O princípio da proteção integral da vítima e a necessidade de maiores articulações do Ministério Público na efetivação dos direitos a elas inerentes

ROSEMARY SOUTO MAIOR DE ALMEIDA

Promotora Titular da 46ª Promotora de Justiça Criminal da Capital com atuação no IV Tribunal do Júri da Capital. Mestra em Direitos Humanos pela Universidade do Minho/Braga-Portugal.

RESUMO 

A vítima da relação jurídica processual Penal foi olvidada! Teorias da pena e a Criminologia tradicional sempre tiveram a tônica dos estudos no agente do crime em si, seja na Idade Antiga, Medieval ou Moderna. Na contemporaneidade, esse olhar mudou para alguns estudiosos na matéria. A luta das mulheres e crianças de todo o mundo, é um exemplo a ser seguido. Por que até hoje o Ministério Público não adotou o caráter proativo, resolutivo e efetivo das garantias e proteção integral das vítimas em geral? A Ordem Jurídica Nacional não conta um Estatuto das vítimas, embora outras normas internacionais, constitucionais e infraconstitucionais existam como forma de efetivação dos direitos e até hoje o Brasil tem sido condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA) por proteção deficiente às vítimas criminais. O que nós, membros do Ministério Público brasileiro, estamos fazendo em relação a essa temática?

PALAVRAS-CHAVE: Vítimas; Visibilidade; Proteção integral; Proatividade; Resolutividade.

1 Introdução 

É muito importante o movimento nacional em prol da proteção integral das vítimas, contudo, um novo olhar é imprescindível. Não podemos sempre esperar por mais um diploma legal para atuar, pois a situação de violência do país tem sempre levado a discussões de caráter garantista, a ponto de o jurista Douglas Fischer (2005) adotar uma expressão já incorporada ao cotidiano dos Promotores de Justiça Criminais do país: “garantismo hiperbólico monocular”.

A sociedade brasileira acostumou-se em ver o Ministério Público na trincheira, ou melhor, na linha de frente, pois as bandeiras de promoção dos Direitos Humanos foram, a partir de 5 de outubro de 1988, nossas guias. Os mandamentos constitucionais (artigo 5º, incisos X, XXI, LIX, LXXIV, LXXVI e §1º, §2, §3º e §4º e Art. 245), na verdade, funcionavam para todos efeitos, independentemente da independência funcional. O enfrentamento diuturno do Congresso para retirar prerrogativas ou mesmo criar embaraços para nossa atuação trouxe muitas consequências negativas, sendo uma delas nos afastar da comunidade, quando mitigamos o atendimento ao público, a promoção das promotorias comunitárias e, por via de consequência, saímos da mídia e hoje somente aspectos negativos de nossas atividades são elevados à categoria de notícias. Não raras vezes, são informações manipuladas e até fake news, pois defendemos a sociedade e, como agentes políticos, expressamos parte da Soberania Estatal. Entretanto, algumas pessoas desavisadas, talvez, se esqueceram dessa realidade. As nossas fileiras tiveram baixas significativas, pois era mais atraente trabalhar com Direitos Difusos ou em outras searas. A nossa atividade raiz foi prejudicada pela crise de identidade, pela a desmotivação; a atividade penal e processual penal foi sendo reproduzida pelo no “piloto automático”.

A Declaração dos Princípios Básicos de Justiça relativos às vítimas da Criminalidade e do Abuso de Poder foi adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na Resolução 40/34, de 29 de novembro de 1985. O Brasil é signatário. O documento determina, notadamente, foco nas vítimas da criminalidade; acesso à Justiça e tratamento justo; indenização; assistência e reparação. A Constituição Federal agregou ao nosso Ordenamento Nacional e o que falta para cumprir?

2 A situação da vítima no Sistema Penal Brasileiro 

Somos verdadeiramente protagonistas das vítimas? Por que deixamos de requerer na denúncia a fixação mínima, como já é reconhecido no Recurso Repetitivo n.º 83 do STJ, quando se trata de violência de gênero e doméstica, por exemplo? O Art. 387, Inciso IV do CPP, está em vigor e a diferença é quanto à reparação e ao respeito as vítimas mulheres, encabeçada por Maria da Penha, cujo livro é obrigatório para quem tem interesse em estudar e ter empatia com a violência contra mulher.

Temos defendido que podemos aditar a denúncia ou requer, na primeira oportunidade, nos autos dos processos criminais dolosos contra a vida (tentados e consumados), em virtude da violência fatal ou como sobrevivente; essa vítima tem filhos, pais, irmãos (homicídios e feminicídio), além da própria vítima nos casos tentados. Precisamos buscar essas vítimas diretas e indiretas, oferecer o colo Ministerial, o acolhimento indispensável e, mais, ter no Fórum uma sala exclusiva para tal e, como forma explanatória, no Fórum Tomaz de Aquino já fora disponibilizada uma sala do tipo. 

O passo seguinte é ouvi-la, antes mesmo da audiência; no caso de vítima fatal, a mãe, os filhos, ou os irmãos são contatados via SMS, de telefone celular nosso ou por convite humanizado, informando sobre o processo e tudo que o MP está realizando e que poderá fazê-lo no caso. Isso sem garantir êxito absoluto, pois o julgamento não é feito por nós. 

A vítima tem direito a ser informada de todas as decisões, audiências e sentenças proferidas. Uma prática que não se falava até bem pouco tempo, contudo, está se tornando um processo real, embora ainda não acabado e enfrentando algumas resistências comuns. O Poder Judiciário, que caminha mais rápido que nós, editou a Resolução do CNJ n.º 253, de 4 de setembro de 2018, quando já determinava que o Juiz Criminal era competente de fixação mínima do dano no caso concreto. Agora, mais recentemente, aprimorou ampliando esse atendimento às vítimas de crimes em geral, pela Resolução do CNJ n.º 356, de 9 de abril de 2021, quando determina na ementa: “Altera a Resolução n.º 253/2018, que define a política institucional do Poder Judiciário de atenção e apoio às vítimas de crimes e atos infracionais, para dispor sobre os Centros Especializados de Atenção à vítima e dá outras providências”. Então:

Art. 1º.O Art. 2º da Resolução CNJ n.º 253/2018 passa a vigorar com a seguinte redação: 

Art.2 º Os Tribunais deverão instituir Centros Especializados de Atenção às vítimas, aos quais incumbe, dentre outras atribuições- funcionar como canal especializado de atendimento, acolhimento e orientação às vítimas diretas e indiretas de crimes e atos infracionais; 

(…)

III- fornecer informações sobre a tramitação de inquéritos e processos judiciais que tenham por objeto a apuração de crime ou ato infracional, OU A REPARAÇÃO DE DANO DECORRENTE DE SUA PRÁTICA. (grifo nosso)

Ora, as atribuições de protagonizar os direitos das vítimas são do órgão Ministerial, parte do processo cujo o Juiz preside. Cabe a nós fazer cumprir todos os dispositivos previstos em convenções internacionais e no ordenamento jurídico brasileiro. Como exemplo, o Art. 245 da Constituição Federal:

Art. 245 – A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito. 

É pertinente ressaltar que as reflexões aqui suscitadas apenas têm o propósito de trazer à baila a discussão, adormecida durante décadas, e a relevância publica da matéria. Não temos a pretensão de exaurir o tema, mesmo porque as iniciativas citadas foram e continuarão sendo adotadas, inclusive os pedidos de fixação do dano nas condenações proferidas no Plenário da Vida, o Julgador não está apreciando até nos casos de feminicídio, o que está sendo objeto de reiterados recursos por nossa parte. A pergunta que sempre se poderá ser feita: como executar esse valor fixado na sentença condenatória? A Lei de execução Penal no Art. 29, 1º, letra a) tem a resposta:

Art. 29 da Lei n.º 7.210, de 11 de julho de 1984, inclusive alteração de 2019: à indenização dos danos causados pelo crime, desde de que determinados judicialmente e não reparados por outros meios; 

Então, o Juiz Criminal não pode se abster de fixar o dano após a condenação. No Brasil, essa interpretação não vem em razão da vítima ser marginal no processo como um todo, pois o que tem mais importância são os direitos do acusado. Uma hipertrofia da dor e do sofrimento das vítimas, a ponto de alguns estudiosos asseveraram que o crime “compensa financeiramente”. A pena aplicada não é cumprida integralmente, mesmo nos crimes mais violentos e a vítima fica entregue à própria sorte. Até a aplicação imediata da pena após vereditos condenatórios de homicídio não aplicadas por alguns Juízes, em total incongruência com a Soberania dos Vereditos.

A luta pelos direitos das vítimas nos fez pensar em Ihering (1909): 

Muitas vezes acontece que uma modificação não se pode operar sem ferir ou lesar profundamente direitos existentes e interesses privados: porque os interesses de milhares de indivíduos e de classes inteiras estão de tais modos identificados com o direito no curso dos tempos que não é possível modificar aquele sem sentirem vivamente tais interesses. Se colocarmos, então, o princípio do direito ao lado do privilégio, declara-se por esse fato só a guerra a todos os interesses, tenta-se extirpar um pólipo que agarra com todos os seus tentáculos. Está no instinto da conservação pessoal que toda tentativa desse gênero provoque a mais viva resistência dos interesses ameaçados. Daí uma luta que, como qualquer outra, não será resolvida pelos raciocínios, mas pelas forças nela empenhadas, produzindo frequentemente o mesmo resultado que o paralelograma das forças: o desvio das linhas retas componentes em uma diagonal. (…) Em todos os casos em que o direito existente encontra este sustentáculo no interesse, o direito novo não pode chegar a introduzir-se senão às custas de uma luta que, por vezes, se prolonga durante mais de um século, e que atinge o mais alto grau de intensidade quando os interesses tomaram a forma de direitos adquiridos (…).

Portanto, a luta em prol das vítimas encontra várias espécies de resistências. Principalmente em confronto com os direitos dos acusados ou réus, solidamente construídos pelo processo histórico do Direito Penal e Processual Penal no Brasil e no mundo.

O trabalho para mudança de paradigmas nesse sentido cabe a nós do Órgão Ministerial; deveríamos nos apressar, pois a trajetória é longa e repleta de percalços, principalmente no país da impunidade, mundialmente reconhecido. 

Em relação à vítima criminal propriamente, como nos ensina Calhau (1970):

(…) A vítima passou por três fases principais na história da civilização ocidental. No início, fase conhecida como Idade de Ouro, a vítima era muito valorizada, valorava-se muito a pacificação dos conflitos e a vítima era muito respeitada. Depois, com a responsabilização do Estado pelo conflito social, houve a chamada neutralização da vítima. O Estado assumindo o monopólio da aplicação da pretensão punitiva. Diminuiu a importância da vítima no conflito. Ela sempre era tratada como testemunha de segundo escalão, pois, aparentemente, ela possuía interesse direto na condenação dos acusados. E, por último, da década de 1950 para cá, adentramos na fase do redescobrimento da vítima, cuja importância é retomada sob um ângulo mais humano por parte do Estado. 

O Ministério Público, por determinação Constitucional, exerce suas atividades e daí é preciso racionalizar e operacionalizar o entendimento institucional quando a palavra de ordem é vítima. Senão vejamos:

Es preciso devolver a las ideas su don creativo, su flexibilidad y sus matices com la consciencia crítica quien investiga. Tener la capacidad para acercar de modo posible el sentido de justicia com el clamor por el olvido y la corresponbilidad de la victimay su victmario.Pero también Delk Estado engargado de una seguridade inexistente em muchos casos.  

            Nós que investigamos o crime, em tese precisamos agir com raciocínio crítico, criativo e flexível, não só para agir com relação ao crime em si, mas também com vistas ao sofrimento das vítimas criminais diretas, como para a segurança sistêmica para todas elas assim consideradas.

   Kant conceituou dignidade como

(…) tudo aquilo que não tem preço, (…) no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço, e, portanto, não permite equivalente, então ela tem dignidade. 

A vítima criminal, quando se trata de um ser humano, é dotada de dignidade. A vida, por exemplo, não tem equivalência. A reparação ou indenização é a única resposta do Estado-Juiz, após a promoção do processo criminal pelo Estado-Promotor. 

O conceito de vítima aqui ventilado é “a pessoa que sofre dano e é sacrificada em seus interesses, ou o sujeito passivo de delito ou contravenção”. 

Se os direitos e a proteção integral da vítima forem exercidos plenamente, quando o juiz fixar um valor irrisório, nada impede de a vítima ir buscar, por meio de ação indenizatória na via cível, o complemento. O que é inadmissível é o ignorar, o esquecer das vítimas e sua condição de desprestígio. É inadmissível ignorar a fixação mínima do dano moral, material ou em caráter indenizatório.

Outra questão, também importante, é o tratamento que daremos a essa vítima ao ser ouvida em Juízo: respeito, compaixão, dignidade e empatia através da nossa postura, na nossa maneira de acolher, de receber, com carinho e atenção refletidos pelo rol de perguntas previamente estudadas estrategicamente, inclusive utilizando táticas de investigação adequada (vítimas emocionais e racionais). É importante nunca deixar de indagar o que mudou na vida delas depois dos crimes perpetrados (sobrevivente) e aos parentes próximos, nos casos de crimes fatais. É indispensável indagar questões como: se recebeu assistência médica e/ou psicológica, se teve custo com remédios ou tratamentos especializados, oferecidos ou não pelo Sistema Unido de Saúde (SUS) etc. Precisamos investir em relações interpessoais e capacitação.

 Na Itália, por exemplo, para se trabalhar com violência contra a mulher e criança, desde do primeiro que atende a vítima até o Magistrado Judicial, todos, sem exceção, precisam fazer, no mínimo, curso de especialização sobre como lidar no antes, durante e depois do processo. 

Em Portugal existe o Estatuto das Vítimas (Lei n.º 130/ de 4 de setembro de 2015), em cumprimento à Diretiva Europeia 2012/29 EU do Parlamento Europeu e do Conselho da Europa, que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substitui a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho. Contudo, mesmo em Portugal, a criança é ali protegida, mas, por questões de hermenêutica, a criança vítima ou testemunha de abuso sexual não recebe tratamento em Escuta Especial. Portanto, não basta ter o Estatuto que tudo será resolvido. No próprio Estatuto há vários conceitos de vítimas, que “ao fim e ao cabo”, o Magistrado Judicial é quem vai no caso concreto interpretar quem é a vítima, situação que traz muitas dificuldades de eficácia do diploma legal citado. 

São muitos os projetos de lei sobre o Estatuto das Vítimas no Brasil, citarei apenas dois principais que tiveram a participação do Ministério Público: PL n.º 65/2016 e PL n.º1.692/2015.         

Outra questão de destaque são as vitimizações: primária, secundária e terciária, como bem preleciona Moran (2020):

A vitimização primária consiste nos efeitos imediatos determinados pelo evento criminoso, sejam diretos ou indiretos. São eles danos materiais, morais e psíquicos. 

(…) 

A vitimização secundária inicia-se com a busca pela simples informação do crime à polícia, aparato investigação judiciária. Desguarnecida de estrutura humana e material, seus profissionais não reúnem condições de prestar um serviço adequado, de modo que, invariavelmente, vítimas de crimes são convidadas a permanecerem por longas horas em espera para simples lavratura de um boletim de ocorrência. 

(…) 

A vitimização terciária seria decorrente do medo da vitimização (…) de sofrer futuros delitos (…) 

A professora doutora Patricia Pimentel Ramos, Promotora de Justiça do Rio de Janeiro, que escreveu sua obra após o seu Doutoramento, que ainda está no prelo, já acentuou sua temática: a proteção da vítima de crimes violentos e a reparação de dano no sistema criminal brasileiro na perspectiva dos Direitos Humanos. 

3 Propostas de atuação ministerial

É muito importante ser Defensor de Direitos por determinação constitucional (Art., 127 da CF) mas essa efetivação se dar em casos concretos. O acusado já tem um gama de direitos garantidos, e diuturnamente surge mais, uma fonte inesgotável na doutrina e jurisprudência, que não tem o condão de excluir os direitos das vítimas de per si. 

Portanto, diante do caos que vive e convive a vítima no Sistema Penal e Processual Penal Pátrio, cabe a nós procurar conhecer melhor as Convenções Internacionais, pensar como agir no controle dessa convencionalidade, como nos ensinam os colegas Faria, Massouli e Oliveira (2021), no livro que escreveram recentemente, após anos de pesquisa e estudo:

Uma função contemporânea do Ministério Público em todos os Estados-Partes da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – cujas disposições, no Brasil, têm valor hierárquico superior ao das leis – é a de zelar para que o sistema internacional de proteção aos direitos humanos seja efetivamente observado nas respectivas ordens domésticas. Desse modo, no exercício do seu plexo de atribuições e nos termos das regras processuais correspondentes, os órgãos do Ministério Público de todos os Estados-Partes à Convenção Americana devem reconhecer a invalidade de leis contrárias (menos benéficas) às disposições dos tratados internacionais de direitos humanos (mais benéficos em vigor no Estado. 

A Lei n.º 8069/90, que se originou de uma articulação social com o próprio Ministério Público, estabelece todas as Medidas de Proteção que poderão ser adotadas em relação às vítimas de crimes, crianças ou adolescentes. Poderíamos avançar muito mais nessa questão se houvesse uma ação articulada entre as Promotorias de Justiça Criminal dos crimes contra crianças, de acordo com o Código de Organização Judiciaria de cada unidade da Federação. 

Assim, fortaleceríamos os vínculos institucionais internos e as vítimas crianças e adolescentes sairiam no ganho, com maior proatividade, efetividade e respeito. Além da escuta especial prevista na Lei 13.431/2017, com vigência em abril de 2018. Um trabalho com maiores resultados e, assim, prevenindo novos crimes, pois a impunidade no Brasil é sem precedentes. Empreender esforços para essa escuta ser feita em todas as comarcas no Estado. Uma boa prática de ação com resultados melhores que hoje. Aqui estaremos, de fato, fazendo o controle da convencionalidade da Convenção dos Direitos das Crianças e Adolescentes de 1989, da qual o Brasil é signatário, e uma das que tem maior adesão no mundo inteiro. 

O Estatuto dos Idosos é outra possibilidade de atuação articulada institucionalmente em conjunto com os demais órgãos do sistema público e privado. Os resultados seriam mais exitosos e pesquisas de atuação nessas áreas todas ofereceriam indicadores valorosos para novos paradigmas de ação aperfeiçoados. 

Na verdade, o sistema é desigual na atenção, nos direitos das vítimas, e nossa atuação teria a finalidade de equilibrar essa balança, que além de punir, resultaria em maior prevenção, evitando a perpetração de novos crimes daquela natureza, tais como furtos, roubos (assaltos); enfim, uma proposta de um novo olhar, mais fraterno, para a vítima. Vítima essa que, por muitos séculos, foi tratada como um estorvo, um ser estranho, que chegou até a ser queimada na fogueira por causar mal-estar, como analisa a Antropologia crítica. Quantas mulheres foram queimadas somente por serem diferentes, terem emoções e ações diferentes das dos homens? Há resquícios dessa mentalidade até os dias de hoje.

A Inteligência Social poderá nos auxiliar muito nessas tarefas, nos orientando para atingirmos a consciência social e, em seguida, a aptidão social. Como bem alerta Goleman (2019), quando assevera:

Meu próprio modelo de inteligência emocional incorporava a inteligência social sem dar muita importância para esse fato, como fazem outros teóricos nesse campo. Mas por fim percebi que simplesmente inserir a inteligência social no âmbito da inteligência emocional tolhe uma nova maneira de pensar sobre a aptidão humana para relacionamentos, ignorando o que ocorre durante as nossas interações. Essa miopia deixa de fora a parte “social” da inteligência.  

A Criminologia contemporânea busca compreender a vítima com novas balizas, visando encontrar um tratamento mais justo e digno para quem não é objeto, é sujeito, com dignidade singular. A propósito, quem deseja se aprofundar nos princípios de Criminologia, pode contar com Calhau (2020), que faz um estudo preciso e importante na literatura nacional sobre o tema.

O que aqui propomos para reflexão e ação proativa e para fins de efetividade são os seguintes pontos:

a) vislumbrar um novo olhar e uma nova postura de sensibilização com relação à vítima, seja ela qual for;

b) efetivar os direitos de atendimento humano, priorizado, promover o cumprimento do art. 387, inciso IV do CPP, além dos direitos a uma sala especial, informações do processo e de todas as decisões durante a tramitação;

c) buscar participar de seminários, congressos, workshops, cursos de capacitação e especialização, até mesmo mestrado (pós-graduação stricto sensu) sobre a matéria aqui refletida;

d) rever os atendimentos ao público, pois as vítimas pertencem à sociedade, e, para isso, a comunidade precisa ser ouvida pelo Órgão Ministerial;

e) evitar ouvir as declarações das vítimas como se testemunhas fossem (passado), não ter pressa ou com número reduzido de indagações; tentar fazer um rapport prévio para maior aproximação e criar maiores espaços, que também proporcionem o relaxamento das vítimas e das testemunhas, para relatarem o que realmente sabem, sem estresse, desconfiança, sem receio e com maior confiança em nós;

f) pensar sempre e efetivar propostas com base no melhor interesse da vítima no Instituto da Transação Penal;

g) efetuar, nos casos previstos em Lei e sem omissões, o Acordo de não Persecução Penal; criar mecanismos de proteção, responsabilização e reparação do dano por parte do beneficiário do acordo;

h) procurar, nos casos de delação premiada, assegurar, de todas as maneiras, as garantias de responsabilização do delator e da reparação da vítima para os diversos fins correspondentes aos efeitos ilícitos provados em cada situação em concreto;

i) utilizar a justiça restaurativa com o foco na vítima, visando o equilíbrio das controvérsias e litígios em desfavor da dignidade, saúde e convivência familiar. Procurar suporte em indicadores de institutos nacionais e internacionais correspondentes no âmbito da Cultura da Paz. 

É difícil obtermos respostas diferentes, se agirmos da mesma forma. Teremos de mudar o caminhar para encontrar novos caminhos. Reforçar a nossa resiliência própria e nas relações interpessoais para com as vítimas. Protagonizá-las é a pedra angular do nosso oficio. 

A respeito, cito dois outros instrumentos internacionais: 

  • Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra Mulher: adotada pela Assembleia das Nações Unidas em 18 de dezembro de 1979, entrou em vigor em 3 de setembro de 1981. Assinada pelo Brasil, com reservas, em 31 de março de 1981 e ratificada, com reservas, em 1º de fevereiro de 1984, entrou em vigor em nosso país em 2 de março de 1984. 
  • Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos (Defensores de Direitos Humanos – Resolução 53/144 da Assembleia Feral da ONU de 9 de dezembro de 1998.

O Padre Antônio Vieira, em um dos seus sermões, afirmou: “O erro por que muitas vezes se não acertam as eleições dos ofícios é porque se buscam os homens grandes nas casas grandes, e eles estão escondidos nas casas pequenas”. 

4 Considerações finais 

A nossa narrativa teve como escopo identificar a vítima no cenário contemporâneo e procurar ideias, formas e meios de recuperarmos o protagonismo, por intermédio de nossas atividades forenses e humanas, para que possamos vislumbrar aquele ser humano em toda sua plenitude, sujeito passivo de uma relação jurídica processual penal, além de um número ou de um caso, e sim outro ser humano, como nós somos.

Uma visão holística da vítima nos possibilitar a construção de um novo processo histórico. Um Ministério Público uno e indivisível propiciará a adoção das medidas imediatas e a médio e longo prazo, podendo ser observado na prática o grande ensinamento afirmado por Bobbio (1992):

Afirmei, no início, que o importante não é fundamentar os direitos do homem, mas protegê-los. Não preciso aduzir aqui que, para protegê-los, não basta proclamá-los. (…) O problema real que temos de enfrentar, contudo, é o das medidas imaginadas e imagináveis para a efetiva proteção desses direitos. 

O passado é pretérito e pensar no amanhã é reviver as melhores práticas de outrora, aperfeiçoando-as e sem deixar de implantar diuturnamente o Controle da Convencionalidade, de forma que cada processo seja uma oportunidade de efetivação dos Direitos Humanos das vítimas. É nossa responsabilidade legal, institucional e humanitária. Se assim agirmos, cumpriremos os ditames constitucionais previstos nos art. 37 e 129, além de todas as normas infraconstitucionais e internacionais devidamente arregimentadas no presente artigo. 

 

 

REFERÊNCIAS 

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BRASIL. Lei de Execução Penal.  Lei nº 7.210 de 11 de 1984.

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CALHAU, Lélio Braga. Princípios de Criminologia. 9ª ed. Niterói RJ: Impetus, 2020.

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FARIA, Marcelle Rodrigues da Costa; MAZZUOLI, Valério de Oliveira; OLIVEIRA, Kledson Dionysiode. Controle de Convencional idade pelo Ministério Público. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p.186.

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KANT, Immanuel. Fundamentação da metafisica dos Costumes. 2 ed. Tradução de Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1986, p. 77. 

KOSOVSKI, Ester; PIEDADE JUNIOR, Heitor (org.). Novos Estudos de Vitimologia. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011, p.134.

MORAN, Fabiola. Ingerencia Penal & Proteção Integral à vítima. São Paulo: D’Plácido, 2020, p.115;116 e 118.

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SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p.503.

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STJ. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp: 1411512 MS 2018/0318445-0, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 09/04/2019, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 16/04/2019.