A relevância da participação da vítima no acordo de não persecução penal

Gustavo Henrique Holanda Dias Kershaw

Promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Especialista em Direito do Estado pela Faculdade Estácio do Pará (FAP) e em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor de Processo Penal no Centro Universitário Maurício de Nassau (UNINASSAU/Recife)

Valéria Cristina Meira de Oliveira

Assessora de Membro do Ministério Público de Pernambuco. Bacharela em Direito pela Faculdade Integrada Brasil-Amazônia (FIBRA). Especialista em Direito Penal e Processual Penal também pela FIBRA

RESUMO: Apesar de ser afetada pela prática delituosa, durante muito tempo a vítima tem sido deixada em segundo plano. Por anos, seus anseios e necessidades foram negligenciados, sendo o acusado o centro das atenções da maioria das produções legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais. Assistimos a uma gradual incorporação de mecanismos de solução consensual de conflitos na seara criminal, sendo os Acordos de Não Persecução Penal o mais recente mecanismo. É nesse contexto que o presente artigo visa analisar a redescoberta da vítima e seu impacto no processo penal brasileiro, notadamente a necessidade de uma participação efetiva nos Acordos de Não Persecução Penal.

PALAVRAS-CHAVE: Vítimas; Ministério Público; ANPP.

1 Introdução

Em um Estado Democrático e de Direito, deve-se dar voz às vítimas de crimes e respeitá-las. O presente trabalho busca analisar a importância, a participação e o papel das vítimas de crimes no processo penal brasileiro, especificamente no que diz respeito aos Acordos de Não Persecução Penal (ANPP) firmados pelo Ministério Público e os acusados de crimes.

O novel art. 28-A do Código de Processo Penal (CPP) trouxe tímidas – porém relevantes – providências quanto à participação da vítima no ANPP. Citemos, por exemplo, que uma das possíveis condições do ANPP, conforme disposto no inciso I do referido artigo, é o agente “reparar o dano ou restituir a coisa à vítima”, em que se dessume que o legislador quis privilegiar, a priori, o ressarcimento da vítima, eis que ela é diretamente atingida pela prática do delito. 

Contudo a participação da vítima não deve se restringir aos aspectos de ressarcimento: ela tem direito a um processo penal democrático, no qual se inclui, por exemplo, o direito de ser acolhida e ouvida pelo sistema de justiça criminal. 

O tema encontra relevância, uma vez que, dentro das perspectivas de justiça criminal negociada e de garantismo penal integral, não se pode mais restringir a relação processual penal entre Estado-acusação e acusado, daí a necessidade cada vez maior de inclusão da vítima no processo negocial-decisório. 

Sob a perspectiva anteriormente mencionada, de um garantismo penal integral, busca-se o entendimento de que, na aplicação e interpretação dos direitos fundamentais, não se pode esquecer da garantia de eficiência e segurança do cidadão. Com efeito, a garantia de segurança tem status constitucional (art. 144) e esse dever do Estado se aplica tanto no âmbito individual quanto coletivo – segurança ao cidadão e à sociedade. Como ensina Douglas Fischer, não basta evitar as condutas criminosas, mas também apurar devidamente o ato ilícito e a punição do responsável. No contexto de garantias fundamentais das vítimas, é importante destacar que a devida apuração e punição do crime é um compromisso internacional de Direitos Humanos e o Brasil tem sido reiteradamente chamado às instâncias internacionais por não investigar e punir delitos. 

2 A vítima: uma breve perspectiva criminológica

O conceito de vítima não é de fácil formulação e reflete momentos históricos diversos. Vítima pode significar: o animal ou pessoa sacrificado à divindade (sentido originário); aquele que suporta as consequências de sua própria conduta, de outra pessoa ou como obra do acaso (sentido geral); aquele que sofre a ofensa direta ao bem jurídico tutelado pelo direito (sentido jurídico-geral); a pessoa que sofre as consequências da infração à norma penal (sentido jurídico-penal-restrito); e, por fim, o indivíduo ou comunidade atingidos pelas consequências do delito.

Durante muito tempo, a vítima foi esquecida pela ciência jurídica. Foi a partir dos estudos criminológicos que sua importância no direito penal e no processo criminal foi reestabelecida, fazendo surgir, inclusive, a vitimologia como importante ramo criminológico, que estuda cientificamente as vítimas de delitos. Dentre as figuras processuais, a vítima, certamente, tem sido relegada ao ostracismo, pois “um simples percorrer pelo Direito Penal e pelo Processo Penal é suficiente para comprovar a hipótese. […] o modelo de Direito Penal retribucionista – cujo veículo viabilizador é o Processo Penal – tem como marca perene a marginalização da vítima”.

A doutrina costuma apontar três momentos, ou fases, quanto à importância da vítima no sistema de justiça criminal lato sensu. Essas fases são comumente designadas como idade de ouro, neutralização e, por fim, resgate do papel da vítima. 

A chamada idade de ouro se relaciona com o império da vingança privada, colocando a vítima no centro do fenômeno criminal, verdadeira protagonista, porquanto tinha o direito de realizar a justiça com suas próprias mãos. Se antes essa vingança se mostrava ilimitada, aos poucos foram sendo introduzidos limites de proporcionalidade na resposta punitiva como, por exemplo, na Lei de Talião, conquanto estabelecesse embriões de proporcionalidade entre crime e pena. Surgem, ainda, pequenos mecanismos de composição civil entre vítima e acusado. 

Posteriormente, com a implementação do monopólio do poder punitivo pelo Estado, observa-se a marginalização da vítima criminal, estabelecendo-se e fortalecendo-se unicamente a relação Estado x acusado. Em outras palavras, a vítima perde seu poder de ação/reação, assumindo, em seu lugar, o Poder Público. Há, verdadeiramente, uma gradativa diminuição ou neutralização do papel da vítima, até seu quase desaparecimento. Leciona Schecaira, a propósito, que “a partir do momento em que o Estado monopoliza a reação penal, quer dizer, desde que proíbe às vítimas castigar as lesões de seus interesses, seu papel vai diminuído, até quase desaparecer”. 

Por fim, na fase denominada de resgate, ou de redescobrimento, iniciada em meados do século XX, há uma gradativa (re)valorização do papel da vítima. É a partir desse momento histórico que surge o renascimento ou o despertar do interesse pela vítima, motivado por razões de ordem político-social e acadêmica. Este alvorecer repercute não apenas na seara da Criminologia, mas também no Direito Penal e Processual Penal. Henting e Mendelsohn são apontados como os principais responsáveis pela vitimologia clássica.

Entre modelos de resposta estatal ao crime, ganha destaque o paradigma consensual cujo objetivo é a inserção de acordos e conciliações para reparação dos danos e satisfação da sociedade por justiça. Nessa perspectiva, ensinam Rogério Sanches Cunha e Renee do Ó Souza que tais modelos:

Podem ser divididos em (1) modelo pacificador ou restaurativo, voltado à solução do conflito entre o autor do crime e a vítima (reparação de danos) e (2) modelo de justiça negociada (plea bargaining), em que o agente, admitindo a culpa, negocia com o órgão acusador detalhes como a quantidade da pena, a forma de cumprimento, a perda de bens e também a reparação de danos. 

3 Análise da participação da vítima no Processo Penal brasileiro 

Muito, e sempre, se discutiu e evoluiu quanto às garantias do acusado no processo penal. Todavia, o mesmo não acontecia em relação à vítima, a qual, por anos, fora ignorada. O Direito Penal, por exemplo, praticamente teve como meta a tríade delito-delinquente-pena. O outro componente do contexto criminal, a vítima, jamais foi levado em consideração. Isso apenas passou a ocorrer quando outras ciências, e principalmente a Criminologia, tiveram de vir em auxílio do Direito Penal para a análise aprofundada do crime, do criminoso e da pena.

De igual forma, no processo penal, a partir do momento em que o Estado monopoliza a reação penal – isto é, torna-se o titular do jus puniendi – o papel da vítima foi diminuindo, limitando-se “à condição de elemento informador para o Estado sobre eventuais lesões a bens jurídicos sofridos, passando de protagonista da resolução do fato delituoso a objeto de prova do delito”.

É neste contexto que, em 1941, fora promulgado o Código de Processo Penal, que, em sua redação original, trouxe tímidos mecanismos de participação da vítima na processualística penal.

Na fase pré-processual, isto é, a do inquérito policial, temos tão somente o art. 14, segundo o qual o ofendido poderá requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade. Note-se que, apesar de prever, o legislador limitou tal participação à deliberação do Delegado de Polícia, que poderá negar o pedido e do qual não há previsão de recurso.

Durante o processo penal, em sentido estrito, a participação da vítima torna-se um pouco mais ativa. Exemplificando, citemos a sua iniciativa para ingressar com a queixa nos crimes de ação penal privada (art. 30), a manifestação do interesse da vítima como autorização para o Ministério Público ingressar com a ação penal, essa denominada ação penal pública condicionada à representação (art. 24) e, também, a possibilidade da vítima oferecer a queixa-crime quando a ação penal pública incondicionada não for intentada pelo Ministério Público no prazo legal (art. 29), como um verdadeiro mecanismo de controle, pela vítima, sobre a inércia do Parquet. 

Trouxe, ainda, a possibilidade de o ofendido, ou de representante legal ou outros legitimados ali taxativamente elencados, habilitar-se como “assistente do Ministério Público”. Ensina a doutrina que o assistente funciona “como verdadeiro auxiliar do Ministério Público, prestando auxílio ao órgão acusador, suprindo, inclusive, eventuais falhas cometidas pelo Parquet no curso da persecução penal”. Assim sendo, a atuação da vítima enquanto assistente não se restringe – como aponta parcela da doutrina – a meros interesses patrimoniais. 

A atuação da vítima no processo penal como assistente busca dar espaço àquele que integrou a prática delituosa em seu aspecto negativo e, portanto, não possui tão somente interesse na reparação do dano. Vai além, busca a resposta estatal em relação àquele que lhe violou um bem jurídico. Logo:

[…] parece-nos evidente a preocupação legislativa com a participação do ofendido na reprovação estatal à prática do fato delituoso, evidenciado, então, outra ordem de interesse jurídico atribuído àquele que por ele foi vitimado. Interesse jurídico, sim, na própria aplicação da sanção penal.

Por fim, o Código trouxe a condução coercitiva da vítima para que preste suas declarações em juízo caso, devidamente intimada, deixe de comparecer sem motivo justificado.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a preocupação com a vítima fora redescoberta. Ali tiveram início os primeiros estudos da atualmente conhecida como Vitimologia. Fernandes e Fernandes ensinam que

[…] somente a partir de 1956, com o advogado de origem israelita Benjamin Mendelsohn, dando forma definitiva às suas ideias e estudos antes publicados sobre a vítima, é que a Vitimologia aflorou com essa denominação e com contexto de disciplina criminológica. […] Anos após, em 1973, na cidade de Jerusalém, em Israel, foi levado a efeito o 1º Congresso Internacional de Vitimologia […].

No âmbito do processo penal brasileiro, a revitalização da importância da vítima fora reforçada – mas ainda de forma singela – com as alterações trazidas pelas Leis nº 11.690 e 11.719, ambas datadas de 2008.

A primeira trouxe importantes alterações no que concerne à comunicação à vítima de determinados atos processuais. O novel artigo 201 dispõe que o ofendido será comunicado quanto ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem. Sobre a temática:

[…] a reaproximação dos protagonistas do crime ao processo seria uma necessidade para a compreensão do processo penal como um instrumento efetivo. Nesse diapasão, as disposições normativas do Código de Processo Penal, poderiam ser ajustadas para viabilizar uma participação efetiva da vítima, com a previsão de ciência desta de todos os atos da persecução penal, desde a fase pré-processual. Essa tendência foi sufragada no art. 201, §2º, do CPP 

Assim, “buscou o legislador romper com o tradicional desequilíbrio informativo e enviar uma mensagem ainda tímida de que a justiça penal preocupa-se em manter a vítima atualizada quanto ao estado da causa, e, sobretudo, prevenir a ocorrência de uma revitimização”.

Malgrado o termo utilizado pelo legislador indique uma obrigatoriedade do juízo, trata-se, a bem da verdade, de uma faculdade da vítima que, de fato, demonstre o interesse em ser comunicada. É assim porque o ofendido não pode ser submetido ao acompanhamento forçado do processo penal, sobretudo diante dos danos por ele sofridos. A lei previu, também, que tais comunicações deverão ser feitas no endereço indicado pela vítima, admitindo-se ainda, por opção dela, o uso de meio eletrônico.

Indo mais além, o parágrafo 5º do referido artigo prevê a possibilidade de encaminhamento da vítima para atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, a expensas do ofensor ou do Estado. A despeito de críticas quanto à concretização, é louvável a retomada da preocupação do legislador com a vítima e com os danos originados pela infração penal. A intenção, portanto, foi boa. 

Por sua vez, a Lei nº 11.719/2008 determinou que, na prolação da sentença condenatória, o juiz deverá fixar um valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração penal. Vejamos:

Art. 397. O juiz, ao proferir sentença condenatória:

IV – fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido; 

A temática enfrenta debates de natureza constitucional e processual penal, eis que transfere questões cíveis para dentro do processo penal, devendo a defesa do acusado se preocupar, também, com a fixação da reparação do dano ao ofendido, enquanto a Acusação Pública estará focada no deslinde criminal, e a vítima (assistente da acusação) preocupada com a apresentação de provas cíveis para justificar a fixação do dano na eventual sentença condenatória, ou seja, a vítima estará atuando da mesma forma que na área cível, parte autora.

Em que pese os entraves de tal previsão para o processo penal, é notória a evolução quanto à celeridade para a vítima em obter a reparação, posto que, antes dessa alteração legislativa, o ofendido deveria, primeiramente, aguardar o trânsito em julgado da sentença penal condenatória para, somente após, ajuizar a ação civil ex delicto.

Agora, com a nova sistemática, a vítima tem a garantia de liquidar o valor fixado na esfera penal. Assim, tentando resgatar a importância do papel da vítima, o legislador primou pela celeridade e economia processual, buscando evitar um moroso processo autônomo de reparação civil do dano decorrente um ilícito penal.

Mais tarde, tivemos outras inovações, desta vez no campo da legislação extravagante, que conferiram à vítima o papel de destaque. Exemplificando:

  • Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, introduzindo no ordenamento jurídico institutos despenalizadores (composição civil, transação penal e a suspensão condicional do processo), bem como buscou privilegiar a participação da vítima na resolução do conflito;
  • Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999, que criou o Sistema Nacional de Proteção a Vítimas e Testemunhas;
  • Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, conhecida como “Lei Maria da Penha”, a qual criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, dentre os quais a concessão de medidas protetivas a favor da vítima-mulher.

Por fim, é imperioso destacar que todos os instrumentos aqui citados, ao fim e ao cabo, trazem a vítima como o elemento-chave para a realização da justiça, razão pela qual deve-se recuperar a sua importância, inserindo-a, constantemente no debate processual penal. É assim porque “la víctima es, junto al victimario, un protagonista de conflicto penal, por lo que cualquier solución idónea desde el punto de vista político (pacificación social) y desde el punto de vista empírico (reparación del daño) debe atender a su interés”.

4 Ministério Público e o direito das vítimas criminais

De acordo com a Constituição da República, uma das funções institucionais do Ministério Público Brasileiro é a titularidade da ação penal pública (art. 129, inciso I). Ao adotar o Sistema Acusatório, a Carta Magna posiciona o Ministério Público como verdadeiro representante e defensor da vítima e da sociedade no sistema de Justiça criminal, outorgando-lhe relevante papel em dar voz a quem foi vitimado por uma infração criminal. Com efeito, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.570/DF, anota que “a Constituição de 1988 fez uma opção inequívoca pelo sistema penal acusatório”. Ainda quando não titular da ação penal, caso da ação penal privada, o Ministério Público tem importante papel fiscalizador. 

No âmbito ministerial, frente ao contexto de necessidade de proteção às vítimas de crimes, a Resolução n. 181 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que dispõe sobre instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público, bem como disciplina os Acordos de Não Persecução Penal (ANPP), estabelece um capítulo especial dedicado aos direitos das vítimas criminais. Objetiva-se adotar “todas as medidas necessárias para a preservação dos seus direitos, a reparação dos eventuais danos por ela sofridos e a preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem”. 

Em síntese, o ato normativo acima mencionado estabelece os seguintes direitos das vítimas:

  • esclarecimento sobre seus direitos materiais e processuais (art. 17, caput);
  • segurança quando sofrerem ameaça ou que, de modo concreto, quando estiverem suscetíveis a sofrer intimidação por parte de acusados, de parentes do acusado ou pessoas a seu mando, podendo o membro requisitar proteção policial em seu favor (art. 17, § 1º);
  • encaminhamento da vítima para inclusão em Programa de Proteção de Assistência a Vítimas ameaçadas ou em Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados, conforme o caso e quando presentes os pressupostos legais (art. 17, § 2º);
  • encaminhamento da vítima e de outras pessoas atingidas pela prática do fato criminoso apurado à rede de assistência, para atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, a expensas do ofensor ou do Estado (art. 17, § 4º);
  • possibilidade de prestar declarações e informações em geral, eventualmente sugerir diligências, indicar meios de prova e deduzir alegações, que deverão ser avaliadas fundamentadamente pelo membro do Ministério Público (art. 17, § 5º);
  • comunicação da vítima ou, na ausência desta, dos seus respectivos familiares sobre o oferecimento de ação penal (art. 17, § 7º).

Ressalte-se que nas investigações que apurem notícia de violência manifestada por agentes públicos em desfavor de vítimas negras, o membro do Ministério Público deve levar em consideração, para além da configuração típico-penal, eventual hipótese de violência sistêmica, estrutural, psicológica, moral, entre outras, para fins dos encaminhamentos referentes aos direitos das vítimas (art. 17, § 8º). Ademais, os direitos estabelecidos às vítimas podem ser extensíveis aos seus familiares (art. 17, § 6º).

No âmbito dos programas especiais de proteção a vítimas ameaçadas, disciplinados pela Lei Federal n. 9.807/1999, o CNMP editou a Resolução n. 93/2013, a qual estabelece, dentre outras diretrizes de atuação ministerial, a prioridade na tramitação do inquérito e do processo criminal em que figure vítima protegida pelo programa. Ademais, o membro deverá diligenciar para cumprir rigorosamente todos os prazos processuais previstos em lei, se não for possível antecipá-los, bem como requerer a produção antecipada da prova que demande a participação da pessoa assistida. 

Destaque-se, por fim, a tramitação no CNMP da Proposta de Resolução 24/09/2019 Nº 1, de autoria do então Conselheiro Lauro Machado Nogueira, cujo objetivo é dispor sobre a Política Institucional de Proteção Integral às vítimas de infrações penais e atos infracionais, voltada à assistência, reparação e respeito à dignidade e aos direitos fundamentais das vítimas. Na exposição de motivos, o promotor de Justiça e ex-Conselheiro do CNMP destaca:

A atuação do Estado na defesa das vítimas da criminalidade experimentou, em vários lugares, nos últimos anos, uma guinada significativa. A vítima, antes relegada a um mero elemento de prova processual, foi redescoberta e alçada a protagonista e receptora de uma necessária atividade protetiva, capaz de lhe assegurar participação ativa na persecução e lhe restaurar os direitos violados pela ação delituosa.

No Brasil, embora a legislação tenha avançado neste tema, a falta de uma sistematização e de um arranjo institucional adequados ainda impedem que essa proteção seja efetivada, pelo que a atuação consertada do Ministério Público pode ser decisiva para viabilizar os direitos das vítimas no Brasil.

Sem dúvida, dado o seu desenho constitucional e as atribuições a si conferidas pela Constituição da República, é o Ministério Público brasileiro a instituição a encabeçar o conjunto de reformas necessárias para promover a garantia de direitos das vítimas de crimes e tal tarefa, além de necessária, é urgente. 

5 Os Acordos de Não Persecução Penal e as vítimas

Para Francisco Dirceu Barros, um dos princípios estruturantes dos acordos criminais é o da minimização dos danos causados à vítima, porquanto “no direito criminal consensual, a vítima tem um olhar diferenciado, e o princípio em estudo defende que a negociação deve priorizar a restauração dos danos materiais, emocionais e psicológicos causados à vítima” .

Dentre os crimes possíveis de celebração dos Acordos de Não Persecução Penal temos: estelionato, furto, acidentes de trânsito, dano ao patrimônio e diversos outros, nos quais há ofensa ao bem jurídico de alguém. Logo, é nesse contexto que urge relevante a participação da vítima na celebração do ANPP. Afinal, quem mais “competente” para dizer o que e/ou de que forma foi afetado pelo crime do que a própria vítima?

Em outras palavras, devem-se empenhar esforços no intuito de ter a participação conjunta e ativa da vítima – empoderando-a – na busca de resultados restaurativos, isto é, na celebração do acordo de não persecução, de modo que ele cumpra os fins aos quais fora proposto: de correção, de reparação de danos, de restabelecimento de paz social e de descongestionamento do Poder Judiciário.

Como dito alhures, uma das condições para a celebração do ANPP e que poderá, portanto, materializar uma de suas cláusulas é a reparação do dano ou restituição da coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo (art. 28-A do CPP). Essa condição já se fazia presente na Resolução 181/2017 do CNMP em seu art. 18, inc. I. 

A inviabilidade do ressarcimento pode ser jurídica, por exemplo, nos crimes de perigo, sem lesão efetiva causada – ou mesmo econômico-financeira, quando o acordante não dispõe de recursos para ressarcimento do lesado ou “vulnerabilidade financeira”. Cumpre ressaltar que cabe ao próprio acusado o ônus de provar a impossibilidade. Nessa hipótese, devem ser intensificadas as demais condições como, por exemplo, a prestação de serviços à comunidade. 

Portanto, havendo vítima, é importante que o membro do Ministério Público leve em consideração os aspectos a seguir mencionados. 

I. Identificar a(s) vítima(s)

Inicialmente, quando da recepção de autos de procedimentos investigatórios, é fundamental que se identifique a(s) vítima(s) do delito que, como se sabe, pode ser uma pessoa física, um conjunto de pessoas, uma pessoa jurídica de direito público ou de direito privado, exceto nos casos de crimes vagos, isto é, “aqueles que não possuem um sujeito passivo determinado, figurando no polo passivo, em geral, a sociedade” .

Analisando o Código Penal, por exemplo, detectamos os seguintes exemplos de crimes em que há vítima e, em tese, passíveis de ANPP: furto (art. 155) e furto qualificado (art. 155 §§ 4º, 5º, e 6º); dano qualificado; apropriação indébita (art. 168) e apropriação indébita previdenciária (art. 168-A); receptação (art. 180) etc.

Assim, urge destacar que o ANPP sofre vedação no que tange às infrações penais com violência ou grave ameaça contra a pessoa. Comungamos do entendimento de que a violência ou grave ameaça que impede a celebração do ANPP é a intencional, e não a involuntária (culposa). No mesmo sentido, encontramos o Enunciado nº 23 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG), in verbis:

É cabível o acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado violento, uma vez que nos delitos desta natureza a conduta consiste na violação de um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pela agente, apesar de previsível.

II. Notificar e Ouvir a vítima: fase de pré-celebração do ANPP

É fundamental a escuta da vítima previamente ao ANPP para compreender a extensão dos danos sofridos – sejam materiais, sejam morais. Para tanto, a vítima deve ser notificada quanto à possibilidade de sua participação nas tratativas do acordo, o que garante, ademais, a transparência da negociação. A oitiva inicial da vítima deve se dar de forma separada do acusado, ainda que posteriormente possa também estar presente na celebração do acordo. Nesse sentido: 

Parece fortemente recomendável ouvir a vítima previamente às tratativas. Afinal, […], o acordo de não persecução penal possui objetividade negocial híbrida ou mista (protege tanto a vítima quanto a sociedade, por mesclar características da composição civil dos danos e da transação penal), o que confere grande legitimidade ao instrumento consensual. Portanto, para não faltar à sistemática do acordo a sua objetividade negocial híbrida e a legitimidade desejadas, é preciso conferir especial atenção aos interesses da vítima, ouvindo-a previamente à audiência extrajudicial de acordo.

 

Nesta fase, o membro ministerial terá a possibilidade de aferir a extensão do dano e mensurar, tanto quanto possível, o valor de ressarcimento ao dano material e moral. Deve-se garantir o maior ressarcimento possível ao dano causado, no que se incluem os danos materiais, os danos morais etc.

A escuta da vítima não tem por finalidade colher dela sua anuência quanto à celebração do acordo, mas, em uma perspectiva de acolhimento e de participação mais efetiva no sistema de justiça criminal. Assim, “a oitiva acima não tem por finalidade colher a aquiescência da vítima sobre a adoção, ou não, de mecanismos consensuais. Em outras palavras, a vítima não possui a prerrogativa de vetar o acordo de não persecução penal”. 

III. Intimação da homologação – fase pós-celebração

Nos termos do art. 28-A, §9º, do CPP, a vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento. Este ato possibilitará que a vítima acompanhe o cumprimento das condições ajustadas entre o Ministério Público e o acusado, dentre as quais, a reparação do dano. Permite-se, assim, que a vítima tome a real percepção dos efeitos do ANPP – mais céleres do que eventuais sanções penais dependentes do tramite regular de uma ação penal. 

6 CONCLUSÕES

Os Acordos de Não Persecução Penal constituem mais um passo no contexto da justiça criminal negociada no Brasil, buscando-se garantir a razoável duração do processo e o estabelecimento de medidas não privativas de liberdade eficazes na busca da pacificação social. 

Após o surgimento dos Juizados Especiais Criminais, a tradicional “jurisdição de conflito” cedeu espaço para uma jurisdição de consenso, na qual se busca um acordo entre as partes, a reparação voluntária dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade, evitando-se, o quanto possível, a instauração de um processo penal. 

Inicialmente previstos na Resolução n. 181/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público, os Acordos de Não Persecução Penal foram finalmente previstos na legislação processual penal após a edição da Lei Federal n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime).

É necessário reanimar o papel da vítima no processo penal e na realização efetiva da justiça criminal sem, contudo, alimentar qualquer tipo de revanchismo ou vingança, fugindo, portanto de um discurso de enfrentamento e ódio entre acusados e vítimas. 

Assim é perfeitamente desejável, malgrado a lei não diga expressamente, que o Órgão Ministerial notifique a vítima para que, assim querendo, participe da audiência extrajudicial que visa à celebração do ANPP. Ali o intuito é, através do diálogo, chegar-se a um bom consenso e um bom acordo, o qual atenda, ao mesmo tempo, às necessidades da vítima, que responsabilize o agente e gere a pacificação do conflito.

Todavia o tema aqui não se esgota, ao revés merece muito mais debate. A tradicional relação entre acusação e acusado precisa ser repensada a fim de que a vítima dos crimes também tenha efetiva participação e ocupe um espaço que lhe tem sido sonegado na jurisdição criminal. 

REFERÊNCIAS

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