliminação de barreiras de comunicação e estabelecerá mecanismos e alternativas técnicas que tornem acessíveis os sistemas de comunicação e sinalização às pessoas portadoras de deficiência sensorial e com dificuldades de comunicação, para garantir-lhes o direito de acesso à informação, à comunicação, ao trabalho, à educação, ao transporte, à cultura, ao esporte e ao lazer.

No mesmo sentido, o próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elencou no art. 2º, III, d, e VII, ambos da Resolução nº 230/2016:

III – “barreiras” significa qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros, classificadas em:

[…]

d) “barreiras de comunicações e na informação”; qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação.

VII – “comunicação” significa forma de interação dos cidadãos que abrange, entre outras opções, as línguas, inclusive a Língua Brasileira de Sinais (Libras), a visualização de textos, o Braille, o sistema de sinalização ou de comunicação tátil, os caracteres ampliados, os dispositivos multimídia, assim como a linguagem simples, escrita e oral, os sistemas auditivos e os meios de voz digitalizados e os modos, meios e formatos aumentativos e alternativos de comunicação, incluindo as tecnologias da informação e das comunicações.

Na doutrina abalizada, Campos (2014) e Rangel (2018) argumentam que a pessoa alfabetizada com deficiência auditiva possa exercer o dever como jurado do Tribunal do Júri, ressalvada a interpretação por profissional habilitado na Língua Brasileira de Sinais (Libras).

4 O papel do intérprete de Libras na sessão do Tribunal do Júri

A discussão, hodierna, sobre a inclusão do surdo como jurado no Tribunal do Júri passa muito mais pela inconsistência nas ações positivas no horizonte da acessibilidade comunicacional e atitudinal como falta de estrutura administrativa (concurso público, cadastro de profissionais intérpretes de Libras à disposição do órgão jurisdicional, por exemplo) e menos quando suscitado argumento da eventual vedação legislativa ou ainda da concepção da oralidade (voz/escuta) atinente aos trabalhos dos sujeitos processuais no transcorrer do plenário do Tribunal do Júri e votação do veredicto na sala especial.

Na história, o papel desempenhado por intérpretes de Libras remonta ao século XVIII e às lições do Abade Charles Michel de L’eppé (1712-1789), chegando oficialmente ao Brasil em 1857, sob os auspícios do imperador Dom Pedro II, fundador da primeira escola para surdos do país, local denominado Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES (França, 2018).

Com o advento da Lei n.º 10.436/2002, a Língua Brasileira de Sinais (Libras) foi reconhecida como idioma oficial, com elementos gramaticais e orais próprios, fundamento legal da emancipação da língua e cultura surda (Reckelberg, 2018), diferenciando-se pela catalogação de palavras orais/auditivas concretizadas em sinais elaborados com o manuseio das mãos e expressões faciais, variáveis de acordo com a cultura local.

Ocorre que, na concepção original, a língua brasileira de sinais consubstanciava-se em gestos utilizados por surdos residentes em território nacional, todavia, amparados nos elementais da língua francesa de sinais, ao passo que, na forma contemporânea, a lei vigente confere ao intérprete o significado dado à comunicação, conforme preceitua o art. 112, IX, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, in verbis:

comunicação: forma de interação dos cidadãos que abrange, dentre outras opções, as línguas, inclusive a Língua Brasileira de Sinais (Libras), a visualização de textos, o Braille, o sistema de sinalização ou de comunicação tátil, os caracteres ampliados, os dispositivos multimídia, assim como a linguagem simples, escrita e oral, os sistemas auditivos e os meios de voz digitalizados e os modos, meios e formatos aumentativos e alternativos de comunicação, incluindo as tecnologias da informação e das comunicações.

Por essa percepção, na hipótese de a presidência da sessão do Júri constatar que a pessoa com deficiência auditiva ocupa posição jurídica de vítima, testemunha ou acusado, deve assegurar acessibilidade comunicacional por meio de intérprete de Libras, para fins de colheita da narrativa do indivíduo a respeito do que souber referente ao fato tipificado como proibido pela legislação penal vigente.

De igual modo, durante o julgamento, velará o órgão jurisdicional pela presença do profissional intérpretes de Libras, mediante atuação como auxiliar do juízo, nos moldes do art. 275 do CPP, consectário do sistema de apoio direto no regular desenvolvimento do julgamento integrado por jurado surdo.

5 Protocolo de atuação da Promotoria do Júri de Petrolina/PE: Relato de experiência com surdos e intérpretes de Libras

No dia 25 de julho de 2019, na cidade de Petrolina/PE), como etapa de desenvolvimento do Projeto Jurado Surdo (Camargo, 2018), a 4ª Promotoria de Justiça Criminal, em parceria com o Núcleo de Acessibilidade e Inclusão da Universidade Federal do Vale do São Francisco (NAI/UNIVASF), Associação de Surdos de Petrolina (ASP), Central de Libras (CIL) de Petrolina/PE, promoveu sessão simulada do júri. A iniciativa contou com integrantes da comunidade na composição do Conselho de Sentença, oportunidade em que foram sorteados quatro indivíduos surdos e três pessoas ouvintes, julgamento testemunhado por expressivo comparecimento da sociedade e veiculação na imprensa.

Durante a sessão plenária do júri, foram observadas as balizas legais preconizadas na legislação processual penal (arts.436/497) e o trabalho em revezamento dos intérpretes de Libras realizou-se na modalidade dinâmica, com a finalidade de assegurar a captação da linguagem verbal e não verbal dos oradores (acusação e defesa técnica).

Em outro ponto, não se pode olvidar o desafio dos intérpretes de Libras a respeito da fiel compreensão e transmissão ao jurado surdo nos aspectos do vernáculo jurídico utilizado no contexto do Tribunal do Júri, abrindo-se aqui um parêntese para colmatar duas possíveis lacunas de cunho prático e ambas com soluções encontradas na legislação processual penal geral de regência e, portanto, assegurar o julgamento sem qualquer risco de nulidade.

A primeira, consiste no encaminhamento de cópia digitalizada do inteiro teor dos autos do processo-crime para conhecimento prévio dos intérpretes de Libras do juízo, com a finalidade de afirmar a mentalização dos sinais e gestual. Sobreleva notar, nesse aspecto, possível indagação relativamente a contaminação do intérprete de Libras em contato com a prova amealhada ao processo e, conquanto aceitável o argumento de tal natureza, vale lembrar que o auxiliar do juízo permanecerá sujeito à disciplina judiciária, consoante preconiza o art. 275 do CPP, sujeitando-se aos ditames da legislação civil, penal e administrativa.

A segunda, lastreada naquilo que preconiza Novais (2018) resolve-se a questão no momento da fiscalização sobre o que dispõe o art. 472 do CPP, momento para o membro do Ministério Público requerer ao juiz-presidente a suspensão da sessão pelo período mínimo de uma hora, conforme exegese do art. 497, VII do CPP, para fins de ciência dos jurados e intérpretes de Libras e respectiva internalização do conteúdo do material probatório acostado aos autos processuais. Tal iniciativa visa instrumentalizar eventuais indagações dos jurados durante a instrução em plenário e inconteste compreensão da argumentação das partes e significado dos quesitos, em franca homenagem à liberdade de expressão tutelada na Constituição Cidadã. Por derradeiro, no caso proposto, chegou-se ao veredicto condenatório na sala especial, na presença do órgão jurisdicional, de dois membros do Ministério Público, defesa técnica, sete jurados, dois oficiais de justiça e quatro intérpretes de Libras.

Em face desse contexto, a epistemologia revela aos cultores e aplicadores do Direito a existência de manancial de possibilidades para a produção de efeitos das normas nacionais e internacionais de direitos humanos e a percepção de novos modelos de comunicação entre ouvintes e surdos no Tribunal do Júri.

6 Conclusões

O aperfeiçoamento funcional de membros do Ministério Público pode ser enriquecido com o estudo e aplicação da neurolinguística como ciência contributiva na produção da verdade material, uma vez que representa canal de comunicação capaz de interagir harmoniosamente com ouvintes, surdos e intérpretes de Libras nos mais diversos contextos jurídicos.

O conceito de pessoa com deficiência emerge da dinâmica e constante evolução da relação entre a sociedade e as barreiras ambientais e atitudinais, razão pela qual o papel do Ministério Público como protagonista na garantia da tutela de direitos fundamentais do indivíduo com deficiência perpassa pelo reconhecimento da acessibilidade universal e operatividade das normas de avaliação da aptidão biopsicossocial para a prática dos atos da vida civil segundo o modelo de atuação de apoio direto ou indireto, amplamente previsto no ordenamento jurídico interno, vez que o Brasil figura como signatário de Convenções Internacionais de Direitos Humanos, abandonando-se, portanto, a noção assistencialista de substituição.

A Lei nº 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão) cimentou alterações sensíveis no estudo e na aplicabilidade da teoria das incapacidades do CC/2002 e significativos reflexos na interpretação do art. 436 do CPP e, portanto, à vedação às discriminações atitudinais no momento do magistrado efetuar o recrutamento de surdos para o exercício da função de jurado do Tribunal do Júri.

No Brasil, a despeito dos mandamentos constitucionais, infraconstitucionais e infralegais de garantia de acessibilidade nos diversos enquadramentos jurídicos, visando a inclusão de pessoas com deficiência auditiva, verifica-se o Poder Judiciário ainda morno, cedente aos espaços de conveniência administrativa e orçamentária como barreiras atitudinais de implementação e operacionalização de sessões do Tribunal do Júri com a participação de surdos e auxílio por intérpretes de Libras.

O planejamento e a execução de projetos ministeriais extrajudiciais nas unidades tipicamente de natureza processual (Promotoria de Justiça com atribuição no Tribunal do Júri), demonstram que a parceria com a rede externa de profissionais das ciências afluentes ao Direito resulta, tanto na abordagem técnico-científica como na observação da realidade em constante nascedouro de novos modelos de comunicação, assim como a revisitação do significado e alcance das normas jurídicas vigentes.

REFERÊNCIAS

BEAR, Mark F.; CONNORS, Barry W. e PARADISO, Michael A. Neurociências – Desvendando o Sistema Nervoso. 3ª ed. São Paulo: Artmed, 2008.

BITTENCOURT, Fabiana Silva. Tribunal do júri e a teoria dos jogos. Florianópolis: EMais, 2018.

BOLQUE, Fernando César. Neurolinguística e júri: técnicas de inquirição de testemunhas e interrogatório. Escola Superior do Ministério Público de São Paulo: Congresso do Júri. Águas de Lindóia/SP. Disponível em:  http://www.mpsp.mp.br. Acesso em: 22 set. 2018.

BONFIM, Edilson Mougenot. Material de apresentação da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais, São Paulo: IBAJ, 2021. Disponível em:  https://escoladealtosestudos.com.br/a-escola/. Acesso em: 28 fev. 2021.

BONFIM, Edilson Mougenot. No tribunal do júri. Crimes emblemáticos. Grandes julgamentos. São Paulo: Saraiva, 2013.

BOSCHI, Marcus Vinícius, org.; NASSIF, Aramis [et.al.]. Código de processo penal comentado. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2008.

BRASIL. Declaração Universal de Direitos Humanos (1948). Disponível em:  https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/declaracao-universal-dudh/cartilha-dudh-e-ods.pdf/@@download/file/cartilha-dudh-e-ods.pdf. Acesso em: 5 mar. 2021.

______. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 4 mar. de 2021.

_____. Lei 7.853, de 24 de outubro de 1989. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7853.htm. Acesso em: 28 fev. 2021.

______. Decreto n. 592, de 2 de julho de 1992. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 20 mar. 2021.

______. Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 20 mar. 2021.

______. Lei 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm. Acesso em:  28 fev. 2021.

______. Lei 10.048, de 8 de novembro de 2000. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10048.htm. Acesso em: 28 fev. 2021.

______. Lei 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10098.htm. Acesso em:  28 fev. 2021.

______. Decreto n. 3.956, de 8 de outubro de 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/d3956.htm. Acesso em:  21 mar. 2021.

______. Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm. Acesso em: 28 fev. 2021.

______. Lei 13.146, de 6 de julho de 2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 28 fev. 2021.

______. Resolução 230, de 22 de junho de 2016. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2301. Acesso em:  28 fev. 2021.

______. Decreto n. 9522, de 8 de outubro de 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Decreto/D9522.htm. Acesso em:  28 fev. 2021.

CAMARGO, Fernando Della Latta. Da Participação do Jurado Surdo na Sessão do Tribunal do Júri. Anais do 1º Congresso Brasileiro de Saúde em Libras, Universidade Federal do Vale do São Francisco, Juazeiro, 2018. Disponível em:  http://www.univasf.edu.br/~tcc/000013/00001392.pdf. Acesso em: 19 mar. 2021.

______. Projeto jurado surdo selecionado para o banco de práticas do 17º Prêmio Innovare do Conselho Nacional de Justiça. Disponível em:  http://www.premioinnovare.com.br/práticas/14265. Acesso em: 5 fev. 2021.

______ Projeto jurado surdo. Disponível em:   https://www.mppe.mp.br/mppe/comunicacao/noticias/11300-mppe-demonstra-possibilidade-de-inclusao-da-pessoa-surda-no-tribunal-do-juri. Acesso em: 17 mar. 2021. Disponível em:  https://www.blognossavoz.com.br/mppe-garante-cidadania-para-surdos-com-juri-simulado-em-petrolina/. Acesso em: 17 mar. 2021.

______ Projeto jurado surdo. Júri Simulado e depoimentos. Disponível em:  https://www.youtube.com/watch?v=srGAkcLtn9I. Acesso em: 17 mar. 2021.

CAMPOS, Walfredo Cunha. Tribunal do júri: teoria e prática. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.

CUNHA. Rogério Sanches. Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal comentados por artigos. Salvador: JusPodivm, 2017.

CRAIG, David. Como identificar um mentiroso: torne-se um verdadeiro detector de mentiras humano em menos de 60 minutos; tradução de Mirtes Frange de Oliveira Pinheiro. 1ª ed. São Paulo: Cultrix, 2013.

EINSTEIN, Hospital Albert. Distúrbio de linguagem que afeta a capacidade adequada de comunicação da pessoa. Disponível em:  http://www.einstein.br/guia-doencas-sintomas/afasias. Acesso em: 17 mar. 2021.

FARIAS, Cristiano Chaves de. Estatuto de Pessoa com Deficiência comentado artigo por artigo. 3ª ed. rev. ampl. atual. Salvador: JusPodivm, 2017.

FRANÇA. Anne Beatriz da Silva. A Acessibilidade do Indivíduo Surdo no Poder Judiciário com enfoque no âmbito do tribunal do júri (TCC em Direito). Biblioteca de Direito da Autarquia Educacional do Vale do São Francisco AEVASF, Petrolina/PE: 2018.

MUNIZ, Alexandre Carrinho. Tribunal do júri: pilar da democracia e da cidadania. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2018.

NETO, Hugo Frota Magalhães. Maratona dos Direitos Fundamentais. Conselho Nacional do Ministério Público. 23 a 26 fev. 2021. Disponível em:  https://www.youtube.com/watch?v=JiRjh3rRZPA. Acesso em:  08 mar. 2021.

NOVAIS, César Danilo Ribeiro de. A defesa da vida no tribunal do júri. 2ª ed. Cuiabá: Carlini & Caniato Editorial, 2018.

PINHEIRO, Luiz Eduardo Sant’Anna. A Dupla Face do Garantismo Penal e Implicações no Direito Brasileiro. 1ª ed. Campo Grande: Contemplar, 2020.

RANGEL. Paulo. Tribunal do Júri: visão linguística, histórica, social e jurídica. 6ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Atlas, 2018.

RECKELBERG, Simon. Intérpretes de libras-português no contexto jurídico: uma investigação dos serviços de interpretação oferecidos na Grande Florianópolis (TCC pós banca). Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/188391. Acesso em: 19 mar. 2021.

SILVA, Danni Sales. Persuasão na tribuna. Curitiba: Juruá, 2018.