Os direitos humanos ao juiz imparcial, ao devido processo legal e ao contraditório diante da práxis das audiências criminais sem o Ministério Público: um chamado à reflexão

Salomão Ismail Filho

Promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco. MBA em Gestão do Ministério Público (UPE). Especialista e Mestre em Direito (UFPE). Doutorando em Direito (UNICAP).

 

RESUMO

A DUDH consagrou os direitos humanos ao juiz imparcial, ao devido processo legal e a contraditório, os quais foram referendados pela Carta Magna de 1988. Isso implica na adoção de um processo penal democrático e regido pelo sistema acusatório, com nítida distinção entre as funções de acusar, defender e julgar. A realização de audiência judicial de instrução criminal sem a presença do MP viola tais direitos humanos, constituindo-se em uma nulidade absoluta e não apenas relativa, cujo prejuízo é manifesto e presumido. A jurisprudência brasileira, com algumas exceções, tem se posicionado pela demonstração do prejuízo (nulidade relativa), estimulando a figura do juiz parcial e inquisidor. Os membros do MP não podem ficar indiferentes a tal práxis, arguindo a absoluta nulidade em qualquer foro e instância e adotando outras medidas processuais e administrativas cabíveis.

PALAVRAS-CHAVE

Direitos humanos; Juiz imparcial; Devido processo legal; Contraditório; Processo penal; Audiências criminais; Ausência do Ministério Público; Nulidade absoluta.

 

Introdução

Em alguns Estados da Federação brasileira, máxime em Pernambuco, tem se instituído, quase como um costume ou prática rotineira, a realização de audiências de instrução, em processos penais, sem a presença do membro ou representante do Ministério Público. Além disso, em algumas situações, a autoridade judiciária, além de realizar a audiência sem o promotor de Justiça, ocupa o seu espaço, perguntando primeiramente e, depois, passando a palavra à Defesa Técnica.

Como doravante será relatado, no âmbito da Justiça Estadual de Pernambuco, por exemplo, existe uma recomendação do Conselho da Magistratura, para que os juízes de Direito realizem audiências criminais sem o promotor de Justiça, desde que o MP tenha sido previamente intimado. A jurisprudência do STJ, por outro lado, embora com algumas oscilações, nos últimos tempos, tem se inclinado que, nesses casos, haveria apenas uma “nulidade relativa”, que dependeria da demonstração de prejuízo.

O que a realização de audiências criminais sem a presença do MP tem a ver com os direitos humanos? Seria papel da autoridade judiciária falar em nome da sociedade, em uma audiência judicial? Estaria respeitada a trilogia processual (juiz-parte acusatória-parte requerida) em um ato judicial sem o MP estar presente?

Este artigo jurídico pretende responder a tais questionamentos, demonstrando os riscos, para os direitos humanos, de tal práxis, em razão da manifesta violação aos princípios constitucionais do devido processo legal e do contraditório, manifestados direitos da sociedade e daquele que vem a ser acusado, pelo Estado, através de um processo penal.

 

1 Sobre os direitos humanos a um julgamento por um juiz imparcial, ao devido processo legal e ao contraditório

Segundo o art. 10 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), de 10/12/1948, todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Já o art. 11 da histórica Declaração consagra os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, ao preceituar que o acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.[1]

Deveras, a partir desses dois artigos jurídicos consagrados na DUDH, é forçoso concluir que, no processo penal, aplicado nos países integrantes das Nações Unidas, como o Brasil, existe, deveras, um direito humano a um julgamento por juiz imparcial e não comprometido previamente com a prova ou com a acusação que pesa em desfavor da parte acusada.

De outro lado, a parte acusada tem o direito a um julgamento “de acordo com a lei” (ou seja, o devido processo legal) e, por corolário, utilizar todos os meios inerentes (desde que conforme a legalidade, evidentemente) para a sua defesa (ampla defesa). E dentro da lógica da ampla defesa, há que se falar no direito de contraditar a prova a ser produzida em juízo (contraditório).

Destarte, os direitos humanos a um julgamento por juiz imparcial, ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório também foram referendados na Magna Carta brasileira de 1988, por meio do seu art. 5º, incisos LIII (“ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”); LIV (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”) e LV (“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”).

É forçoso concluir, o inciso LIII do art. 5º precisa ser interpretado em conjunto com o art. 10 da DUDH, pois a norma constitucional brasileira fala apenas em “autoridade competente”.[2]

Ora, por competente, há de se entender não somente aquele que detém a atribuição/competência processual para processar determinada pessoa, mas também uma autoridade que deve atuar de forma justa e imparcial, como exige a Declaração de Direitos Humanos da ONU.

 

2 O processo penal acusatório brasileiro e a consagração do juiz imparcial e do equilíbrio democrático da trilogia processual

O processo penal brasileiro, na linha daquilo fora consagrado pela ONU, através da Declaração de 1948, e pela Carta Cidadã de 1988, tem sido insculpido, ao longo dos últimos anos, em uma feição democrática e acusatória.

Mas o que isso significa? Significa, exatamente, o equilíbrio entre as funções de julgar, acusar e defender, dentro de um processo penal acusatório, onde cada operador jurídico, para a completa formação da relação tríade processual, deve atuar dentro da sua esfera de atribuições.

De fato, como lembra Avena (2017, p. 09), o sistema processual-penal acusatório é caracterizado pela absoluta distinção entre as funções de acusar, defender e julgar, as quais deverão ficar a cargo de operadores jurídicos/instituições distintas. A instrução probatória, em regra, há de ser de iniciativa das partes e não da autoridade judicial.

Assim, como corolário de um sistema processual penal acusatório (e não inquisitório),[3] cabe ao Ministério Público a titularidade privativa da ação penal pública (art. 129, inciso I, da CF/1988); durante a instrução judicial, não pode o juiz ter a iniciativa probatória de ofício, atuando apenas para suplementar a prova colhida pelas partes (por isso, nos termo do atual art. 212 do CPP, o juiz deve perguntar após as partes, suplementando pontos não esclarecidos) e, ainda, há que se respeitar o contraditório, realizando-se a instrução judicial com a presença de todos os polos da relação processual: Juiz; Ministério Público (que representa a sociedade/Povo, através da titularidade da ação penal pública) e Defesa (cujo Advogado ou Defensor Público exercerá a ampla defesa).

Em um processo penal democrático e que segue o sistema acusatório, ao juiz cabe garantir o contraditório entre as partes do processo penal e não se colocar como contraditor, inquisidor, substituindo a iniciativa das partes na produção da prova (LOPES JÚNIOR, 2017, p. 244-245). O protagonismo neste processo penal não é do juiz, mas das partes, ou seja, da acusação (MP, em regra) e da Defesa.

É relevante destacar, o Código de Processo Penal brasileiro (Decreto-lei 3.689, de 03/10/1941) é uma norma jurídica, originalmente, de caráter fascista e inquisitório, onde o juiz assumia o protagonismo da prova, prevalecendo o princípio da culpabilidade do réu e não da sua inocência. Ou seja, uma norma anterior ao término da 2ª Guerra Mundial e à própria DUDH, forjada em um período de cerceamento democrático no Brasil, onde o parlamento, praticamente, era uma figura decorativa.[4]

Gradativamente, tal estatuto legal foi se adaptando ao sistema de direitos humanos pós-2ª Guerra, máxime a partir dos anos 70 do século XX. Como consequência disso, lembra Oliveira (2006, p. 05-10) a abolição da decretação da prisão preventiva automática da parte acusada, quando do recebimento da denúncia, a depender do crime imputado (antiga redação do art. 312) e a própria regra inquisitorial do interrogatório do réu: primeiro ato do processo (antes da produção da prova) e sem a intervenção das partes.

Marco de referência jurídico, em tal contexto, foi a Constituição Federal de 1988, a qual, peremptoriamente, insculpiu as bases de um sistema processual penal acusatório, à luz daquilo que já havia sido delineado pela DUDH, de 1948.

Sobre o contraditório, relevante destacar, o art. 5º-LV da CF/1988 prevê uma bilateralidade (via de mão dupla) de tal princípio, pois a norma constitucional assegura o contraditório e a ampla defesa a todos os litigantes, em processo judicial e administrativo, e não apenas aos acusados em geral

Tão importante o contraditório, no direito processual, que Câmara (2003, p. 49-50) chega a afirmar que tal princípio é a mais importante vertente do devido processo legal. Ainda mais: pode-se, à luz da moderna doutrina processualista, dizer que, sem contraditório, não há processo justo. Sem contraditório, a própria legitimidade do Poder Judiciário, de presidir, através do juiz, a relação processual, fica comprometida, dada a ausência de equilíbrio e de igualdade entre as partes, transformando a autoridade judicial em uma autoridade inquisitória e autoritária.

Assim, o mesmo direito humano ao contraditório que veda, por exemplo, a produção de uma prova judicial sem a presença da Defesa da parte acusada também deve ser invocado quando a outra parte litigante do processo penal (a sociedade, na ação penal pública representada pelo MP) não estiver presente.

Nesse sentido, parecem caminhar Grinover, Fernandes e Gomes Filho (2006, p. 139-140), quando expressamente afirmam que é inválida a prova produzida, no processo penal, sem a presença das partes. Há de se vedar, assim, a prova produzida de ofício pela autoridade judicial, evitando a sua prematura vinculação a um determinado polo ou vertente da relação jurídico-processual.

 

3 A questão da nulidade e da demonstração do prejuízo. Porque, na realização de audiência judicial sem o MP, o prejuízo é presumido

No processo penal brasileiro, vigora a regra de que não será declarada a nulidade se dela não resultar prejuízo para nenhuma das partes (acusação e defesa). É o que dispõe o art. 563 do CPP, o qual consagrou um cânone universal do direito processual, o tradicional brocardo pas de nullité sans grief.

Em verdade, trata-se da observância do sistema de nulidade da instrumentalidade das formas, onde o ato processual praticado será considerado válido, ainda que contrarie determinadas formalidades legais, mas desde que tenha atingido os seus objetivos (MIRABETE, 2003, p. 1379-1380). De fato, processo é, antes de tudo, instrumento, caminho a ser trilhado para determinado objetivo; não é o fim em si mesmo; o fim é o direito material que se busca aplicar, através do processo.

Por isso, há que se falar em nulidades relativas (quando, diante de vícios não essenciais, não obstante a ilegalidade, possa o ato processual ser convalidado ou aproveitado) e nulidade absolutas (quando a ilegalidade praticada acarreta um prejuízo tão grave e manifesto que será impossível convalidar ou aproveitar o ato processual praticado). Exemplos clássicos de nulidade absolutas, no processo penal, são aquelas que violam princípios constitucionais ou direitos fundamentais das partes.

Porém, a teoria das nulidades, relativa e absoluta, extraída da teoria geral do processo, precisa ser aplicada com muita cautela, no processo penal, cuja natureza é eminentemente garantista e cuja lide trata do indisponível direito à liberdade (nesse sentido, LOPES JÚNIOR, p. 84-85).

Dentro de tal contexto, o que se pode dizer a respeito da audiência realizada sem a presença do Ministério Público? Seria ela uma nulidade absoluta ou relativa?

Normalmente, duas situações podem acontecer: 1) o MP sequer é intimado da audiência; 2) o MP é intimado, mas não comparece.

Em ambos os casos, há prejuízo manifesto para o direito humano ao juiz imparcial, ao devido processo legal e ao contraditório, ensejando nulidade absoluta e não relativa.

Porque, como já se explicou, desde a DUDH de 1948, há um compromisso internacional em afastar o juiz da produção de ofício da prova, a fim de evitar a sua parcialidade. Demais, sem a presença de uma das partes na ação penal pública (sociedade/povo, representada pelo MP), o princípio do contraditório resta manifestamente maculado, pois nem o juiz e nem o advogado/defensor público podem assumir o lugar do Ministério Público fazendo perguntas que seriam do seu interesse ou da sua estratégia processual.

Imagine-se a situação diametralmente oposta: o advogado de Defesa falta à audiência de instrução, mas, ainda assim, o juiz decide realizar o ato, estando presente somente o promotor de Justiça. No caso concreto, tanto o juiz, quanto o promotor se esforçam para imaginar e fazer todas as perguntas às testemunhas que poderiam beneficiar o réu. Seria possível aproveitar tal ato? Caberia falar em uma nulidade somente “relativa”?

É evidente que não! Primeiro, por um simples motivo: as regras processuais não podem depender de subjetividades (boa vontade do juiz ou do MP) e, justamente por isso, o devido processo legal exige que cada operador jurídico ocupe o seu espaço na relação processual e não invada o espaço do outro.

Ainda mais. No processo penal, máxime durante a instrução probatória, o contraditório há de ser real e não fictício. Ou seja, as partes da relação processual precisam, necessariamente, exercê-lo. O papel de cada uma não pode ser ocupado pela outra e vice-versa.

Esse o verdadeiro sentido do princípio do contraditório, dentro de um processo penal democrático, que não se satisfaz com a mera oportunidade dada à parte de exercer o contraditório: é preciso que ela, efetivamente, faça-o. Por isso, não pode haver audiência de instrução criminal sem a presença da Defesa Técnica; mas a conclusão vale para o MP, porque o princípio do contraditório é sinalagmático, bilateral e não se aplica somente a uma das partes da relação processual.

Aliás, como lembra Dinamarco (2003, p. 135-136), o exercício da ação e da defesa, ao longo do procedimento, ao lado dos atos da jurisdição, é condição essencial para o correto exercício desta; significa isso participação no processo decisório e não pode ser negada às partes da relação processual.

Portanto, o argumento de que basta oportunizar a participação do Ministério Público na audiência judicial criminal (através da sua intimação) não é suficiente para afastar a absoluta nulidade da audiência realizada sem a presença de uma das partes.

Esse argumento pode até ser aplicado em determinados processos de natureza civil, mas nunca em um processo penal, o qual, por se tratar da discussão de direitos indisponíveis, como a liberdade de outrem ou a imposição de pena em razão de dívida contraída com a sociedade, em razão da prática de crimes, exige um contraditório efetivo e não apenas fictício. O contraditório real é necessário, inclusive, para justificar a legitimidade da atuação do Estado, através da jurisdição, que, em essência, é democrática e não inquisitória (CÂMARA, 2003, p. 52-54).

Nessa linha de pensamento, a lição de Fernandes (2000, p. 53-56), lembrando que a Constituição Federal assegura o contraditório não apenas aos acusados, mas também ao Ministério Público. Avança, ainda, o mencionado autor, forte no ensinamento de processualistas como Calmon de Passos e Arruda Alvim, para lembrar a diferença entre o princípio da bilateralidade da audiência (onde é suficiente oportunizar o direito de participar) e o princípio do contraditório (o qual exige uma efetiva participação, discussão e igualdade de oportunidade para todas as partes da relação processual).

No mesmo sentido, Barros (2014) vem a defender que a realização de audiência criminais sem a presença do MP viola não apenas o princípio do contraditório, mas também o princípio acusatório do processo penal.

Dentro de tal contexto, Nery Junior (1999, p. 130-132) chega a afirmar que, no processo civil, em razão de não ser necessário o contraditório efetivo e substancial do processo penal, seria mais apropriado falar-se no princípio da bilateralidade da audiência.

Por isso, em ambos os casos, seja pela não intimação, seja pela intimação, mas realizado o ato sem o MP, a audiência é nula, por manifesta violação aos princípios do contraditório e do devido processo legal e, ainda, ao sistema acusatório como um todo, em razão do comprometimento causado ao direito humano ao juiz imparcial.

Afinal, juiz de Direito, por mais que mereça consideração pela relevância do cargo, conhecimento jurídico e conduta ilibada, não pode fazer as vezes de promotor de Justiça, sob pena de também violar ao princípio constitucional do Promotor Natural (art. 5º-LIII da CF/1988).

Ora, dispõe, a propósito, o art. 564-III, d, do CPP,[5] que haverá nulidade por falta da intervenção do MP em todos os termos da ação penal por ele intentada ou mesmo quando atuar na qualidade de fiscal da ordem jurídica.[6]

Resta evidente, pois, que a não intervenção do Ministério Público, em qualquer ato do processo penal, é causa de nulidade. E à luz da teleologia do art. 129, inciso I, da Magna Carta de 1988, o MP é o titular exclusivo da ação penal pública, sendo causa de nulidade absoluta (e não somente relativa) a instrução realizada sem o promotor de Justiça.

Por isso, o art. 572 do CPP,[7] Decreto-lei 3.689, de 03/10/1941, norma vetusta e anterior à própria DUDH, no que se refere à presença do MP nas audiências criminais, não foi recepcionado pela Constituição de 1988, não podendo ser aceita, ex vi dos princípios do juiz imparcial; do devido processo legal e do contraditório (art. 5º, incisos LIII, LIV e LV), prova colhida em audiência sem a presença do titular da ação penal pública.

Reitera-se, ainda que o parquet tenha sido previamente intimado de uma audiência judicial, a sua presença física é obrigatória, constituindo-se em uma garantia não apenas do processo, mas da vítima e do réu, pois o representante ministerial também é o fiscal da ordem jurídica e defensor da sociedade (art. 127, caput, da CF/88, c/c art. 257-II do CPP).

Nesse sentido, doutrina Tourinho Filho (2004, p. 258) que a presença do órgão acusador e da parte defensora, no processo penal, é indispensável, por exigência do princípio do contraditório. Realizado o ato sem a presença de um ou de outro, a causa é de nulidade insanável. No caso de ausência do MP, recomenda o referido doutrinador que o juiz adie o ato e oficie ao Procurador-Geral da instituição, buscando um substituto.

Outrossim, destacando que, em tal situação, a ausência do MP ofende os postulados da Justiça pública e o princípio do contraditório, pronunciam-se Demercian e Maluly (2009, p. 684). Afinal, é causa de nulidade absoluta, no processo penal, quando se impede ou não se permite a participação de uma das partes na instrução probatória (OLIVEIRA, 2006, p. 660-661).

Há, porém, vozes dissonantes na doutrina processualista penal brasileira, defendendo que a ausência do MP na audiência de instrução seria nulidade relativa, pois dependeria da demonstração de prejuízo (AVENA, 2017, p. 1083). Chega-se a argumentar que até mesmo a ausência de intimação do Ministério Público para o ato não ensejaria a sua nulificação imediata, dependendo também da demonstração posterior de prejuízo (PACELLI; FISCHER, 2016, p. 1140).

Tratam-se, porém, de análises não aprofundadas do tema, que não fazem sequer menção à DUDH e, também, deixam de apresentar a devida distinção entre os princípios da bilateralidade da audiência e do contraditório; também não consideraram os riscos de violação do direito humano ao juiz imparcial.

Perceba-se, aliás, que o argumento da “demonstração do prejuízo”, ao final, será apreciado pela própria instituição que presidiu o ato sem o Ministério Público, ou seja, o próprio Poder Judiciário. Ou seja, o titular da ação penal pública e responsável pelo exercício da função acusatória é ignorado na instrução probatória e a palavra final sobre a existência de prejuízo é do Poder que promoveu a sua exclusão (Judiciário) e não dele (Ministério Público).

Reforce-se, ainda, a expressa adoção, no processo penal brasileiro, através da Lei 11.690, de 09/06/2008 (alterou o art. 212 do CPP) do sistema norte-americano do cross-examination, onde, a fim de que se garanta a imparcialidade do julgador, as partes devem perguntar diretamente às testemunhas, atuando o juiz de forma fiscalizatória e suplementar. Destarte, na situação de ausência do MP no ato instrutório, não poderá a autoridade judicial, em hipótese alguma, assumir o seu lugar e fazer as perguntas que competiriam ao parquet, sob pena de absoluta nulidade.

Como lembra Carvalho (2018, p. 343-344), a participação do MP na produção da prova testemunhal é ato essencial, ensejando nulidade absoluta a sua ausência, pois a tal prova deve ocorrer com a presença das partes, promovendo-se o contraditório.

Trata-se, em verdade, de mais um corolário de um processo penal acusatório e democrático, onde não cabe ao juiz a iniciativa probatória, mas sim às partes da relação processual. Forte em tais conclusões, Lopes Júnior (2014, p. 100-102) chega a afirmar que a divisão de funções estatais, no processo penal, de acusar (MP) e julgar (Poder Judiciário) vincularia, inclusive, a autoridade judicial ao pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público, pois o poder punitivo estatal estaria vinculado ao exercício da pretensão acusatória; em caso do seu não exercício ou da conclusão de que ela é inviável pelo órgão acusador (pedido de absolvição), deveria o juiz acatar as conclusões do titular da ação penal pública.

 

4 O poder judiciário brasileiro diante da práxis da audiência judicial sem a presença do Ministério Público

Na mesma linha dos entendimentos doutrinários que primam pela nulidade parcial, tem sido a posição, em regra, da jurisprudência brasileira, vindo a exigir a demonstração de prejuízo, para declarar a nulidade de uma audiência de instrução criminal realizada sem a presença do Ministério Público.

Como se disse alhures, na lógica adotada por tal entendimento, será o Judiciário (e não o MP) quem decidirá sobre a existência ou não de prejuízo. Somente o fato de dispor sobre a existência ou não de prejuízo configura, per si, uma violação ao direito humano ao juiz imparcial, pois a autoridade judicial, assim o fazendo, adentra na competência acusatória do Estado, ocupando uma esfera de atribuições próprias do Ministério Público.

 

4.1 No Supremo Tribunal Federal

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, historicamente, tem sido essa sua posição, embora, após a Constituição de 1988 e, ao menos considerando a sua atual composição, não existe uma posição expressa do Plenário da Corte a respeito.

A 1ª Turma do STF, nos autos do HC 120.528/RS, em decisão de 14/03/2017, deixou de anular audiência de interrogatório do réu onde o MP estava ausente. Segundo o relator, Ministro Marco Aurélio, a ausência do Estado-acusador sinaliza não um prejuízo para a Defesa, mas uma vantagem para esta.

Importante destacar, a forma superficial com que o tema foi tratado; primeiro, sem qualquer menção aos princípios do devido processo legal e do contraditório, os quais, como demonstrado, exigem a presença de outra parte, quando da produção da prova judicial. Depois, porque o MP é tratado somente como “Estado-acusador”, olvidando-se completamente da sua função de fiscal da ordem jurídica, que também deve velar pela legalidade da audiência judicial, inclusive a favor do réu, quando for o caso.

Já a 2ª Turma da Suprema Corte, em julgado de 30/04/1996, nos autos do HC 73650-5/RS, não veio a anular audiência judicial onde houve a inquirição de testemunhas de acusação sem a presença do MP, arguindo a inexistência de prejuízo e, ainda, que tal nulidade não fora arguida no momento oportuno.

Outrossim, no referido julgado, à luz do voto do relator, Min. Néri da Silveira, não se encontra uma única linha argumentativa a respeito do exercício do princípio do contraditório, no processo penal, e da necessidade da sua realização de forma concreta e não fictícia. O julgado não faz, ainda, menção ao direito humano ao juiz imparcial e aos riscos de o juiz produzir, ele mesmo, uma prova e depois utilizá-la para justificar uma condenação penal.[8]

Há, porém, esperanças de que a Suprema Corte brasileira venha a consagrar a defesa do sistema acusatório e dos princípios do contraditório e do juiz imparcial no processo penal. Em julgado de 14/11/2017, a 1ª Turma do STF, nos autos do HC 111.815, anulou audiência de instrução criminal por descumprimento à ordem prevista no art. 212 do CPP, o qual consagra a atuação supletiva do Judiciário na colheita de provas, ou seja, a autoridade judicial suplementa as perguntas das partes e não o contrário.

Tal julgado tem bastante relevância para a tese defendida neste artigo jurídico porque, em muitas audiências judiciais realizadas sem a presença do membro do MP, a autoridade judicial, literalmente, ocupa o espaço do Ministério Público, fazendo as perguntas em seu lugar e, posteriormente, passando para a palavra para a Defesa se pronunciar. Ou seja, nos termos do art. 212 do CPP, o juiz não pode substituir o Ministério Público na instrução criminal, pode suplementar, complementar os seus questionamentos; jamais ocupar o espaço ou produzir uma prova que caberia à acusação fazer (PACELLI; FISCHER, 2016, p. 479).

 

4.2 No Superior Tribunal de Justiça

A jurisprudência do STJ, através da suas 5ª e 6ª turmas, que lidam com a matéria penal, também tem se inclinado em favor da demonstração do efetivo prejuízo, sobretudo nos julgados recentes (anos de 2017 e 2018).

A 5ª Turma do STJ, em julgado de 05/05/2018, nos autos do AGRG no Recurso Especial nº 1.712.039/RO, considerou que a simples ausência do órgão acusatório na audiência de oitiva de testemunhas não ensejaria a nulidade do ato, quando não restar devidamente demonstrada a ocorrência de prejuízos. Para causar ainda mais perplexidade: conforme leitura do voto do relator, Min. Jorge Mussi, verifica-se que, previamente, a Corregedoria-Geral de Justiça solicitara a redesignação do ato, em razão de realização do III Seminário Estadual de Execução Penal e Encontro dos Promotores de Justiça. Não obstante, o Juízo a quo realizou o ato por sua conta e risco, tendo sua decisão obtido referendo do Tribunal Estadual e do STJ.

De forma igualmente grave, em 27/02/2018, a 6ª Turma do STJ não anulou audiência judicial para oitiva de testemunhas, realizada sem o MP, onde o juiz formulou perguntas no lugar do MP. Segundo o voto do relator, Min. Rogério Schietti Cruz, sequer o MP teria sido intimado pessoalmente da audiência judicial, com vistas dos autos. Porém, entendendo que nulidade que beneficia o Ministério Público somente por ele poderia ser arguida (mas não pela Defesa da parte acusada), como também aduzindo que não houve prejuízo no caso concreto, o recurso defensivo foi julgado improvido e a nulidade não reconhecida.

Em ambos os julgados, verifica-se que, em momento algum, os direitos humanos ao juiz imparcial e ao contraditório foram sequer mencionados. Ignora-se por completo o art. 5º-LV da CF/1988, que assegura o contraditório não somente à Defesa, mas a todas as partes da relação processual penal, onde, obviamente, está incluído o MP.

A fundamentação resumida e meramente instrumental de ambos os acórdãos fere de morte o próprio sistema acusatório do processo penal brasileiro, aproximando-se de uma feição inquisitória, que abona a figura de juízes-inquisidores que agem de ofício e produzem diretamente a prova, ora ignorando ofícios da sua própria Corregedoria, ora passando por cima da necessidade de prévia intimação pessoal do MP para participar da audiência, conforme o art. 370, § 4º, do CPP, c/c o art. 41 da Lei 8.625/1993.

Interessante destacar que, entre 2012 e 2016, existiram precedentes, na 5ª e 6ª turmas, reconhecendo a nulidade absoluta da audiência judicial realizada sem a presença do MP.

Por exemplo, a 6ª Turma do STJ, em julgado de 17/05/2012, no HC 21.078/MG, decidiu pela nulidade de determinada audiência penal, em razão da ausência das representantes do parquet, as quais, dias antes, haviam requerido o adiamento do ato, alegando impossibilidade de comparecimento.

De outra banda, a 5ª Turma do mesmo Superior Tribunal de Justiça, julgando o HC 316719/RJ, em 06/10/2015, não verificou qualquer ilegalidade e decidiu não anular acórdão de Tribunal Estadual que, em razão da ausência do Ministério Público em audiência de instrução, reconhecera a existência de nulidade insanável por violação ao sistema acusatório, determinando a renovação da instrução processual. Nas informações adicionais do acórdão supramencionado, extraídas do voto do relator, Min. Félix Fischer, consta a relevante conclusão:

Ocorre nulidade insanável do processo penal na hipótese em que o Ministério Público não participou da audiência de instrução e o magistrado incorporou as funções do órgão acusador, formulando, ele próprio, as perguntas às testemunhas da acusação. Isso porque houve violação ao sistema acusatório e prejuízo para o contraditório e justiça da decisão. Além disso, o vício atinge o interesse público e a correta aplicação do direito (BRASIL, 2015).

Mencione-se, por fim, precedente, de 20/10/2016, prolatado pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, pugnando que a falta de intervenção do Ministério Público constitui causa de nulidade absoluta, sendo dispensável qualquer demonstração de prejuízo, o qual seria presumido, nos termos do artigo 564, inciso III, “d”, do CPP. No caso concreto, o agente ministerial não compareceu à audiência onde foi colhida toda a instrução judicial penal.

Como se disse alhures, chama a atenção o refluxo do entendimento da 5ª e da 6ª Turmas do STJ, as quais chegaram a defender, expressamente a nulidade presumida, inclusive fazendo menção à violação ao sistema acusatório, mas, agora, parecem defender uma nulidade apenas relativa com relação à ausência do membro do MP nas audiências, embora, frise-se, sem fazer o devido contraponto com os direitos humanos ao juiz imparcial, ao devido processo legal e ao contraditório bem como sem considerar a manifesta violação ao sistema acusatório penal.

 

4.3 O Tribunal de Justiça de Pernambuco, a Recomendação 01/2014 e o CNJ

No Estado de Pernambuco, o Tribunal de Justiça, através do seu Conselho da Magistratura, referendou e oficializou a prática das audiências criminais sem a presença do promotor de Justiça, representante do MP, através da Recomendação nº 01, de 13/11/2014, do Conselho da Magistratura do TJPE, a qual exorta os juízes com competência criminal que realizem audiência criminal sem a participação do representante do Ministério Público, desde que tenha havido a sua prévia intimação para participar do referido ato processual, independentemente de qualquer justificativa apresentada para não comparecer ao ato.

A referida recomendação, até hoje, serve de suposto lastro institucional e legal para que juízes de 1º grau realizem audiência criminais sem a presença do MP. Salvo algumas exceções, isso tem-se repetido em todo o Estado, mesmo diante de inúmeros requerimentos dos promotores de Justiça, justificando a ausência em razão de, no dia da audiência, estarem acumulando outras Promotorias ou até mesmo diante de atestados de saúde, que impossibilitariam o comparecimento.

Sim, porque a recomendação, ignorando por completo a necessidade do contraditório no processo penal, sequer admite o adiamento do ato em razão de qualquer justificativa apresentada, inclusive quando se tratar de motivo de saúde, bastando a prévia intimação do membro do MP para o ato.

Na jurisprudência do TJPE, portanto, predomina o entendimento de que basta a prévia intimação do membro do MP para participar da audiência de instrução, podendo o juiz realizar o ato em caso de ausência física do promotor de Justiça.

Mas as violações ao sistema acusatório penal não terminam por aí. Há precedente da 3ª Câmara do Pretório Estadual, nos autos da Apelação 0497419-2, rel. para o acórdão Des. Alexandre Assumpção, em 27/07/2018, onde se deixou de anular audiência de instrução na qual o juiz de 1º grau não apenas realizou o ato sem o MP como também proferiu, ao final do ato, sentença condenatória, em desfavor da parte acusada. Por maioria, entendeu a Câmara que o juiz poderia sentenciar, mesmo sem um pronunciamento final do MP, em homenagem ao princípio da duração razoável do processo. Afinal, a pretensão inicial do parquet, indicada na exordial penal, teria sido atendida com a condenação da parte acusada.

Relevante que se destaque a gravidade do precedente. Não apenas o Ministério Público foi completamente ignorado, durante a instrução criminal, como também foi reduzido a uma instituição sem autonomia funcional, que prima somente pela condenação da parte acusada, nos termos daquilo que fora deduzido na denúncia. Sob o pálio de uma genérica arguição do princípio da duração razoável do processo, estaria autorizado o juiz de Direito a passar por cima do sistema acusatório e a dispensar, inclusive, as alegações finais do parquet. Desconsiderou-se, outrossim, que o MP, enquanto fiscal da ordem jurídica, também pode pleitear a absolvição da parte acusada e não somente se limitar a repetir a pretensão acusatória da exordial penal.[9]

Nesse passo, à luz do lamentável precedente judicial, importante mencionar a advertência de Lima e Carneiro (2017), relatando que, no Estado de Pernambuco, já são muitos os precedentes de processos penais com sentença condenatória ao final, onde a participação do MP se restringiu à elaboração da exordial penal, sem qualquer outra atuação relevante na ação penal. Ou seja, verdadeira consagração de um sistema inquisitório, onde a função do acusador confunde-se com a do julgador.

Há, porém, precedente em favor da nulidade absoluta, da 1ª Câmara Regional do TJPE, em Caruaru. Em um deles (2ª Turma, apelação criminal 486624-6, decisão de 10/05/2018), anulou-se a instrução criminal onde o juiz realizou a audiência sem o MP, mesmo estando o membro de férias; dispensou testemunha de acusação, sem ouvir o MP e sentenciou o feito, sem alegações finais. Perceba-se, foi preciso que o magistrado de 1º grau dispensasse de ofício para uma testemunha indicada pelo MP, sem ouvir o órgão e com base no seu entendimento, sentenciasse, inquisitorialmente, o feito, para que fosse, enfim, reconhecida a nulidade absoluta.

Em 04/10/2016, o Conselho Nacional de Justiça julgou improcedente o procedimento de controle administrativo movido pela Associação do Ministério Público de Pernambuco (AMPPE) contra a Recomendação 01/2014, não obstante a manifesta inconstitucionalidade e ilegalidade do ato administrativo questionado.[10]

Porém, tratou-se de uma decisão por maioria. Não houve unanimidade. Pelo contrário, votaram contra a recomendação cinco conselheiros do CNJ: Norberto Campelo (Relator), Luiz Cláudio Allemand, Lelio Bentes, Rogério Nascimento e Arnaldo Hossepian.

A propósito, mencione-se o entendimento do relator do PCA 0000071-07.2015.2.00.0000, Conselheiro Norberto Campelo, em 23/02/2016, quando concedeu medida liminar, suspendendo os efeitos da Recomendação 01/2014 do TJPE:

PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE PERNAMBUCO. DECISÃO FINAL PELO NÃO CONHECIMENTO DA MATÉRIA, POR CONSIDERAR DE NATUREZA JURISDICIONAL. ART. 25, X, RICNJ. NECESSIDADE DE REVISÃO DA MONOCRÁTICA. RECOMENDAÇÃO N.º 01/2014 – CONSELHO DE MAGISTRATURA. REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIA CRIMINAL INDEPENDENTE DA PARTICIPAÇÃO DE REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ATO COM APTIDÃO PARA GERAR NULIDADE PROCESSUAL. ART. 129, I, CF/88, ART. 564, III, “d”, CPP. CONCESSÃO DA MEDIDA LIMINAR PARA SUSPENDER OS EFEITOS DO ATO ADMINISTRATIVO.

  1. Os precedentes são no sentido de que se for a matéria jurisdicional, impossível seria a atuação deste CNJ. Porém, o ato impugnado não é de natureza jurisdicional e sim administrativa, tendo em conta que pretendia tornar sem efeito ato administrativo de Órgão do Poder Judiciário (TJ/PE).

  2. O Conselho da Magistratura do Estado de Pernambuco equivocara-se na elaboração da Recomendação nº 01/2014, confrontando o princípio da legalidade, ao desconsiderar os termos do art. 129, inc. I, da CF/88, além do art. 564, inc. III, “d”, do CPP, tornando regra algo que deveria ser exceção, ao recomendar “aos magistrados com jurisdição criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco que realizem as audiências de instrução, sem a participação do representante do Ministério Público, desde que tenha havido sua prévia intimação pessoal para comparecer aos referidos atos processuais”, não fazendo alusão, sequer, à possibilidade de justificativa.

  3. Requisitos para concessão de medida acautelatória preenchidos nos termos do art. 25, XI, do Regimento Interno do CNJ (BRASIL, 2016).

 

5 O múnus de evitar e combater a realização de audiências criminais sem a presença do Ministério Público

Os membros não podem e não devem ficar indiferentes à contínua realização de audiências de instrução e julgamento sem a presença do Ministério Público.

Não se desconsidera aqui a difícil realidade orçamentária e a atual quantidade de cargos vagos da instituição. Trata-se de argumentos não jurídicos, porém muitas vezes invocados pelo Poder Judiciário para realizar a audiência sem o MP.

Não obstante, a instituição do Ministério Público e os seus membros precisam assumir como tarefa primordial o protagonismo no processo penal. Não se trata de opção ou escolha, mas de um dever constitucional, imposto pelo art. 129, inciso I, da Magna Carta de 1988, que forjou o MP como titular exclusivo da ação penal pública. Em verdade, há, na norma constitucional um verdadeiro múnus público, onde o Ministério Público deve capitanear o sistema acusatório, zelando por um processo penal justo e democrático.

Nesse sentido, diante da temerária tese da “nulidade relativa” e das reiteradas audiências penais realizadas sem a presença do MP, os membros devem defender o protagonismo da instituição diante de cada caso concreto. Em banda paralela, a chefia do MP, através do seu Procurador-Geral de Justiça, deve adequar, gradativa e permanentemente, o orçamento do órgão para tal realidade, evitando a vacância de cargos com atuação em Varas de natureza penal, principalmente.

Assim, se houver impossibilidade de acompanhar determinada audiência de instrução, deve o membro do MP, de imediato, oficiar ao juiz criminal e requerer o adiamento do ato, comunicando o motivo da ausência, como, aliás, já recomendou o Conselho Superior do MPPE, no ano de 2014.

Também é relevante que o membro, ao assumir determinada Promotoria de Justiça, em regime de acumulação, oficie ao Poder Judiciário, comunicando os dias em que poderá comparecer e pugnando que somente sejam realizadas audiências criminais com a presença do Ministério Público.

Igualmente importante é que a Procuradoria-Geral de Justiça, em comunhão com a Presidência do Tribunal de Justiça, recomende a promotores e juízes, com atribuição criminal, a prévia discussão da pauta de audiências e sessões do Tribunal do Júri, prevendo-se os períodos de férias de cada operador jurídico e onde exista um espaço anual, sem a marcação de audiências, para a participação em congressos e cursos de aperfeiçoamento de ambas as carreiras.

Por fim, não se pode olvidar que os membros do MP, ao receberem processos penais onde a instrução foi realizada sem a presença do Ministério Público, devem arguir, desde logo, a nulidade absoluta no feito, pugnando pela realização de nova instrução, seja nos próprios autos, mediante manifestação; seja através de recurso (correição parcial ou apelação criminal, conforme o caso); mediante contrarrazões recursais ou ação de impugnação própria (mandado de segurança).

Até porque trata-se de matéria de ordem pública, porque consiste na arguição de uma nulidade absoluta resultante da não observância de princípios constitucionais, cujo argumento não se submete à preclusão e pode ser reconhecida, inclusive de ofício, em qualquer foro ou instância (BONFIM, 2015, p. 827).

Outrossim, relevante lembrar que os promotores de Justiça devem zelar pelo respeito ao devido procedimento legal da intimação pessoal do Representante do MP, nos termos do art. 370, § 4º do CPP, c/c o art. 41-IV da Lei 8.625/1993.

Tais normas determinam que a intimação pessoal do MP será feita com a remessa dos autos do processo penal com vista, ou seja, a intimação pessoal é realizada em cada processo e não em uma folha, a chamada “pauta de audiências”, impressa pelas Secretarias das Varas Judiciais e onde, de forma genérica, pede-se para o membro dar ciência.

Tal forma de intimação é nula e não pode ser aceita pelos membros do MP, os quais devem receber os autos processuais com vista para tomar ciência em cada audiência de instrução designada; analisarem o processo penal; e, se for o caso, requererem as providências necessárias para a realização do ato com a presença do membro do parquet.

Os procuradores de Justiça têm, outrossim, um papel relevante em tal contexto, devendo arguir a nulidade absoluta perante o Tribunal de Justiça, prequestionando a matéria e levando, em caso de não acolhimento da tese, o tema para discussão no âmbito dos Tribunais Superiores. Não é suficiente somente a interposição de recurso especial, para o STJ. A discussão jurídica é, essencialmente, constitucional. Por isso, há que se interpor também recurso extraordinário, para o STF, arguindo-se violação ao art. 5º, incisos LIII (juiz natural e imparcial), LIV (devido processo legal) e contraditório (LV), além do próprio sistema acusatório penal, por negativa de vigência ao art. 129, inciso I, da Magna Carta.

6 Conclusões

  1. O processo penal brasileiro, em razão da DUDH e da CF/1988, deve primar por um sistema acusatório e democrático, onde as funções de acusar, defender e julgar são exercidas por atores processuais e instituições diversas.
  2. Nos termos dos arts. 10 e 11 da DUDH, ocorre nulidade absoluta da prova colhida em audiência de instrução judicial, no processo penal, sem a presença física do membro do MP, conforme o art. 546-III, d, do CPP, c/c os arts. 5º-LIII, LIV e LV e 129-I da Magna Carta de 1988, por manifesto dano aos direitos humanos ao juiz imparcial, ao devido processo legal e ao contraditório.
  3. A recomendação nº 01/2014, do Conselho da Magistratura de Pernambuco, é um ato jurídico manifestamente inconstitucional e verdadeiro estímulo à figura do juiz parcial e inquisidor.
  4. É dever de todos os membros do Ministério Público lutar pelo protagonismo da instituição no processo penal, arguindo a nulidade absoluta da audiência sem promotor em qualquer foro ou instância judicial como também adotando, com o necessário apoio da Procuradoria-Geral de Justiça, todas as medidas administrativas cabíveis para evitar a nefasta práxis, inclusive com prévia discussão da pauta anual das audiências de instrução e julgamento com a Chefia do Poder Judiciário.

REFERÊNCIAS

Artigos jurídicos

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LIMA, Charles Hamilton Santos; CARNEIRO, André Silvani da Silva. A função do Ministério Público é essencial, não apenas eventual. CONJUR: Consultor Jurídico. Coluna MP no debate. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jul-17/mp-debate-funcao-ministerio-publico-essencial-nao-apenas-eventual>. Acesso em: 31.12.2018.

TÁCITO, Caio. A Razoabilidade das Leis. Revista de Direito Administrativo, nº 204, Rio de Janeiro, Renovar, abril/junho, p. 01-03, 1996.

Jurisprudência

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Livros jurídicos

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Livros não jurídicos

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LIRA NETO. Getúlio: do governo provisório à ditadura do Estado Novo (1930-1945). São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

Revistas

MPPE EM FOCO. Recife: Ministério Público de Pernambuco, ano VIII, nº 37, 59 p.

[1] Relevante destacar, a cláusula do Due Process of Law foi consagrada no Direito anglo-saxônico a partir da Magna Carta inglesa de 1215. No Direito norte-americano, o Princípio do Devido Processo Legal apresenta duas fases, a primeira limitando-se ao caráter processual (Procedural Due Process) e a segunda fase, voltando-se também para o direito substantivo (Substantive Due Process). A partir do Substantive Due Process, passou-se a admitir um controle, pelo judiciário, dos atos do Poder Público, examinando-se sua razoabilidade (reasonableness) e sua racionalidade (rationality), tendo em vista a proteção dos direitos e liberdades individuais (TÁCIO, 1996, p. 01-03).

[2] Afinal, os direitos humanos, enquanto fenômeno histórico-social-jurídico-econômico não se realizam e concretizam de forma imediata; transformam-se continuamente com o tempo e dependem – e muito – de decisões políticas e da postura proativa dos operadores jurídicos, máxime aqueles compromissados com a transformação social e a defesa da Constituição. Sobre o tema, relevantes as reflexões de Morais (2011, p. 84-89).

[3] Nesse aspecto, concorda-se com Oliveira (2006, p. 11), quando afirma que o sistema brasileiro processual penal brasileiro é marcantemente acusatório e não misto, pois o inquérito policial (presidido inquisitorialmente pela autoridade policial) não é processo judicial, sendo fase prévia e não imprescindível para o oferecimento da exordial penal.

[4] Era o chamado Estado Novo, instalado a partir de setembro de 1937, o qual consagrava um regime autoritário, capitaneado pelo presidente Getúlio Vargas. Além de uma Constituição outorgada, ou seja, imposta sem a participação popular, os partidos políticos foram extintos; interventores foram nomeados como governadores dos Estados; passou a haver censura prévia ao jornais; o presidente poderia dissolver o Congresso e expedir diretamente decretos-lei, como foi o caso do Código de Processo Penal (conforme, ARRUDA e PILETTI, 2010, p. 500-504 e LIRA NETO, 2013, p. 306-311).

[5] Art. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos:

(…)

III-por falta das fórmulas ou dos termos seguintes:

(…)

  1. d) a intervenção do Ministério Público em todos os termos da ação por ele intentada e nos dá intentada pela parte ofendida, quando se tratar de crime de ação pública;

[6] Nomenclatura mais atualizada, nos termos do art. 127, caput, da CF/1988 (defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis), adotada pelo CPC de 2015 (arts. 82, § 1º, e 178, v. g.).

[7] Art. 572. As nulidades previstas no art. 564, Ill, d e e, segunda parte, g e h, e IV, considerar-se-ão sanadas:

I-se não forem argüidas, em tempo oportuno, de acordo com o disposto no artigo anterior;

II-se, praticado por outra forma, o ato tiver atingido o seu fim;

III-se a parte, ainda que tacitamente, tiver aceito os seus efeitos.

[8] Foi justamente o que ocorrera no mencionado caso concreto, pois um dos argumentos do decisum foi a “ausência de prejuízo”, já que a prova colhida sem o MP “confirmou” a autoria delitiva.

[9] Como bem adverte Dworkin (1986, p. 379-381), interpretar a Constituição não é algo fácil, exigindo uma interpretação mais complexa do que aquela utilizada para a legislação ordinária; ou seja, menos mecânica e menos superficial.

[10] Meses depois, apoiando a iniciativa da AMPPE, a Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público de Pernambuco solicitou à Procuradoria-Geral da República que ingressasse com uma arguição de descumprimento de preceito fundamental contra a Recomendação 01/2014 (MPPE EM FOCO, 2018, p. 34). Até o momento da elaboração deste artigo jurídico, a PGR ainda não havia se pronunciado a respeito.