Ministério Público atuando em conjunto com a RAPS na saída do louco infrator do HCTP

Irene Cardoso Sousa

Titular da 48ª Promotoria de Justiça Criminal da Capital, membro do GT Racismo do MPPE e do Grupo de Atuação em Execução Penal (GAEP), também do MPPE. Especialista em Direito Constitucional e especialista em Saúde Pública.

 

RESUMO

O objetivo deste artigo científico é verificar os mecanismos de atuação do Ministério Público na perspectiva do HCTP, seja no momento da internação, seja no da saída, considerando os ideais universais de direito à saúde mental. Essa atuação será analisada a partir da articulação com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para adequar o tratamento do louco infrator aos princípios constitucionais de direito à saúde e de cidadania garantidos pela Lei 10.216/2001 e Constituição Federal, explicitando também a orientação institucional interna entre as áreas criminais e de cidadania diante da situação de instauração de incidente de insanidade mental à luz da Lei Federal n°10.216/01 para garantia de proteção no território do louco infrator encarcerado.

 

“A hora do encontro é também despedida.”

Milton Nascimento e Fernando Brant

Geralmente, o interno de uma instituição total (GOFFMAN, 2015, p. 11)[1] não tem conhecimento das decisões quanto ao seu destino, mormente quando se trata de hospitais psiquiátricos. Nos casos dos manicômios judiciários, essa confusão não pertence apenas ao internado. Nesse espaço enleam-se um aparato de encarceramento e um serviço de saúde entontecidos da dimensão de seus papéis no cumprimento da medida de segurança, ora negando, ora transferindo poderes para não os assumir. Para a Justiça, o distanciamento do exercício da punição remonta à época em que o abominável teatro da execução-espetáculo deixava de ser exposto em praça pública e passava a ser confiado a uma burocracia: é pouco glorioso punir, como afirma Foucault (FOUCAULT, 1987, p. 13). Por outro lado, é significativo o aparato de médicos, psiquiatras ou psicólogos que “por sua simples presença ao lado do condenado, (…) cantam à justiça o louvor de que ela precisa: eles lhe garantem que o corpo e a dor não são objetos últimos de suas ações punitivas” (FOUCAULT, 1987, p. 14).

Adotamos, para denominar manicômio judiciário, o termo Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, usualmente chamado de HCTP, como no Estado de Pernambuco, inobstante a denominação ineficaz em legislação local[2] de 2016 como Centro de Saúde Penitenciário.

Os profissionais da rede de saúde que estão nesse espaço do HCTP têm uma sensação de desorientação em relação à natureza dessa instituição, ao papel do judiciário, aos limites dos agentes penitenciários, à interferência da Secretaria de Ressocialização no que se refere às normas sanitárias como também em relação à Secretaria de Saúde no que se refere aos laudos que servirão a um processo penal. Para esse sistema judiciário e órgãos penitenciários, é estranho olhar o interno do HCTP – que tem um número de processo de execução e que muitas vezes se identifica com o número de seu prontuário de preso – como um paciente psiquiátrico, absolvido de uma pena, dentro de uma perspectiva de saúde e de políticas públicas em consonância com os princípios e diretrizes de uma reforma psiquiátrica que lhe soam bem distante do seu mister. Esse estranhamento recíproco – jurídico e saúde –  resulta numa falta de consciência do que seja de fato o cumprimento de uma medida de segurança em um Hospital de Custódia, o que torna essencial pensar como seria o fim desse modelo HCTP. O norte há de ser sempre o fim do modelo manicomial mas, o existindo, como em Pernambuco, urge a necessidade atual de focar na saída do que hoje está privado de liberdade nessa instituição. Promotores de Justiça, juízes, defensores públicos, advogados, secretário de Justiça, secretário de ressocialização, agentes penitenciários, médicos clínicos, médicos psiquiatras, dentistas, enfermeiros, técnicos de enfermagem, farmacêuticos, nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, professores, pedagogos, diretores, trabalhadores de coleta de lixo do município, fornecedores de insumos alimentícios da CEASA e, finalmente, carteiro, todos circulam no HCTP, que tem aspectos clínicos, sociais, pedagógicos, administrativos, de serviços públicos, cartoriais, repressivos e jurídicos. Para esse encontro, é imprescindível articulação. Homi Bhabha representa essa consciência das posições do sujeito em busca de articulação como entre-lugares:

Esses entre lugares fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetividades – singular ou coletivo – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade. (BHABHA, 1998, p. 20)

O livro 1984, de George Orwel, foi escrito em 1948 e na máxima ironia que o enredo trava começa com um trocadilho no título, que leva a uma aleatória data (1948-1984), da absurda distopia futurista em que o mais importante sempre será o passado: o que estava acontecendo em 1948. A humanidade queria respostas às atrocidades pelas quais tinha sido responsável, no dizer de Arendt, chamado de mal “absoluto”, porque já não podia ser atribuído a motivos humanamente compreensíveis. Nesse afã de como evitar a força destrutiva do próprio homem e a banalidade do mal era preciso novas garantias, mesmo que os Estados não expressassem diretamente sua adesão ao pacto. A preocupação pujante com novas práticas de genocídio levou o homem a querer compreender, ser crítico, exigir garantias ao próprio homem.

Há muito do não dito no dito da Declaração Universal dos Direi­tos do Homem, um dizer sempre “a venir” e que é preciso um esforço de abertura ao totalmente outro para entendermos e compreender o texto normativo em um contexto eminentemente crítico. (VIEIRA, 2018, p. 385)

Entender a perspectiva da Declaração Universal dos Direitos da Humanidade significa dar um norte para superar a expectativa das leis infraconstitucionais que ainda possuem um caráter simbólico demasiado enfatizado frente a políticas públicas guiadas por princípios em que a saúde é um direito humano fundamental conforme declarado em 1948. A eficácia dessas normas é um desafio, mas a relutância em aceitar a sua sincronização é o maior entrave a essas questões, principalmente quando se tem um peso de uma Lei de Execução Penal ou Código de Processo Penal como fontes primeiras.

O eixo principal desse artigo são os entre-lugares de articulação nessas atuações de um Ministério Público que defende ideais universais de direito à saúde, no caso da saúde mental, que são forçosamente realizadas em conjunto com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para adequar o tratamento do louco infrator aos princípios constitucionais de direito à saúde e de cidadania garantidos pela Lei 10.216/2001 e Constituição Federal.

Para tanto, imprescindível a atuação articulada do Ministério Público – através das áreas criminais e de cidadania – com a Rede de Atenção Psicossocial diante da situação de instauração de incidente de insanidade mental à luz da Lei Federal 10.216/01, que dá direito ao louco infrator de ter o mesmo tratamento e acesso a serviços da rede (preferencialmente municipal) de saúde mental oferecido ao portador de sofrimento mental não encarcerado. No caso de Pernambuco, sendo apenas um manicômio judiciário, localizado simbolicamente numa ilha, Itamaracá, ao receber pessoas da distante divisa com a Bahia, como Petrolina, ou da divisa com o Piauí, Araripina, distante a setecentos quilômetros, representa o oposto do que é a espinha dorsal do tratamento em saúde mental, que é o tratamento no território para a reinserção social almejada. Uma ilha também pode ser um mundo.

A reforma psiquiátrica remonta aos anos 1950. Destacamos 1961, na Itália, quando o médico Franco Basaglia chega a Gorizia para dirigir o Hospital Psiquiátrico, e em 1970 a Trieste, cujo hospital foi, em 1973, considerado pela OMS como referência mundial em saúde mental. Pouco tempo depois, em 1978, todos os manicômios na Itália são fechados em decorrência da Lei 180[3], ou Legge Basaglia. Menos os Hospitais Psiquiátricos Judiciários. Em 2014, mais de 35 anos depois da última instituição manicomial ter sido fechada na Itália e diante da resistência do judiciário, é promulgada a Lei 181[4] com medidas urgentes para fechar os Hospitais Psiquiátricos Judiciários que ainda resistiam no país à reforma psiquiátrica que serviu de modelo para muitos países e de campo de pesquisa para muitos estudiosos. Um dos aspectos importantes dessa lei foi a atribuição ao juiz de execução penal de adotar medidas que levassem em consideração a inserção do egresso do HPJ no território e algo que ainda não acontece no Brasil: o princípio de que o dinheiro segue o paciente. Explico, quando um leito de hospital psiquiátrico no Brasil é fechado, há uma destinação dessa verba que acompanha o paciente para os serviços de substituição do internamento, como residência terapêutica ou programas como o de Volta para Casa. No caso do interno que sai de um manicômio judiciário brasileiro, mesmo que permaneça longo período, não há inserção em programas dessa jaez, por que o HCTP não é considerado hospital e um leito não é fechado. A diferença permanece do lado de fora, pois o egresso do HCTP não tem o mesmo tratamento do que sai de um manicômio, a reforma psiquiátrica no Brasil também não olhou para o sistema prisional, tornado-o, mais uma vez, invisível mesmo às causas mais nobres.

Nessa Lei italiana nº 181/2014 fica estabelecido que a duração máxima da medida de segurança não pode ser maior do que a pena para o crime (máximo padrão). Portanto, há um limite para extensões e uma suspensão das chamadas “penas de prisão perpétua brancas”. Esse traço inicial nos alerta para o quão é difícil falar em fim de espaços de custódia para tratamento psiquiátrico, em qualquer lugar do mundo.

A reforma que iniciou processos de desinstitucionalização e desospitalização inicia no Brasil na década de 1980 na área da saúde, chegando ao judiciário de forma contundente apenas recentemente, em 2016, quando o STF adotou o entendimento de limite máximo do tempo de cumprimento de medida de segurança no Brasil em 30 anos. Aspecto interessante dessa decisão é que a medida é tratada como pena, pois nesse caso, como em outros, o condenado que cumpre uma pena tem mais direitos que o absolvido por medida de segurança. Explico: ainda existia nos HCTPs casos de internos há mais de 30 anos, tempo de prisão máxima no País qualquer que seja o tempo de condenação – mesmo que ultrapasse 100 ou 200 anos de pena estabelecida em sentenças. Essa decisão do STF pôs em discussão o tão velado fim da medida de segurança condicionado à cessação de periculosidade. Para beneficiar uma pessoa em cumprimento de medida de segurança houve a necessidade de tratar essa medida como pena para lhe dar limite. Enquanto absolvição é mais dura que uma condenação. Urge desinstitucionalizar. Urge transpor o abismo da periculosidade.

Para demonstrar essa atuação do Ministério Público, trazemos o recorte do momento do ingresso de um munícipio (sim, todo cidadão tem um território) no HCTP. Essa atenção está em conformidade com a posição da instituição – MPPE – de que o controle desse momento de ingresso ou institucionalização constrói dignamente a saída no território de origem sem a perda dos vínculos em que se estruturam os círculos sociais dos envolvidos na loucura e consequentemente reduzindo o tempo de institucionalização, muito maior quando não existe esse acompanhamento. Essas atuações são forçosamente realizadas em conjunto com a RAPS para adequar o tratamento do louco infrator aos princípios constitucionais de direito à saúde e de cidadania garantidos pela Lei 10.216/2001 e Constituição Federal. A imposição constitucional, tanto do fim dos manicômios judiciários, como a garantia de tratamento ambulatorial não podem mais ser negadas, ficando esse trabalho ora circunscrito ao tratamento, por nesse momento entendermos de ordem emergencial esse tema.

No belo trabalho de defesa de políticas públicas em prol da inclusão laboral de pacientes psiquiátricos após a privação da liberdade, Correa e Oliveira esclarecem:

Nesse sentido, a reforma psiquiátrica veio contribuir para o resgate da cidadania dos pacientes psiquiátricos, sendo ancorada em alguns princípios constitucionais, sobretudo a construção da autonomia, a emancipação e a inclusão social desses sujeitos. (…) Decorrente da reforma psiquiátrica e da proposta de desinstitucionalização, obteve-se uma flexibilização da lei com relação à medida de segurança, sendo possível pensar na substituição da internação pelo tratamento ambulatorial.

No contexto da Reforma Psiquiátrica, o Ministério Público passa à condição de atuante deste processo, saindo da inerte posição de apenas ser o órgão procurado pelas famílias para promover uma internação em momento de crise ou de atuar em denúncias, incidentes ou processos de execução. Em todos esses casos pode orientar o acesso aos serviços de saúde e cidadania. O Ministério Público torna-se, na atualidade, parceiro na busca de uma efetiva rede de atenção à saúde mental, capaz de dar uma resposta às demandas do usuário e da família, e, para tanto, necessita estar articulado com a Rede de Atenção Psicossocial do território do usuário ou interno ou egresso ou simplesmente do mais que estigmatizado louco infrator.

Por sua vez, um fluxo institucional efetivo entre RAPS e Ministério Público pode garantir o incremento das ações territoriais e comunitárias de saúde mental, seja na capacitação dessa rede no que se refere a noções jurídicas de medida de segurança, incidente de insanidade mental, processo de execução e papel do HCTP no contexto do sistema prisional. Alertando que, na saída do interno do HCTP, essa rede há de articular o usuário para os Centros de Atenção Psicossocial, Serviços Residenciais Terapêuticos, Programa de Volta para Casa, ambulatórios, atenção básica e outros serviços de saúde mental do município. Apesar de o interno estar momentaneamente sob medida de segurança no HCTP, ele não deixa de ser paciente e vai voltar ao município de origem quando for extinta a medida.

Analisa-se a atuação em conjunto do Ministério Público – áreas criminais e de cidadania – com a Rede de Atenção Psicossocial para adequar o tratamento do louco infrator aos princípios constitucionais de direito à saúde e de cidadania, cuidando, assim, da porta de entrada do HCTP até a decretação e extinção da medida de segurança, ou seja, a saída da instituição total e o retorno do munícipe ao serviço de saúde mental do território determinado pela Vara de Execuções Penais. Ao final, verifica-se que a falta desse serviço coloca em risco a permanência do louco infrator na instituição, longe do território, sem prazo determinado, mais do que uma prisão perpétua.

Temos como intuito verificar se é possível aproximar institucionalmente esses órgãos de atuação a partir da definição do papel de cada um na política pública de saúde mental para que os encaminhamentos a serem feitos sejam voltados para uma ação integral de proteção ao usuário da saúde mental, de forma a aperfeiçoar o atendimento de cada um, diminuindo os casos de intervenções errôneas e encaminhamentos desnecessários ao HCTP a partir do conhecimento do sistema judiciário e da rede territorial de saúde mental, mormente nas audiências de apresentação de custódia recém-implantadas.

Para entender melhor esse engessamento, cumpre entender o que seja medida de segurança e quais mecanismos jurídicos a mantém e por que kafkaniamente parece não ter fim. Na Itália foi amplamente divulgado que no dia 31 de março de 2015 todos os hospitais psiquiátricos judiciários foram fechados[5]. A Lei 181/2014 previa o dia 31 de maio de 2015. Ocorre que a imprensa recentemente denunciou que ainda restam 4 Ospedali psichiatrici giudiziari, detti pure manicomi criminali (Opg), quais sejam Piemonte, Veneto, Toscana e Abruzzo, para não falar na Lombardia, que transformou o manicômio judiciário em Residência Terapêutica para 200 ex-internos, correndo o risco de os submeterem a uma nova lógica manicomial sem grades. Uma residência terapêutica com 200 pessoas não é um lar, é uma instituição total.

A configuração do HCTP não foge à tão denunciada situação do encarceramento em massa de presos provisórios. São 374 homens, sendo 164 em cumprimento de medidas de segurança e 209 que estão presos provisoriamente, sem sentença. É uma instituição mista, com 28 mulheres, sendo 10 provisórias. Em 2015, quando assumi a promotoria de execução penal, da lista dos que não tinham medida de segurança constava, entre mais de uma centena, JAS, que chegou ao HCTP no ano de 2009, e que aguardava decisão judicial de uma cidade distante apenas 150 km de Itamaracá. Mas contundente, era um interno desde 2001, LSA, também sem medida de segurança, que obteve Habeas Corpus em 2015. Todos os outros 122 estavam há mais de um ano sem medida de segurança, internos no HCTP sem poder fazer evolução no laudo. Em 15 de abril de 2015, faleceu o paciente José Fernandes Alexandre da Silva, um dos que estavam sem medida de segurança desde 2012 no HCTP, oriundo da Comarca de Pombos. Segundo relatório da defensora pública, Carolina Khouri, apresentado na audiência pública de maio de 2016: Um dos casos emblemáticos foi o vivenciado pelo Sr. Petrônio Juarez Lima de Araújo Filho, que cumpriu integralmente, dentro do HCTP, a pena que lhe foi aplicada em abril de 2006. A declaração de extinção da pena e consequente ordem de libertação somente veio a ser efetuada pelo Juízo competente em novembro de 2012. Nem mesmo assim o sr. Petrônio foi libertado e, em dezembro de 2015, veio a óbito dentro da unidade.

Em inspeção no dia 13 de abril de 2015 constatamos in loco a presença de apenas três agentes penitenciários na unidade, dois na segurança e um no administrativo, pois a SERES tinha deslocado dois agentes para fazer custódia hospitalar da unidade prisional de Barreto de Campelo. A ausência constante de numerário suficiente implicava diretamente no tratamento dos pacientes, pois ficou constatado que, na ausência de agente para acompanhar os enfermeiros, havia medicamentos que eram aplicados com o paciente dentro da grade, com as calças abaixadas e a injeção dada pelo lado de fora das grades. Além do mais, com a falta de agentes havia todo um pavilhão com 17 internos sem banho de sol há três meses. A direção da unidade, através da recém-chegada dra. Reviane Bernardo, providenciou o banho de sol duas vezes por semana no Pavilhão São Francisco, e a ordem que os agentes pudessem acompanhar os técnicos de enfermagem na aplicação de medicação. A diretora fez uma belíssima atuação.

O pavilhão São Francisco, local de triagem do HCTP, estava lotado porque nessa época havia laudos atrasados de até dois anos, sendo iniciado com a SERES a discussão sobre contratação de laudistas para colocá-los em dia, e de fato esse ser um local de triagem e trânsito. Foi realizada audiência com os médicos laudistas. A cobrança para serem realizadas em 45 dias resultou na contratação de cinco laudistas em julho de 2015, que zeraram laudos e relaudos dos internos. Hoje já estão fazendo réus soltos, cumprindo os 45 dias determinados por lei, muito longe do caos anterior.

Outro problema gravíssimo, ainda constatado em inspeções, era a quantidade de refeições servidas no HCTP. Apenas três. Sendo que a última, o jantar, é em torno de 17 horas e a próxima, o café, só às 6 horas da manhã. Para uma população que toma remédios controlados e fortes, esse problema há de ser dimensionado até para entender a fome e a relação de surtos noturnos. Em razão da falta de agentes penitenciários não foi possível manter a implementação de uma ceia como quarta refeição, que foi servida por um tempo e hoje está suspensa.

Então o que o profissional da rede psicossocial há de saber sobre medida de segurança?

A primeira estranheza é quanto aos diversos termos dos processos: doente mental, portador de transtorno mental, usuário, paciente, cliente, interno, internado, custodiado, pessoa em cumprimento de medida de segurança, pessoa com transtorno mental, pessoa com transtorno mental em conflito com a lei, pessoa portadora de sofrimento mental que viola a lei ou simplesmente, como tem sido adotado no âmbito do Ministério Público, o termo louco infrator.

Segundo o artigo 26, caput do Código Penal “é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.

A distinção reside, portanto, unicamente, nas consequências: os imputáveis estão sujeitos à pena, os inimputáveis, à medida de segurança. Entendendo o caráter ilícito do fato, a pessoa que pratica algo ilícito pode ser condenada. As pessoas portadoras de algum tipo de sofrimento mental são submetidas a laudos para saber a possibilidade ou não desse entendimento, e, caso tenham algo impeditivo desse entendimento, não serão responsabilizadas, ocorrendo o que se chama de absolvição imprópria porque a elas são impostas medida de segurança ou tratamento ambulatorial, baseando-se na escolha a periculosidade do agente. É o que preconiza o art. 97, §1º do Código Penal:

Art.97, §1º.  A internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos.

Em livros de psicologia jurídica, como o de Fiorelli e Mangini, a temática já é abordada à luz de princípios constitucionais de defesa à saúde:

O tempo terapêutico não possui duração determinada, como nos casos das penas de reclusão, porém, ressalte-se que a atenção à saúde do portador de sofrimento mental, quer seja daquele que viola as disposições legais, quer seja da pessoa que não as viola, requer que a intervenção se dê no âmbito da rede pública de saúde.

Assim, com o advento da lei nº 10.216/01, que trata da reforma psiquiátrica e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, estariam também as instituições penais destinadas a realizar tal intervenção, os denominados manicômios judiciários, obrigadas a desinternar seus pacientes, encaminhando-os para os serviços públicos, constituídos na rede extra-hospitalar preferencialmente, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Foi realizada, no dia 08 de agosto de 2017, a oficina Noções básicas de medidas de segurança no processo de desinstitucionalização do HCTP, transmitida por videoconferência a partir da sede da Procuradoria-Geral de Justiça, na Capital, para os 12 polos da Rede de Videocolaboração do Núcleo de Telessaúde da Secretaria Estadual de Saúde. A participação da RAPS foi pontuada em todos os polos, principalmente na capital.

A oficina foi coordenada pela 21ª promotora de Justiça de Execuções Penais abordando noções básicas sobre as medidas de segurança no processo de desinstitucionalização do interno para promover um relacionamento mais efetivo entre Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e o Sistema Judiciário, visando ao incremento das ações territoriais e comunitárias de saúde mental. A defensora pública Ana Carolina Khouri trouxe na sua explanação a Recomendação nº 35/2011, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dispõe sobre as diretrizes a serem adotadas em atenção aos pacientes judiciários e a execução da medida de segurança, já bem alinhada à Lei nº 10.216/2011. Também falou sobre a necessidade de o município assumir a responsabilidade por esse cidadão, que “está momentaneamente no HCTP mas vai voltar para o município, e muitas vezes é internado lá por ausência de uma rede de saúde mental estruturada”. Ao final, foi aberto um espaço de perguntas para que os participantes dos 12 polos da Videoconferência compartilhassem as dúvidas ou ideias com a mesa, bem como soluções para os desafios da volta de um ex-interno do HCTP para a Rede da Saúde Mental do município de origem.

O que o promotor de Justiça há de saber sobre rede territorial de atendimento psicossocial?

Os autores Carolina Valença Ferraz e Glauber Salomão Leite, ao comentarem o Estatuto da Pessoa com Deficiência ressaltam a mudança de pensar a deficiência centrando apenas no indivíduo, desobrigando o Estado e a sociedade de assumirem qualquer dever a esse respeito: “Como reflexo, as respostas do Poder Público vinham na forma de medidas puramente assistencialistas e caritativas, longe de reconhecer a pessoa com deficiência como sujeito de direitos”.

O primeiro norte do promotor de Justiça deve ser no sentido de entender que a ordem do cuidado do portador de transtorno mental não coloca mais a família como a primeira responsável. Quem tem família estruturada geralmente não recorre à malha judiciária para resolver seus problemas. O problema é a falta de condições de apoio da família que move as questões de intervenção necessárias do órgão ministerial. O Estatuto da Pessoa com Deficiência assim define:

Art. 8o  É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.

A ordem é Estado, sociedade e, só depois, a família. Farol de Alexandria iluminando os caminhos e decisões a serem tomadas. Quem substitui nosso velho conceito de individualidade? A rede territorial de saúde mental ou RAPS.

Nessa rede, o espaço dos hospitais psiquiátricos e, por conseguinte, dos HCTPs é residual e deve ser buscado em último caso, conforme art. 4º da Lei nº 10.216/2001.

Segundo o professor Breno Fontes e a professora Eliane Fonte, ambos da UFPE, a rede é necessária porque o acesso a recursos de apoio social influi diretamente na capacidade de enfrentamento do sofrimento psíquico:

A compreensão de como operam as sociabilidades das pessoas com transtorno mental deve ser processada a partir de uma primeira constatação: que o sofrimento psíquico provoca efeitos devastadores sobre as sociabilidades, seja por causa de questões ligadas diretamente à doença(estados de desânimo ou melancolia, surtos psicóticos, perdas cognitivas), seja por conta do estigma inscrito na condição de louco, aquele que é perigoso, inconveniente, que não consegue estabelecer padrões adequados de convivência porque o seu estado o impede de estabelecer padrões de conduta aceitáveis e normais. Destarte, talvez o efeito mais perverso do sofrimento psíquico seja o que Goffman (1996) chamou de “morte social”: o isolamento, a exclusão e o estigma agindo de modelo perverso, retroalimentado constantemente um sistema devastador que implica em um cotidiano pobre e cada vez mais desprovido de possibilidades de mudança.

A geografia social faz tecer laços dos mais diversos. No território. Passando por esses entre-lugares, e diante de uma emergência – todo emergir é um estado de vir à tona –, em 2015 o MPPE formulou uma estratégia simples de realinhar internamente a atuação do promotor de Justiça dentro do desafio normativo de superar o Código Penal e tratar o louco infrator à luz dos princípios de saúde mental, principalmente os de tratamento no território e de reconhecimento da loucura como questão de saúde pública e de assistência social. Uma recomendação.

À época, à frente da 21ª PJ Criminal, estava o então coordenador do CAOP Cidadania, Marco Aurélio Farias da Silva, que traçou as linhas de uma recomendação a ser expedida pela instituição. A intenção talvez fosse a de refletir a situação que nos idos de 2013 ainda se repete, para daí produzir formas de intervenção na atuação do promotor de Justiça norteado, sempre, pelos princípios constitucionais. Foi expedida a Recomendação PGJ nº 03/2013 com o propósito organizacional de ir além da lei, para depois a ela retornar dentro dos princípios temporais da reforma psiquiátrica, e, fora do lugar do crime, encontrar com a RAPS. Ainda, segundo Bhabha, “o espaço intermédio do além torna-se um espaço de intervenção no aqui e no agora”.

Os diplomas legais, ainda atuais, embora não plenamente atingidos, são de ordem jurídica e de saúde, desde a Constituição Federal, na garantia da saúde, em seus artigos 6º e 196, como a Lei de Execução Penal até a Lei Federal nº 10.216/2001, que redireciona o modelo assistencial em saúde mental, priorizando o modelo de tratamento comunitário, como a Lei Estadual nº 11.064/94, que estabelece a substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos de Pernambuco pela rede de atenção integral à saúde mental. Não discutiremos a natureza do HCTP, se hospital ou prisão, posto que reconhecidamente a segunda opção se sobrepõe na prática, e é o que vem à tona. Entre vários considerandos, o último norteia o recomendado aos membros do Ministério Público de Pernambuco, no exercício das atribuições na Promotoria de Justiça Criminal quando da manifestação de pedido de instauração de incidente de insanidade mental ou de transferência de pessoa presa para o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico:

CONSIDERANDO que atualmente várias pessoas não conseguem sair do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico por não terem vínculos familiares e necessitarem do apoio da rede de saúde mental, porém os seus municípios de origem não contam, ainda, com a política de saúde mental em pleno funcionamento, especialmente pela ausência de centro de apoio psicossocial e residências terapêuticas;

A esses promotores criminais fica a incumbência de comunicar às Promotorias de Justiça de Cidadania todas as vezes que se manifestarem sobre instauração de incidente de insanidade mental ou transferência de pessoa presa para o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico ou todas as vezes que tomarem ciência em guia de internação, o nome e a qualificação completa da pessoa acusada em processo criminal ou internada, anexando cópia dos documentos que fundamentaram o pedido e cópia da mencionada guia de internação. Também ao promotor criminal é incumbido o mister de, na atuação do processo de conhecimento e de execução, implementar, dentro de suas atribuições legais, as políticas antimanicomiais, conforme sistemática da Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001.

Aos membros do Ministério Público de Pernambuco, no exercício das atribuições na Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania é recomendado que: oficiem ao Serviço Único de Saúde (SUS), especialmente o distrito sanitário do domicílio da pessoa acusada, para que remeta ao Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico todas as informações pertinentes à pessoa acusada, para fins de continuação de tratamento da saúde mental, bem como visando fornecer melhores elementos para a elaboração da perícia de existência, ou não, de periculosidade; oficiem ao Serviço Único de Assistência Social (SUAS), especialmente o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), para que elabore pareceres psicológico e social da pessoa acusada, remetendo o mencionado parecer ao serviço social do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, promovendo o levantamento dos principais laços familiares da pessoa acusada, visando a subsistência desses, como forma de garantir a reintegração social, de tudo dando ciência à Promotoria de Justiça oficiante; diligenciem, no âmbito do município onde exerçam as suas atribuições, para identificar o pleno funcionamento dos serviços de saúde mental, conforme a sistemática da Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001, além das Leis Estaduais nº 11.064, de 16 de maio de 1994, que dispõe sobre a substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos por rede de atenção integral à saúde mental, regulamenta a internação psiquiátrica involuntária, e Lei Estadual nº 14.561, de 26 de dezembro de 2011, que institui, no âmbito do Poder Executivo, a Política Estadual sobre Drogas, especialmente para verificar a existência e funcionamento adequado dos Centros de Assistência Psicossocial (CAPS), em suas diversas modalidades, bem como sobre os mecanismos de assistência hospitalar (municipal ou regional) à disposição da população, nas modalidades adequadas ao município, inclusive para promoção da assistência à saúde das pessoas usuárias de álcool e outras drogas, hospitais de referência, dentre outros; solicitem, junto à Promotoria de Justiça Criminal, cópias das guias de internação expedidas, para a preparação e acompanhamento do retorno das pessoas internadas no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico ao município de origem.

Ambos crime e cidadania hão de andar lado a lado quando a temática for saúde mental a fim de superar essa divisão tradicional e até polarizada na prática ministerial.

Como referencial prático e ilustrador de excelência na aplicação dessa Recomendação, podemos citar a 6ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania de Jaboatão dos Guararapes, cuja titular, Isabela Rodrigues Bandeira Carneiro Leão, montou um fluxo de atuação quando acionada pelo promotor de Justiça Criminal (seja da Central de Inquéritos ou da Vara Criminal), após a instauração do incidente de sanidade mental e ingresso no HCTP do munícipe jaboatonense. De início são feitas comunicações à rede SUAS (CRAS e CREAS), além de ofícios à rede de saúde mental. Em caso de necessidade de mais informações também é oficiado o promotor de Justiça Criminal do processo solicitando cópias da guia de internação. Todo o fluxo visa acompanhar o retorno das pessoas internadas ao município de origem. Muito embora o fluxograma possa parecer ter um caráter individual, o fim precípuo é investigar o pleno funcionamento da rede de saúde mental, buscando a substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos, especialmente para verificar o adequado funcionamento dos CAPS.

A rede SUAS fica responsabilizada de formular pareceres psicológico e social da pessoa internada com fins de localização de laços familiares como forma de garantir a reinserção social. Depois é enviado um relatório ao HCTP para auxiliar o tratamento e elaboração da perícia. Um dos casos acompanhados tinha como internado um rapaz surdo que agrediu a mãe e, em decorrência da Lei Maria da Penha, foi aplicada a medida protetiva. Ocorre que a mãe, além de fragilizada, foi impedida de ver o filho no HCTP, até que a medida fosse contestada pela Defensoria Pública, pois a lógica de proteção estava invertida. Com a intervenção da promotora de Justiça de Jaboatão, e, após acionamento do CREAS, CRAS e CAPS, foram tomadas medidas para dar suporte psicológico à mãe, escolhido um novo parente, no caso o pai, que teria melhores condições de recebê-lo, também foi orientado de como poderia solicitar benefícios. Assim, dez meses depois de internado, após laudo de inimputabilidade, o usuário tinha a família à sua espera na saída do HCTP, caso raro em casos de violência doméstica, mesmo com portadores de transtornos mentais. Essa é uma história. De Jaboatão dos Guararapes, poderia ser de qualquer lugar.

No agreste, mais precisamente na cidade de Arcoverde tivemos outro caso.  A 2ª Promotoria de Justiça de Arcoverde, através de sua atuante titular Ericka Garmes Pires Veras recebeu ofício oriundo da 21ª Promotoria de Justiça Criminal da Capital para acompanhar o retorno de egresso do HCTP à Cidade de Arcoverde, em razão do que foi instaurado o procedimento nº  2705423/2017, para a adoção das providências necessárias. Em paralelo a isso, a irmã apresentou notícia de fato, dando conta de que o paciente, um jovem senhor nascido em 1982, portador de doença mental, egresso do HCTP, foi encaminhado à noticiante, pelo CAPS II Arcoverde. Aduziu que, além de não ter condições de assumir a responsabilidade do interditando, por ter uma filha de apenas dois anos e cuidar da genitora idosa e doente, foi vítima de abusos sexuais praticados pelo irmão, não tendo qualquer vínculo afetivo com ele. Asseverou também que registrou ocorrência na Delegacia de Polícia, para prevenir eventual responsabilidade. Ainda, disse que o irmão foi criado por uma tia já falecida e que não havia outros parentes que quisessem ou poderiam cuidar dele. Em seguida, o CREAS Arcoverde encaminhou relatório circunstanciado, informando que o usuário foi visto pelas ruas, bastante desorientado, sem qualquer documento, em estado de abandono, em razão do que a promotora de Justiça indicou a possibilidade de sua inserção em residência terapêutica, na Cidade de Ibimirim/PE, medida não providenciada pelo serviço à vista da notícia de falta de vagas. Não satisfeita com as respostas e para chegar a uma resolução a promotora realizou reunião com a rede de proteção do Município de Arcoverde, representada pela Secretaria Municipal de Assistência Social e CREAS Arcoverde quando foram solicitadas informações complementares, além da indicação de medidas que se afigurassem adequadas ao caso, para a adoção de providências a cargo do Ministério Público. Relatório complementar do CREAS Arcoverde informou que o egresso do HCTP, com histórico de várias internações psiquiátricas, foi trazido para a Cidade de Arcoverde, após desinternação, porque a irmã comprometeu-se a acolhê-lo sob sua responsabilidade. Porém, ao chegar na casa da irmã, ela recusou-se a recebê-lo. Desde então ele estava pelas ruas, sem qualquer documento, em estado de abandono, sujeito a uma série de violações de direitos. Encaminhado ao CAPS, foi submetido a exame por médico psiquiatra, que atestou que ele era portador de esquizofrenia paranoide, era inteiramente incapaz para os atos da vida civil, devendo, pois, ser encaminhado para residência terapêutica na Cidade de Ibimirim/PE. Consta dos autos que o encaminhamento não foi realizado à vista de anterior notícia de ausência de vagas. O único documento localizado foi a certidão de nascimento do interditando. Não havia notícia de bens, rendimentos ou direitos do requerido. Diante da necessidade de regularização da situação jurídica, a promotora de Justiça ingressou com ação para a decretação de interdição e nomeação de curador, além de atuar na abertura de vaga numa residência terapêutica. Dos autos consta um ofício oriundo da Secretaria de Assistência Social de Arcoverde informando que estava atuando em conjunto com a Secretaria de Saúde, o que demonstra o compromisso da rede no território mais abrangente.

De Jaboatão, do Cabo, de Arcoverde, para além dos lugares passamos por relações e pessoas comprometidas.

Milton Santos afirmava que cada lugar é, à sua maneira, o mundo. É necessário considerar as relações desse mundo ou desse lugar “através de um processo de incessante interação”. Um lugar carrega em si o mundo, ou, como se diz em relação aos manicômios (ou uma prisão ou qualquer instituição total), basta conhecer um que se conhece a todos. John Foot, docente de história contemporânea italiana, biografa Franco Basaglia e relata a psiquiatria radicada na Itália entre 1961 e 1978, descrevendo Gorizia, primeiro manicômio administrado por Basaglia, como um campo de concentração:

Gorizia era, come tutti i manicomi italiani, un autentico lager. Il maicomio di Gorizia era un’istituzione buia e sinistra, una discarica per i poveri e i “devianti”, un luogo di esclusione. Come nella maggioranza dei manicomi italiani dell’epoca, col tempo si era sviluppata un’architettura della contenzione e dell controllo, com gabbie per i paziente più agitati e letti bucati per consentire a chi vi stava legato a defecare.

Nessa rotina faremos uma breve exposição do que o MPPE tinha de visão compartimentada do HCTP. Longe do espaço, em suas salas de reunião, ao MP não cabe o benefício da afetividade, mas pode ao receber uma gama de atores sociais tecer relações densas e infinitas de informações. Mais uma vez se quer o encontro. Para tanto, em 2015, foi instaurado do Inquérito Civil nº 001/05-2015, que tinha como objetivo investigar as condições de saúde dos internos do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Itamaracá, o único no Estado de Pernambuco, instaurado pela 21ª Promotoria de Justiça Criminal de Recife, com atuação perante as unidades prisionais da 1ª Vara Regional de Execução Penal. A portaria foi instaurada de ofício, em razão da recente assunção ao cargo (janeiro de 2015) e início de investigações quanto ao tratamento de saúde do HCTP.

Após várias inspeções realizadas no HCTP e reuniões com os agentes públicos de saúde ligados à gestão pública sobre questões atinentes à aplicação da Lei 10.216 e suas implicações no tratamento terapêutico, verificou-se que não estava formatada uma agenda pública institucional sobre três problemas de ordem gravíssima: um que é a desinstitucionalização de pacientes que já estavam desinternados, mas permaneciam na unidade; o segundo que era a falta de equipe para implementação de terapias individuais/singulares; e o terceiro, a medicação, sua forma de uso e o tipo.

Ao final do procedimento, quando do seu arquivamento, surgiu a necessidade de fazer a discussão dos motivos pelos quais a SERES ainda detém toda a estrutura de saúde do sistema prisional, avaliar as responsabilidades e autonomia da secretária de saúde estadual, assim como os processos de municipalização. Também foi verificada a possibilidade de abrir procedimento específico para acompanhar o retorno das unidades prisionais para o SUS, para isso foi encaminhado ofício às promotorias de saúde da capital indagando se essa competência é da promotoria de saúde, para não haver conflito de atribuição. Foi oficiado o CAOP Saúde solicitando que o HCTP e demais unidades do sistema prisional fossem incluídos no projeto ministerial de atenção básica à saúde.

No que se refere à previsão orçamentária de uma equipe denominada EAP, nos mesmos moldes das equipes de apoio ao PSF, com verba de 66 mil reais ao mês, o que facilitaria a articulação da rede de saúde mental, e suas implicações ao serviço de saúde do HCTP no que se refere a pacientes que estão distantes do território, mas têm que vir ao HCTP, por exemplo Petrolina, inclusive serviria para fazer os laudos nesses lugares, evitando deslocamentos desnecessários e caros para o Estado. A criação dessas equipes não foi implementada, para tanto também urgia encaminhamento à promotoria de saúde da capital, pois trata-se de política de saúde pública a nível estadual. Também era preciso dimensionar a necessidade de uma alimentação diferenciada aos internos do HCTP a ser considerada em pareceres técnicos, como salientado, e abertura de um procedimento para acompanhar as necessidades nutricionais do interno. Foi solicitado, ainda, um pedido de sensibilização aos CAOP Cidadania e Saúde, para efetivação da Recomendação do PGJ n.º 005/2013, de atuação em conjunto das promotorias de saúde e cidadania quando o promotor de Justiça criminal instaurar incidente de insanidade mental, para que se controle a porta de entrada do HCTP, sugerindo que sejam observados os exemplos das promotorias do Cabo de Santo Agostinho, de Arcoverde e de Jaboatão dos Guararapes. Também foram oficiados os demais promotores de Justiça de Execução Penais, alertando quanto à necessidade de presença de psiquiatras nas unidades em consonância com a implantação da equipe mínima conforme preconizado na Portaria 482 de 1º de abril de 2014, que institui normas para a operacionalização da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), pois essa garantia diminuiria o encaminhamento de pessoas privadas de liberdade que sem tratamento psíquico muitas vezes eram encaminhadas ao HCTP fora do padrão do laudo de insanidade mental.

Ainda segundo Milton Santos “No lugar cooperação e conflito são a base da vida em comum”. Prédio da Suassuna. Lugar de cooperação e conflito. Sempre. Assim foram realizadas várias audiências para num espaço entender outro espaço e, quem sabe, olhar para o futuro dentro de uma visão transdisciplinar seguindo os ensinamentos de Alvino Augusto de Sá, que defende práticas institucionais para além da comunidade científica, para aproveitar a “rica experiência oriunda das práticas penitenciárias dos demais profissionais”:

A interdisciplinaridade, enquanto constitutiva da criminologia clínica, é condição essencial de sua existência e de seu desenvolvimento. A interdisciplinaridade é condição essencial da interlocução significativa dos técnicos entre si, no dia a dia de sua prática profissional. Já a transdisciplinaridade, além de ser condição obrigatória de interlocução significativa dos técnicos entre si, é condição essencial da interlocução significativa entre os técnicos e os demais profissionais do presídio e a população carcerária e, por fim, da interlocução significativa entre o cárcere e a sociedade.

Não existe mais lá dentro quando se fala em presídios.

A inquietude que levou a este artigo pode ser refletida nesse pensamento de Bhaba (1998, p. 48), que defende a troca discursiva dialógica e a importância do espaço da escrita: “A pergunta ‘O que deve ser feito?’ tem de reconhecer a força da escrita, sua metaforidade e seu discurso retórico, como matriz produtiva que define o ‘social’ e o torna disponível como objetivo da e para a ação”.

Falamos do cuidado na porta de entrada, para garantir a saída. Cumpre agora falar da porta de saída depois de anos de institucionalização, no exemplo que ora tocamos, uma pessoa que passou 33 anos no HCTP.

Em 2017, no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, estavam, no processo de desinstitucionalização, 57 usuários, sendo que 37 têm indicação de residência terapêutica e 20 de retorno à família. São pessoas que não estão mais em cumprimento de medida de segurança. Transitam entre a responsabilidade da Justiça e da Saúde. Hoje, mais da Saúde do Estado do que da Justiça.

A titular da 3ª Promotoria de Justiça de Cidadania do Cabo de Santo Agostinho, Janaína Bezerra Sacramento, ao tomar conhecimento, pela promotoria de execução penal, que o munícipe internado há mais de 30 anos no HCTP precisava da RAPS para ser desinstitucionalizado, abriu procedimento para verificar e acompanhar a atuação da rede, quando então foi garantida uma vaga na residência terapêutica que estava por abrir no município. O Cabo de Santo Agostinho assumiu sua responsabilidade, pois a família já tinha perdido o laço de sociabilidade afetiva com o egresso. Dois anos depois de aberto o procedimento,  o usuário retornou para o seu município em um novo lar. 33 anos no HCTP.

Em todos esses relatos, há o encontro do promotor criminal com o promotor da cidadania, além da solidariedade institucional, o verdadeiro encontro que se queria promover era o do entendimento de crime com a loucura, no sentido psicopatológico, enquanto necessidade de tratamento e de inserção na rede saúde mental do território do louco infrator, não era só caso de polícia a findar numa denúncia. Haveria de sair da casualidade do destino, que é decidido na rotina de quem possui transtorno mental e, em situações de crise e urgência, é encaminhado para o Hospital ou para o HCTP por quem chega primeiro, o SAMU ou o camburão. A diferença não é simplesmente casual, ela é o símbolo de como a questão dos motivos do sofrimento presente e do risco que traz é desviado da saúde e encaminhado ao judiciário, travestido de ocorrência policial.

Por fim, urge sonhar com o fim do manicômio judiciário. Antes da conclusão deste artigo havia uma torcida para que o queniano Ngũgĩ Wa Thiong’o, autor de Grão de Trigo e Sonhos em Tempo de Guerra, primeiro volume de suas memórias, ganhasse o Nobel de Literatura. Como apresentado pela editora: “Sonhos em tempo de guerra é, sobretudo, uma defesa do direito humano de sonhar mesmo no pior dos tempos”. Desse livro, fica o registro de histórias contadas a um menino, nos idos de 1954, que de ouvinte maravilhado passou a narrador ainda na adolescência, e como essa descoberta modificou sua vida na distante Limuru, em África:

Divergências entre os narradores dividiram a multidão em grupos menores de três, quatro ou cinco pessoas ao redor de um narrador com sua própria perspectiva acerca do que ocorrera naquela tarde. Vi-me deslocado de um a outro grupo, catando fragmentos aqui e ali. Gradualmente ajuntei os fios da história, e uma narrativa do que prendia a multidão surgiu, uma cativante história sobre um homem anônimo que fora detido próximo às lojas indianas.

(…)

Eu ouvira histórias similares sobre os guerrilheiros de Mau Mau, em particular de Dedan Kîmathi; mas no caso, até aquele momento, a mágica ocorrera muito longe, em Nyandarwa e nas montanhas do Monte Quênia, e os relatos nunca foram contados por alguém que fora testemunha ocular. Mesmo meu amigo Ngandi, o mais informado contador de histórias, nunca disse que havia de fato visto quaisquer das ações que descrevera tão graficamente. Adoro ouvir, mais do que contar, antes ou depois da refeição. Da próxima vez que encontrasse Ngandi, eu talvez pudesse apresentar uma história própria.

Quiçá ao celebrar 70 anos da Declaração dos Direitos dos Homens seja preciso ir além do próprio homem como enfatiza Ribas:

Parece um caminho sem volta que deve influenciar também o Direito Internacional. Anuncia-se o fim do próprio do Homem e re­conhece-se uma estreita ligação entre o Homem e o absolutamente outro, como todos os demais viventes. Essa influência marcará uma nova civilização em cujos laços de fraternidade e de alteridade serão ainda mais fortes, rompendo também a lógica neoliberal de apropria­ção e acumulo excessivo de bens materiais.

Quiçá em tempos menos sombrios. Quiçá celebrando essas alianças ou amizades políticas como denomina Foucault.

 

REFERÊNCIAS

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[1] Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada.

[2] Lei nº 15.755, de 04 de abril de 2016, que institui o Código Penitenciário do Estado de Pernambuco.

[3] Lei 180/1978, da Itália.

[4] Lei 181/2014, da Itália.

[5] Conforme matéria do jornal italiano La Reppublica, publicada em 17 de maio de 2016. Acesse: <http://www.repubblica.it/solidarieta/diritti-umani/2016/05/07/news/manicomi_criminali_a_che_punto_siamo_-139295925/>.