Jurados Analfabetos no Tribunal do Júri

LUDMYLLA SILVA DE OLIVEIRA

Graduanda do Curso de Direito na Faculdade de Petrolina. 

RESUMO 

Este artigo tem como principal objetivo discutir sobre Tribunal do Júri e as possibilidades de pessoas analfabetas, mesmo sem saber ler e escrever, participarem dessas sessões por meio de mecanismos tecnológicos que facilitem o acesso a peças processuais, possibilitando a elas compor o conselho de sentença e julgar crimes dolosos contra a vida

Palavras – chaves: Tribunal do Júri; Analfabeto; Jurados; Conselho de Sentença.

  • Introdução

Apesar de vivermos em uma época globalizada, em que quase todos têm acesso à informação, grande parte da população brasileira – jovens, adultos e idosos – ainda é composta por analfabetos; não sabem ler e nem escrever, uma vez que não tiveram oportunidade de ter o ensino básico. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o analfabetismo abrange 7,0% da população brasileira, isto é, 11,5 milhões de pessoas. 

A despeito da existência de programas governamentais para alfabetizar as pessoas, com o objetivo de erradicar o analfabetismo, ainda existe alto índice de analfabetos no nosso país. Uma dessas iniciativas é o EJA (Educação de Jovens e Adultos), criado pelo Governo Federal, destinado a jovens e adultos que não tiveram a oportunidade de se alfabetizar na idade indicada, permitindo que os alunos comecem ou retomem os estudos e concluam em menos tempo. Assim, essas pessoas poderão terminar os estudos e conseguir boas oportunidades no mercado de trabalho. 

Tal programa se fundamenta no artigo 208 da Constituição Federal de 1988:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I – educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria;

Ademais, o analfabetismo vai muito além de não saber ler e nem escrever. Existem pessoas que, apesar de saberem o básico, são denominadas analfabetos funcionais, pois conhecem letras e números, porém são incapazes de compreender e interpretar textos, ainda que simples, ou de efetuarem cálculos matemáticos básicos. De acordo com o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), edição 2020, cerca de 29% dos brasileiros são considerados analfabetos funcionais. 

É evidente que, apesar dos avanços, da diminuição dos números, muitos brasileiros são atingidos pelo analfabetismo, o que traz consequências pessoais e para o país, pois o indivíduo fica excluído da sociedade em relação a diversas atividades e não tem capacitação para se inserir no mercado de trabalho. 

  • Tribunal do Júri no Brasil

A chegada no Tribunal do Júri no Brasil se deu aos poucos. Em primeiro lugar, ocorreu por meio de um projeto de iniciativa do Senado Federal do Rio de Janeiro, que tinha como proposta a criação de um juízo de jurados. Em 1822, houve um Decreto Imperial que permitia a formação de um júri composto por 24 jurados. Esses jurados deveriam ter algumas características, como serem homens bons, patriotas, inteligentes e honrados. 

Em 1824, o júri passou a ser regulado pelo artigo 152 da Constituição Federal, em que os jurados se pronunciariam sobre o fato e o juiz de direito aplicaria a lei. De acordo com o artigo 151 da Constituição Federal, o Tribunal do Júri ficaria responsável por julgar ações cíveis e criminais. 

Assim dispõem o artigo 151 da Constituição Federal de 1824:

    Art. 151. O Poder Judicial independente, e será composto de Juizes, e Jurados, os quaes terão logar assim no Civel, como no Crime nos casos, e pelo modo, que os Codigos determinarem.

O Código de Processo Criminal, estabelecido em 1832, abriu a competência do júri criando dois conselhos de jurados. O primeiro era um júri de acusação com 23 jurados, porém foi extinto em 1841, pela lei nº 261, e deu maior ênfase ao juiz de direito e à autoridade policial; já o segundo júri era composto por 12 jurados. 

No ano de 1842, tendo em vista as alterações que o Código Criminal trouxe em relação ao Tribunal do Júri, foi criado o regulamento nº 120, com o objetivo de fazer alterações no que diz respeito ao júri. 

Em 1871, ocorreu uma reforma processual e os juízes de direito passaram a ter competência sobre a pronúncia tanto nas comarcas municipais como nas comarcas especiais e gerais. No ano seguinte, através do disposto no decreto nº 4.992, os júris passaram a ter como presidente o desembargador da Relação do Distrito. 

Logo após a Proclamação da República criou-se a Justiça Federal, através do Decreto nº 848 e, consequentemente, surgiu o Júri Federal, formado por 12 jurados. 

Posteriormente, em 1923, adveio o decreto nº 4.780, fazendo com que o Júri Federal não apreciasse crimes, como por exemplo de desacato, peculato, violação do sigilo de correspondência, falsidade, desobediência, estelionato e concussão. 

Na Constituição de 1934, houve alteração relativa ao júri, como dispõe o artigo 72:

Art. 72. É mantida a instituição do júri, com a organização e as atribuições que lhe der a lei

A constituição de 1937 não trouxe modificações relativas ao Tribunal do Júri, porém, em 1938, adveio o decreto nº 167, o qual disciplinou que o número de jurados seria 7 e que extinguiu a soberania. Assim, a decisão tomada pelos jurados não era absoluta e imutável. Acabar com a soberania fez com que as decisões fossem alteradas quando estivessem em desacordo com as provas apresentadas no processo. 

Na Constituição Federal de 1946, o Tribunal do Júri voltou a ser novamente previsto em lei, bem como foi resgatada a soberania que foi excluída pelo decreto nº 167. Além disso, trouxe a previsão legal referente à Soberania do Tribunal, sigilo das votações, competência do tribunal popular para julgar crimes dolosos contra a vida e manteve o número de jurados estabelecido anteriormente. Ademais, saiu da parte relativa ao Poder Judiciário e passou a fazer parte dos direitos e garantias individuais

Com a Constituição Federal de 1967, foram mantidas as mesmas alterações feitas pela Constituição Federal anterior. 

Já a Constituição Federal de 1988 instituiu o Tribunal do Júri nas Cláusulas Pétreas, assim preconiza o artigo 5º, XXXVIII:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVIII – e reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

  • a plenitude de defesa;
  • o sigilo das votações;
  • a soberania dos veredictos;
  • a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;

Fica evidente que a Constituição Federal de 1988, diferentemente das constituições anteriores, prevê de forma expressa no seu artigo 5º, XXXVIII, quatro garantias, a plenitude de defesa, sigilo das votações, soberania dos veredictos e competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. 

A plenitude de defesa é um princípio usado durante a sessão do Tribunal do Júri, na qual, a defesa poderá utilizar de todos os meios possíveis e legais para convencer os jurados. Vale salientar que esses “meios” não precisam ser apenas argumentos jurídicos, uma vez que convencer os jurados vai muito além disso. Os advogados podem fazer uso de outros meios, como, por exemplo, argumentos religiosos, sociológicos, políticos e filosóficos. 

O sigilo das votações tem como principal objetivo garantir que os jurados possam votar de forma livre, sem influência de outras pessoas. Existem alguns doutrinadores que entendem que esse princípio era inconstitucional, pois iria de encontro com o princípio da publicidade. Porém, é imperioso destacar que o julgamento não fere tal princípio, uma vez que a votação é conduzida pelo magistrado e acompanhada pelo Promotor de Justiça e pelo advogado de defesa. Assim reza o artigo 485, caput do Código de Processo Penal:

Art. 485. Não havendo dúvida a ser esclarecida, o juiz presidente, os jurados, o Ministério Público, o assistente, o querelante, o defensor do acusado, o escrivão e o oficial de justiça dirigir-se-ão à sala especial a fim de ser procedida a votação

A maioria da doutrina entende que o princípio supramencionado é constitucional, pois apesar de existir o princípio da publicidade, ele pode ter algumas limitações em relação à publicidade de atos processuais quando assim for necessário. 

Quando falamos em soberania dos veredictos, significa dizer que a decisão do conselho de sentença, formado por 7 jurados, não pode ser modificada pelo juiz togado, porém isso não quer dizer que tal decisão não cabe recurso, uma vez que é possível que o Tribunal determine que o acusado seja submetido a novo julgamento perante o Tribunal do Júri. O papel do juiz singular no Tribunal do Júri é apenas fazer a dosimetria da pena de acordo com a decisão do conselho de sentença, até porque quem vai dizer se o réu é culpado ou inocente são os jurados, não o juiz singular. 

No que diz respeito à competência para o julgamento de crimes dolosos contra a vida, a Constituição Federal de 1988 faz uma menção genérica em relação à competência do Tribunal do Júri, porém não especifica quais crimes. Assim sendo, tem competência para julgar crimes dolosos contra a vida, na forma tentada e consumada, ou crimes conexos. 

  • Jurados no Tribunal do Júri 

O Tribunal do Júri é formado por um juiz togado, que terá como objetivo presidir a sessão, e por 25 jurados, sendo que 7 deles formarão o conselho de sentença. Para a seleção desses jurados, é necessário um rigoroso procedimento de sorteio, bem como é preciso preencher alguns requisitos essenciais. Senão, vejamos os artigos 425 e 436 do Código de Processo Penal:

Art. 425. Anualmente, serão alistados pelo presidente do Tribunal do Júri de 800 (oitocentos) a 1.500 (um mil e quinhentos) jurados nas comarcas de mais de 1.000.000 (um milhão) de habitantes, de 300 (trezentos) a 700 (setecentos) nas comarcas de mais de 100.000 (cem mil) habitantes e de 80 (oitenta) a 400 (quatrocentos) nas comarcas de menor população. (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008)

 Art. 436. O serviço do júri é obrigatório. O alistamento compreenderá os cidadãos maiores de 18 (dezoito) anos de notória idoneidade.  (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008)

§ 1o Nenhum cidadão poderá ser excluído dos trabalhos do júri ou deixar de ser alistado em razão de cor ou etnia, raça, credo, sexo, profissão, classe social ou econômica, origem ou grau de instrução.  (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008)

§ 2o A recusa injustificada ao serviço do júri acarretará multa no valor de 1 (um) a 10 (dez) salários mínimos, a critério do juiz, de acordo com a condição econômica do jurado. (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008)

Poderão ser jurados aqueles que forem brasileiros, independentemente de serem natos ou naturalizados, uma vez que a lei não faz diferença entre ambos, bem como tenham atingido a maioridade (18 anos), pois a partir dessa idade o indivíduo passa a ter maturidade e também poderá ser criminalmente responsabilizado quando necessário. O jurado deverá gozar de capacidade eleitoral ativa e, por isso, os estrangeiros e aqueles que estão com seus direitos políticos suspensos ou perdidos não poderão ser jurados, por não cumprirem o requisito da cidadania.

A lei exige que o jurado tenha notória idoneidade moral, isto é, boa reputação, boa imagem pública e comportamentos socialmente adequados. Caso o cidadão tenha uma reprovável conduta social, não apresente bom comportamento, não seja alfabetizado e não tenha plenas condições de saúde mental e física, este será impedido de exercer o papel de jurado. 

Em primeiro lugar, para ser um jurado é realizada uma lista geral feita pelo juiz todo ano e o número de pessoas que integrarão tal lista depende do número de habitantes que a comarca possui. Logo após será publicada a lista geral através da imprensa, ela se tornará definitiva. Posteriormente, utilizando essa lista serão sorteados 25 jurados para formar a reunião periódica do júri, os mesmos serão convocados e, depois, será colocada na porta do Tribunal do Júri uma lista com os jurados, acusado, seus procuradores, data, hora e local das audiências de instrução e julgamento. 

Conforme o artigo 436 do Código de Processo Penal, ser jurado é obrigatório, porém existem situações nas quais o cidadão poderá ser dispensado em exercer essa função. Reza o artigo 437 do CPP:

 Art. 437. Estão isentos do serviço do júri: (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008)

I – o Presidente da República e os Ministros de Estado; (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008)

II – os Governadores e seus respectivos Secretários; (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008)

III – os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras Distrital e Municipais; (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008)

IV – os Prefeitos Municipais; (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008)

V – os Magistrados e membros do Ministério Público e da Defensoria Pública; (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008)

VI – os servidores do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública; (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008)

VII – as autoridades e os servidores da polícia e da segurança pública; (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008)

VIII – os militares em serviço ativo; (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008)

IX – os cidadãos maiores de 70 (setenta) anos que requeiram sua dispensa; (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008)

X – aqueles que o requererem, demonstrando justo impedimento.

Especificamente no inciso X do supracitado artigo, o legislador permitiu que a isenção fosse concedida para aqueles que a requererem demostrando justo impedimento, como, por exemplo, em razão de convicção religiosa. Em virtude disso, deverá o cidadão cumprir uma obrigação alternativa na forma do artigo 5º, inciso V, da Constituição Federal. Caso o indivíduo se recuse a cumprir a obrigação alternativa, ocorrerá a perda ou suspensão dos seus direitos políticos como forma de sanção.

Além de deveres, os jurados também possuem alguns direitos, previstos nos artigos 439 e 440 do Código de Processo Penal:

 Art. 439. O exercício efetivo da função de jurado constituirá serviço público relevante e estabelecerá presunção de idoneidade moral. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

Art. 440. Constitui também direito do jurado, na condição do art. 439 deste Código, preferência, em igualdade de condições, nas licitações públicas e no provimento, mediante concurso, de cargo ou função pública, bem como nos casos de promoção funcional ou remoção voluntária. (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008)

Os jurados, por exercerem um serviço público, obedecerão às regras e observarão os impedimentos do artigo 448 do Código de Processo Penal, quais sejam, não poderão servir no mesmo conselho de sentença marido e mulher, ascendente e descendente, sogro e genro/nora, irmãos e cunhados, tio e sobrinho, padrasto, madrasta, enteado e pessoas que possuam união estável reconhecida como entidade familiar. 

Ademais, são aplicáveis aos jurados as regras de suspeição e impedimento previstas nos arts. 252 e 254 do Código de Processo Penal:

Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que:

I – tiver funcionado seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, como defensor ou advogado, órgão do Ministério Público, autoridade policial, auxiliar da justiça ou perito;

II – ele próprio houver desempenhado qualquer dessas funções ou servido como testemunha;

III – tiver funcionado como juiz de outra instância, pronunciando-se, de fato ou de direito, sobre a questão;

 IV – ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito.

 Art. 254. O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes:

I – se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles;

II – se ele, seu cônjuge, ascendente ou descendente, estiver respondendo a processo por fato análogo, sobre cujo caráter criminoso haja controvérsia;

III – se ele, seu cônjuge, ou parente, consangüíneo, ou afim, até o terceiro grau, inclusive, sustentar demanda ou responder a processo que tenha de ser julgado por qualquer das partes;

IV – se tiver aconselhado qualquer das partes;

V – se for credor ou devedor, tutor ou curador, de qualquer das partes;

Vl – se for sócio, acionista ou administrador de sociedade interessada no processo.

  • Jurados analfabetos no Tribunal do Júri

É notório que os jurados selecionados para compor o conselho de sentença são pessoas alfabetizadas que sabem ler e escrever para entender os autos do processo e toda a dinâmica do Tribunal do Júri. 

Entretanto, existem pessoas que cumprem os requisitos trazidos pela lei, porém são analfabetas e, por esse fator, não conseguem entender o que está escrito nos autos do processo e, consequentemente, acabam não compondo o conselho de sentença.

O §1º do art. 436 do Código de Processo Penal estabelece que nenhum cidadão poderá ser excluído dos trabalhos do júri ou deixar de ser alistado em razão de cor ou etnia, raça, credo, sexo, profissão, classe social ou econômica, origem ou grau de instrução. Assim sendo, por força do artigo supracitado, os analfabetos não podem ser discriminados em virtude do seu grau de instrução e, consequentemente, não podem ser excluídos do papel de serem jurados, deve-se procurar meios para que eles consigam acompanhar o processo e a sessão do tribunal do júri, ainda que não saibam ler e nem escrever.

A discussão sobre o analfabeto poder ser jurado coloca em conflito o princípio da isonomia, que preconiza que o analfabeto deve ser tratado igualmente às demais pessoas, e o direito a liberdade do acusado, pois, a partir do momento que o réu passa a ser julgado por um jurado analfabeto, pode ocorrer que o mesmo se prejudique, uma vez que o jurado não poderá não compreender adequadamente o que está julgando naquele momento. 

Assim, é necessária a existência de mecanismos que permitam aos cidadãos analfabetos a possibilidade de serem jurados, como por exemplo um mecanismo de leitura com voz que narre o teor das peças, permitindo ao indivíduo selecionar o trecho da peça que gostaria de ouvir naquele momento, com a disponibilidade de fones de ouvido para que os jurados possam ouvir a narrativa. 

  • Ministério Público

O Ministério Público, com o advento da Constituição Federal de 1988, recebeu a função de defender a ordem jurídica, o interesse da sociedade, bem como fiscalizar a lei. Com isso, ganhou autonomia e independência funcional, não ficando submetido a nenhum outro órgão. Assim estabelece o caput do artigo 127 da Constituição Federal:

Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Quando falamos que o Ministério Público atua no interesse da social, isso quer dizer que esse órgão age em questões para o bem comum das pessoas, ou seja, temas de interesse do público em geral, lutando pelos direitos individuais, para que isso não fique apenas na seara processual, trabalhando para que possamos formar uma sociedade melhor. Nesse sentido, temos o pensamento de Goulart:

O Ministério Público resolutivo é ativo no trabalho de construção da sociedade livre, justa e solidária […]. Na esfera cível, assume o papel de agente político que lhe foi confiado pela sociedade, superando a perspectiva meramente processual de suas intervenções. Ao politizar sua atuação, ocupa novos espaços, habilita-se como negociador e indutor de políticas públicas, age integralmente e em rede com os demais sujeitos coletivos nos mais diversos níveis – local, regional intraestatal, estatal, regional supraestatal e global. O Judiciário torna-se espaço excepcional da sua atuação. Esse é o novo caminho que o Ministério Público deve seguir para consolidar o seu papel de agente privilegiado da luta pela democratização das relações sociais e pela globalização dos direitos da cidadania.

Além disso, esse órgão tem atuação resolutiva na política de incentivo ao poder judiciário, selecionando os analfabetos quando forem formar a lista anual de jurados para compor o conselho de sentença e induzindo o mesmo a utilizar mecanismos tecnológicos, com base na Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015), fazendo valer o princípio da isonomia e o princípio da dignidade da pessoa humana, ambos previstos na Constituição Federal.

A resolução 230/2016 do CNJ e a Lei brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015) vêm com o objetivo de fazer com que as atividades do poder judiciário se adequem às pessoas com deficiência, para que não haja discriminação e que as mesmas possam ter oportunidades e acessibilidade, possibilitando a elas o pleno exercício de seus direitos. 

De acordo com o artigo 74 da Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015) e com a resolução supramencionada, é plenamente possível que um analfabeto seja jurado em uma sessão de Tribunal do Júri, através de mecanismos que permitam o jurado a ouvir na íntegra o conteúdo dos autos processuais. Vale ressaltar que o jurado é uma pessoa que entende todos os debates entre Ministério Público e defesa e, em um caso assim, por não saber ler e nem escrever, necessita de auxílio para assimilar o conteúdo dos autos processuais.

Tal resolução é um ato infralegal e por esse fato não tem força de lei, ela apenas vem com o condão de complementar um ato normativo que já existente, tendo como fundamento infraconstitucional a Lei Brasileira da Inclusão (Lei 13.146/2015) e como fundamento de validade a Constituição Federal e os princípios basilares, quais sejam: princípio da dignidade da pessoa humana e princípio da isonomia.

O princípio da dignidade da pessoa humana está previsto no rol dos princípios fundamentais da Constituição Federal, mais especificamente no artigo 1º, inciso III. Trata-se de um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e busca assegurar aos indivíduos os direitos que devem ser respeitados pela sociedade para preservar o ser humano, garantindo que as pessoas vivam com dignidade. Além disso é algo inerente ao indivíduo, sendo algo dotado de irrenunciabilidade, inalienabilidade, intransferibilidade e irrevogabilidade. Sobre esse princípio, temos o pensamento de Ingo Wolfgang Sarlet:

[…] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Nesse mesmo sentido temos o princípio da isonomia, que também é conhecido como princípio da igualdade, que busca garantir que a lei seja aplicada de forma igual para todas as pessoas. Existem dois tipos de isonomia, quais sejam: formal e material. 

A isonomia formal é a igualdade prevista na lei, trazendo a ideia de que as normas vigentes no nosso ordenamento jurídico sejam aplicadas a todas as pessoas, independente dessas pessoas serem diferentes ou não. Já a isonomia material vem com o objetivo de diminuir as diferenças entre as pessoas, fazendo com que a lei seja aplicada de maneira mais justa, criando mecanismos para diminuir a desigualdades entre os indivíduos. Assim, reza o caput do artigo 5º da Carta Magna:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […]

Portanto, não restam dúvidas que o Ministério Público tem como objetivo a luta por interesses sociais sem se restringir apenas às demandas meramente processuais, procurando formas alternativas de resolver de conflitos, bem como a racionalização daquilo que lhe é atribuído. Assim, é notório que esse órgão tem a importante função de ser agente transformador da sociedade na busca pelos direitos e interesses em geral.

  • Considerações finais

Como dito, apesar de ser um dever do estado garantir a educação a todas as pessoas (artigo 208 da Constituição Federal), no Brasil existe uma significativa parcela de analfabetos, que não dominam a leitura nem a escrita. Além disso, há um considerável número daqueles que sabem ler e escrever mas não têm a capacidade de interpretar textos simples, os denominados como analfabetos funcionais. Assim, fica evidente que as pessoas analfabetas ficam à margem da sociedade, perdem várias oportunidades e ficam impossibilitadas de exercerem o papel de jurados e de compor o conselho de sentença.

O Tribunal do Júri é um instituto que sempre esteve presente, elencado dentre os direitos e garantias individuais. No Brasil ,foi introduzido em 1822, ainda no Império. Daí para cá, esse instituto passou por evoluções e foi se amoldando aos regimes políticos e trouxe a possibilidade de os cidadãos poderem julgar e aplicar a lei em alguns tipos de crimes. 

A Constituição Federal de 1988 manteve o tribunal do júri entre os direitos e garantias fundamentais, trouxe novamente a soberania dos veredictos estabeleceu a competência. Com isso, atribuiu à sociedade o julgamento de crimes dolosos contra e vida e deu ao magistrado a função de presidir a sessão e dosar a pena. Assim, o Tribunal do Júri passou a ser um instituto democrático, em que pessoas que não são da área jurídica, isto é, não possuem conhecimento acerca da lei, decidam pela absolvição ou condenação do réu. 

No mundo de tecnologias em que vivemos, nada impede que um analfabeto seja jurado. É uma questão de utilizar essas ferramentas ao nosso favor. Já que se tratam de pessoas que não podem ler os autos dos processos, seria necessário articular mecanismos que permitissem a essas pessoas ouvir trechos das peças processuais para ficarem inteiradas durante a sessão do Tribunal do Júri.

O Ministério Público tem papel fundamental nessa questão, uma vez que defende os direitos e interesses da sociedade, e pode induzir o poder judiciário a selecionar analfabetos para compor o conselho de sentença e, além disso, incentivar o uso de tecnologias para encaixar os analfabetos no Tribunal do Júri, tudo isso com base na Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015) e na resolução 230/2016 do CNJ.

Diante de todo exposto, fica evidente que apenas através da inclusão dos analfabetos no Tribunal do Júri possibilitaremos a essas pessoas a oportunidade de exercer e democratizar o papel de jurado, fazendo com que elas não se sintam tão excluídas das funções da sociedade.

REFERÊNCIAS

FERRARO, Alceu Ravanello. História inacabada do analfabetismo no Brasil. São Paulo: Editora Cortez, 2009. 

FREIRE, Ana Maria Araújo. Analfabetismo no Brasil. São Paulo: Editora Cortez, 1989. 

GOULART, Marcelo Pedroso. Elementos para uma teoria geral do Ministério Público. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013.

JUNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva Jur, 2021. 

LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: JusPodivm, 2019. 

MORAES, Guilherme Pena de. Constituição Federal. São Paulo: Editora Foco, 2021.

NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: Editora Forense, 2020.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.