Acordo de Não Persecução Infracional

ANDRÉA KARLA REINALDO DE SOUZA QUEIROZ

Promotora de Justiça há 21 anos. Titular da 6ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania da Capital. Atual Coordenadora das Promotorias de Justiça da Infância e Juventude da Capital, sendo eleita pela segunda vez. Pós-graduada pela Escola Superior da Magistratura de Pernambuco (ESMAPE). Pós-graduada em Tutela Judicial do Meio Ambiente pela SAPERE AUDE e Faculdade Salesiana do Nordeste. Especialização, de longa duração, na Área da Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes pela Universidade de São Paulo (USP). 

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo a discussão e reflexão a respeito da possibilidade legal da aplicação do instituto do Acordo de Não Persecução Penal no Sistema Socioeducativo, diante do cometimento de atos infracionais equivalentes a tipos penais de médio potencial ofensivo, à luz do art. 152 da Lei nº 8.069/90 e art. 5o da Constituição Federal.

Palavras-chave: Isonomia; Garantias; Direitos; Penal conciliatório; Celeridade.

Os movimentos internacionais caminham na redução do poder punitivo estatal e substituição das penas punitivas por outras de natureza restaurativas e conciliatórias. No nosso direito pátrio, não poderia ser diferente, apesar de o pacote anticrime, na sua forma original, ter caminhado na contramão desses movimentos internacionais. Porém, a partir da unificação do Projeto de Lei com outras propostas legislativas, foi possível chegar ao formato atual, que deu origem à Lei nº 13.964/2019. 

A justiça restaurativa se traduz em várias formas que buscam a resolução dos conflitos judiciais. Com o tempo, chegou-se à conclusão de que a simples aplicação da pena não era suficiente para a paz social. 

Para a vítima, notadamente de um ilícito de natureza patrimonial, é muito mais satisfatório ter o seu bem de volta ou o seu ressarcimento que ver o acusado privado de liberdade. Também não se pode negar o amplo efeito satisfativo e conciliatório de um pedido de desculpas à vítima diante de um ilícito que lhe atingiu o psicológico, a honra.

A justiça restaurativa trata tanto a questão judicial, ou seja, o ilícito praticado, como outras áreas, buscando a efetiva satisfação das partes envolvidas. 

Nessa busca de pacificação e maior resolutividade, chegou em bom momento o Acordo de Bão Persecução Penal para robustecer o rol dessas inúmeras possibilidades de resolver lides, com a participação da vítima (se for o caso), ou não, usando menos tempo, menos gastos para o erário e maior efetividade. E o melhor: sem iniciar a persecução penal, sem dar ensejo a processos crimes que terão duração de anos, muitas vezes sendo alcançados pela prescrição.

A Lei nº 13.964/2019 trouxe para o sistema processual penal brasileiro um importante instrumento conciliatório, acrescentando ao referido diploma legal o art. 28-A, onde está disciplinado o Acordo de Não Persecução Penal, o qual permite que o acusado, cumpridos os requisitos legais, tenha o direito de ver oferecido, a seu favor, o acordo pelo representante ministerial, evitando, assim, a acusação formal pela possível prática do crime.

Os requisitos gerais constam do caput do art. 28-A, vejamos:

Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019);

II – renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019);

III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019);

IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019);

V – cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019).

Apesar de o dispositivo legal anteriormente transcrito trazer a expressão “poderá o Ministério Público”, a rigor, cumpridos os requisitos legais, nasce para o acusado o direito subjetivo e para o Ministério Público o poder dever de oferecer o acordo de não persecução penal. Nesse sentido, reforça o entendimento aqui exposto no §14 do mesmo dispositivo legal:

No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019). 

O instituto trouxe incontestáveis ganhos sociais, sendo para a vítima um alívio por se ver ressarcida ou recompensada pelo mal recebido, para o acusado é uma oportunidade de rapidamente pagar pelo que fez, livrando-se de um processo e retornando à vida normal. Para a sociedade e o Estado, de maneira geral, traduz-se em menos gasto para o erário, além de uma prestação jurisdicional mais célere, restando mais tempo ao aplicador do direito, que poderá agora se debruçar em processos de crimes mais graves, mais danosos socialmente.

Então, sendo o Acordo de Não Persecução Penal instrumento tão valioso, por que não o aplicar, subsidiariamente, ao sistema socioeducativo? 

Logicamente, o alcance das medidas propostas no eventual acordo deverá encontrar restrições no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90), como, por exemplo, no tempo de cumprimento da Prestação de Serviço à Comunidade, que tem seis meses como período máximo permitido.

Também se fará necessária a assistência ou representação dos responsáveis legais, a fim de formalizar o acordo. Não seria muito diferente da exigência, já existente, quando da tramitação dos processos na justiça da infância e juventude.

O art. 152 da Lei nº 8.069/90 estabelece que:

Aos procedimentos regulados nesta Lei aplicam-se subsidiariamente as normas gerais previstas na legislação processual pertinente.

Em outras palavras, significa dizer, e não poderia ser diferente, que ao adolescente infrator serão estendidos todos os direitos e garantias conferidas aos imputáveis.

O art. 5o da Constituição Federal também nos dá a garantia de que todos são iguais perante a lei, inclusive os adolescentes infratores, senão vejamos: 

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Quero trazer aqui, para contribuir com a reflexão proposta, a minha larga experiência à frente de uma Promotoria de Justiça com atribuição na execução de medidas socioeducativas de uma grande capital. Não raras vezes, centenas de processos ficam parados, sem qualquer efetividade, em razão da precariedade dos órgãos executores das medidas socioeducativas, deixando transcorrer um longo período entre a prática do ato infracional e o momento do início do cumprimento da medida, desaguando na perda da finalidade pedagógica e no consequente arquivamento processual. 

No caminho oposto, temos também inúmeros outros casos de socioeducandos que deixam de cumprir as medidas mais brandas (prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida), seja por falta de voluntariedade, seja porque não foram inseridos em tempo hábil, desaguando em encarceramentos desnecessários e até absurdos (regressão de medidas ou internação sanção), já que estamos falando de atos infracionais menos graves.

Resultado: não ressocialização (finalidade das medidas socioeducativas), sentimento de “impunidade” (ausência de responsabilização do adolescente/socioeducando) e uma grande insatisfação social, que faz surgir uma uníssona aclamação pela redução da maioridade penal.

É bem verdade que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a possibilidade de o Ministério Público aplicar a remissão, antes do início do processo (art. 126 da Lei nº 8.069/90), podendo propor, cumulativamente, a aplicação de algumas medidas socioeducativas, à exceção das medidas que restringem ou privam de liberdade (semiliberdade e internação). Porém, em nada se assemelha ao benefício que teria o adolescente infrator ou já como socioeducando (já que é permitida a aplicação do instituto aos processos já em tramitação), pois enquanto a remissão é uma faculdade do Ministério Público, no acordo de não persecução infracional ou socioeducativo, seria uma obrigação ministerial.

Percebam que dentre as medidas socioeducativas, previstas no art. 112, incisos I a VI, do ECA, já se encontra a obrigação de reparar o dano (em caso de possibilidade financeira) e a Prestação de Serviço à Comunidade (PSC).

Então, precisamos refletir: se um imputável tem o direito de se ver livre de um processo, desde que cumpridos os requisitos legais e aceitas as condições iguais às citadas, não justifica negar o mesmo direito aos adolescentes – socioeducandos que cumprem medidas parecidas e ainda respondem a processo.

Sem contar que os mesmos problemas que as varas criminais enfrentam, as varas de atos infracionais e as varas de execução de medidas também enfrentam: excesso de processos! 

Não há incompatibilidade de se aplicar, subsidiariamente, o instituto da Não Persecução Penal ao Sistema Socioeducativo.

E o caráter pedagógico, característica das medidas socioeducativas, estaria resguardado, talvez muito mais, já que o lapso temporal entre a prática do ato e a resposta estatal seria bem curto, evitando a falta de efetividade.

Mas, e as medidas protetivas previstas no art. 101 do ECA (inserção em escola, tratamento contra drogadição, entre outras), como seriam inseridas no acordo? Sem qualquer problema, haja vista a previsão contida no próprio art. 28-A, inciso V:

V – cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019).

Aplicado subsidiariamente o Acordo de Não Persecução Penal, no caso o Acordo de Não Persecução Infracional, estaríamos conferindo tratamento igualitário ao adolescente em conflito com a lei, ao mesmo tempo em que o Estado daria uma pronta resposta ao infrator e à vítima, reduziria a superlotação das unidades socioeducativas, desafogaria os órgãos de execução de medidas, bem como os aplicadores do direito, que poderiam dar maior celeridade na tramitação de centenas de processos, que envolvam atos infracionais graves e que não são passíveis de serem recepcionados pelo acordo de não persecução.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 5 out. 1988.

BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de abril de julho de 1990. Brasília: Senado Federal, 1990. 

JUNQUEIRA, Gustavo et al. Lei anticrime comentada: artigo por artigo. Inclui a decisão liminar proferida nas ADIs 6.298, 6.298, 6.299 e 6.300. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. 

LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do Processual Penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

QUEIROZ FILHO, Carlos Alberto Bezerra de. Acordo de não persecução penal nos crimes tributários e financeiros. 

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