O Ministério Público enquanto negociador dos interesses e direitos sociais e individuais indisponíveis
Artigo de Salomão ismail filho
Promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco, titular da 22ª PJDC da Capital (direito humano à educação). MBA em Gestão do Ministério Público (UPE). Especialista e Mestre em Direito (UFPE). Doutor em Direito (UNICAP). Pós-doutor (Universidade de Salamanca).
Resumo. Este artigo investiga a natureza jurídica da condição do ministério público enquanto negociador dos direitos e interesses sociais e individuais indisponíveis do ministério público. O estudo busca caracterizar o ministério público como canal de acesso direto ao valor justiça, a partir da sua atuação extrajudicial e resolutiva, na condição de negociador. Apresenta, ainda, sugestões para a atuação dos membros do mp como negociadores sociais.
Palavras-chave: ministério público – ombudsman – acesso à justiça – negociação – resolutividade.
Abstract. This article investigates the legal nature of the public prosecutor´s condition of negotiator of social and individual and unavailable rights. The paper aims to characterize the public prosecutor office as a direct access channel to justice, based on its extrajudicial and resolutive action, as a negotiator. It also presents suggestions for members of public prosecutor to act as social negotiators.
Keywords: public prosecutor office – ombudsman – access to justice – negotiation – resolution.
Sumário. Introdução. 1. Natureza jurídica da negociação. 2. Pressupostos para uma negociação exitosa. 3. O ministério público e sua atuação como negociador social. 4. Técnicas para a atuação para o mp negociador social. Conclusões. Referências.
Introdução
Os tempos atuais exigem cada vez mais uma atuação resolutiva do ministério público, ou seja, uma atuação que entregue resultados efetivos à sociedade, evitando a judicialização de demandas cuja solução pode ser encontrada diretamente pelos próprios membros do parquet, de uma forma mais célere e efetiva.
Todavia, em sua atuação resolutiva, buscando funcionar como canal de acesso direto ao valor justiça, seria o ministério público, à luz da sua missão constitucional, insculpida no art. 127, caput, da magna carta, verdadeiramente, um conciliador, um mediador ou negociador a favor dos interesses mais relevantes da sociedade?
Seriam os membros do ministério público, diante daqueles que o demandam, em prol da efetivação dos direitos fundamentais, plenamente afastados dos fatos sociais ou mesmo isentos o suficiente para atuarem como mediadores ou conciliadores? Não seriam, então, os membros e membras ministeriais verdadeiros negociadores dos interesses sociais e individuais indisponíveis?
Nesse sentido, parece ser importante discutir qual o papel preponderante do ministério público nesta atuação extrajudicial e resolutiva, a fim de que, doravante, possam os seus membros e membras, cada vez mais, conhecerem melhor tal ofício, aprimorando as suas técnicas de atuação.
Eis, então, o objetivo principal deste artigo jurídico: traçar um perfil do mp negociador dos interesses sociais e individuais indisponíveis, contribuindo para o perfil de instituição resolutiva e comprometida com a transformação da realidade social, a partir da efetivação dos direitos fundamentais da pessoa humana.
1-Natureza jurídica da negociação
A negociação é uma das formas de autocomposição, ou seja, um meio alternativo de resolver litígios (contendas, disputas, conflitos de interesses) sem a necessidade de recorrer ao poder judiciário. Aliás, segundo cintra, grinover e dinamarco (2009, p. 27 e 31-35), a autocomposição seria o legítimo “meio alternativo de pacificação social para a solução dos conflitos”, através de modalidades não jurisdicionais de solução.
De forma mais direta e ampla, podemos dizer que a negociação é um meio que utilizamos para chegar a um acordo com outrem, buscando obter um resultado que nos interessa. Como bem lembram fisher, ury e patton (2005, p. 15-17), a negociação é uma “verdade da vida”, pois, desde a infância, atuamos como negociadores (ainda que informais), a fim de obter algo ou algum resultado que nos interessa. Exemplos típicos são os da filha que negocia com o pai o horário de ir dormir durante a semana ou das crianças que negociam a divisão da quadra onde brincam com outras crianças ou adolescentes que utilizam o mesmo espaço.
A negociação pode envolver os tempos passado, presente e futuro, pois, normalmente, envolve uma situação ocorrida no passado, onde se busca uma solução para o presente ou para o futuro (rodrigues; oliveira, 2005, p. 33-34).
A grande diferença da negociação para outros meios alternativos de autocomposição, como a mediação, a conciliação e a arbitragem, é que nela a parte interessada atua diretamente com o outro lado interessado na busca da solução almejada, sem a interferência de um terceiro ou ator externo.
Importante ainda lembrar que, na mediação, o mediador atua como alguém que visa, acima de tudo, preservar a relação entre as partes; ao contrário da conciliação, por exemplo, o mediador não propõe a solução, mas procura atuar, com imparcialidade, para que as partes encontrem tal solução. Ou seja, o acordo é consequência da relação entre as partes e não uma meta a ser atingida, tal como ocorre com a conciliação.[1]
O código civil de 2002, que trata das normas a serem aplicadas no âmbito do direito privado, em regra, utiliza a palavra “negociação” somente uma vez, no art. 113, § 1º-inciso v, nas disposições introdutórias sobre o negócio jurídico, prescrevendo que a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.
Mais adiante, o código civil ainda trata da “transação”, modalidade contratual do direito privado, definindo-a como aquela onde é lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas (art. 840).
[1] Maiores detalhes sobre as diferenças entre conciliação, mediação e arbitragem podem ser encontrados em nosso livro “Ministério Público e atendimento à população: instrumento de acesso à justiça social” (ISMAIL FILHO, 2011).
É importante aqui destacar que tais previsões, no código civil brasileiro, têm a ótica estrita do direito privado, regulando o negócio jurídico produzido pelas partes e não a negociação propriamente como técnica e instrumento de resolução extrajudicial de litígios, a qual também pode ser utilizada por atores que militam no direito público, como o parquet, máxime quando se trata da defesa direitos fundamentais previstos em nossa magna carta.
O atual cpc (código de processo civil, lei federal nº 13.105, de 16.05.2015) brasileiro não utiliza a palavra “negociação” em nenhum momento, embora disponha que “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do ministério público, inclusive no curso do processo judicial” (art. 3º, § 3º).
Além disso, em seu art. 166, mesmo tratando de mediadores e conciliadores, o cpc admite a aplicação de “técnicas negociais”, com o objetivo de proporcionar ambiente favorável à autocomposição.
No âmbito do cnmp (conselho nacional do ministério público), existe a resolução nº 118, de 1º.12.2014, a qual trata da política nacional de incentivo à autocomposição no âmbito do ministério público e dá outras providências. Tal política tem por finalidade assegurar a promoção da justiça e a máxima efetividade dos direitos e interesses que envolvem a atuação do parquet (art. 1º). Para tanto, incumbe ao mp brasileiro implementar e adotar mecanismos de autocomposição, como a negociação (além de outros, como a mediação, a conciliação, o processo restaurativo e as convenções/negócios processuais), sempre prestando atendimento e orientando o cidadão a respeito de tais mecanismos (parágrafo único do art. 1º).
Portanto, podemos concluir, neste tópico, o seguinte: a negociação é uma espécie de autocomposição, ou seja, método alternativo de resolução de litígios; é admitida pelo ordenamento jurídico brasileiro pelo cpc; tem previsão, para o direito privado, no código civil (através da transação), e, de forma expressa, é uma técnica a ser invocada pelos membros do ministério público em seu trabalho de promoção e implementação dos direitos fundamentais (resolução cnmp 118/2014).
2-Pressupostos para uma negociação exitosa
De início, podemos dizer que o primeiro pressuposto para uma boa negociação é subjetivo: o negociador precisa ter perfil para tal atividade; saber defender seus objetivos e propósitos sem necessariamente agredir a outra parte, a qual deve ser entendida como parceiro de negócio/compromisso e não como um adversário.
Demais, precisa o negociador ter pleno conhecimento do objeto da sua negociação e das finalidades a serem atingidas. Saber o que deseja e por que deseja (skali, 2023, p. 05-06).
Necessita, ainda, ter conhecimento da outra parte; dos negociadores envolvidos e dos objetivos a serem por eles perseguidos. Aliás, conhecer a contraparte da negociação é um dos pré-requisitos indispensáveis para uma negociação exitosa. Deveras, conhecer a contraparte é saber colocar-se no seu lugar, a fim de entender a sua leitura de certos pontos que serão tratados na negociação (pampolini, 2012, p. 22).
Por fim, imprescindível que o negociador seja flexível ou razoável o suficiente para saber fazer concessões, entendendo a negociação como um processo em que todos podem sair satisfeitos ao final (ganha-ganha) e não como um jogo ou uma atividade onde exista um ganhador e um vencedor, como bem ensina o programa de negociação da harvard law school (escola harvard de negociação), capitaneado por roger fisher (fisher; ury; paton, 2011).
Portanto, em síntese, podemos indicar quatro pressupostos para uma negociação exitosa: 1) perfil de negociador dos atores envolvidos; 2) conhecimento do objeto a ser negociado; 3) conhecimento da contraparte na negociação; 4) ter flexibilidade para fazer concessões; 5) entender a negociação como um processo onde todos podem sair vencedores ou satisfeitos com a solução construída (ganha-ganha).
3- O Ministério Público e sua atuação como negociador social
Poderia o ministério público, através de seus membros e membras, atuar como negociador, máxime em sua atividade extrajudicial, a favor da promoção dos direitos fundamentais da pessoa humana?
A resposta positiva apresenta-se mais do que evidente e óbvia, pois os membros e membras ministeriais já fazem isso, na prática, há muitos anos, quando, por exemplo celebram termo de compromisso; pactuam tarefas e compromissos em atas de audiência públicas ou mesmo propõem transações penais (art. 76 da lei 9.099/1995) e, mais recentemente, acordos de não persecução penal (art. 28-a do cpp, incluído pela lei 13.964/2019).
Ora, a resolução cnmp (conselho nacional do ministério público) nº 118/2014, que dispõe sobre a política nacional de incentivo à autocomposição, no âmbito do ministério público brasileiro, trata da negociação em seu art. 8º, caput, dispondo que a negociação é recomendada para as controvérsias ou conflitos em que o mp possa atuar como parte na defesa de direitos e interesses da sociedade, em razão de sua condição de representante adequado e legitimado coletivo universal (art. 129, iii, da cf/1988).
Além disso, informa que a negociação seria recomendada para a solução de problemas referentes à formulação de convênios, redes de trabalho e parcerias entre entes públicos e privados, bem como entre os próprios membros do ministério público (parágrafo único do art. 8º).
Mas, quais seriam os interesses da sociedade que autorizariam a atuação do mp na condição de negociador?
São os interesses da sociedade como um todo; os interesses de natureza social, grupal ou coletiva, com impacto na sociedade, que exigem a atuação de um legitimado universal (ministério público) em sua defesa. A propósito, a constituição de 1988, quando utilizou a expressão “interesses sociais” relacionada com o ministério público (art. 127, caput), o fez como uma expressão genérica, tratando, justamente, desses interesses de natureza difusa ou grupal, estando, então, nela incluídas todas as classificações de tais interesses: interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, mencionada no art. 81-inciso iii do código de defesa do consumidor, lei 8.078/1990 (ismail filho, 2023, p. 66-72).
Além disso, cabe aos membros ministeriais a atuação em defesa do interesse ou direito fundamental de natureza indisponível, em sua expressão individual, ou seja, refletindo-se em determinada pessoa ou indivíduo, como o direito à saúde; à alimentação; à integridade física; à educação; ao respeito à sua dignidade sexual etc.
Deveras, o ministério público não é o titular dos interesses e direitos sociais e individuais indisponíveis, mas atua em sua defesa e promoção por disposição constitucional, na sua condição de ombudsman do povo (art. 129-inciso ii da cf/1988).
Destarte, como negociador, deverá atuar sempre em busca de um consenso válido (dentro do ornamento jurídico), buscando sempre promover o direito/interesse fundamental, social ou indisponível, em questão, jamais permitindo que seja ele diminuído ou violado (gravonski, 2015, p. 146-163).
Questão interessante é que a resolução cnmp 118/2014 dispõe também sobre a atuação do mp como mediador, sendo tal prática recomendada para solucionar controvérsias ou conflitos que envolvam relações jurídicas nas quais é importante a direta e voluntária ação de ambas as partes divergentes (art. 9º). A norma menciona, ainda, que, na mediação comunitária e/ou na escolar, a atuação do membro ministerial deve ser regida pela máxima informalidade possível (parágrafo único do art. 9º).
Como já pontuamos outrora (ismail filho, 2011, p. 70), mesmo nas situações supramencionadas, consideramos que o ministério público, em verdade, atua como um mediador sui generis, próximo a um negociador, considerando a sua indissociável vinculação aos interesses sociais e individuais indisponíveis. Ou seja, diante de conflitos envolvendo tais interesses/direitos, o parquet não teria a isenção necessária, exigida no clássico conceito de mediação (onde o mediador precisa ser absolutamente neutro e não apresentar soluções, mas induzir as partes para tanto), precisando o órgão ministerial atuar, ainda que de forma justa, em favor da parte que reivindica o direito social ou individual indisponível que estaria sendo violado, inclusive propondo soluções para as partes envolvidas.
De fato, a mediação é um meio alternativo de resolução extrajudicial de disputas caracterizado pela presença de um terceiro (heterocomposição) imparcial, neutro, sem relação de poder e hierarquia entre elas, o qual buscará facilitar, auxiliar ou incentivar as partes envolvidas para que cheguem a uma solução para a demanda (calmon, 2007, p. 118-122).
A mediação visa, principalmente, preservar a relação entre as partes envolvidas; chegar a um acordo ou solução seria mera consequência disso. Se o terceiro começa a propor soluções, visando a um acordo entre as partes, teremos uma conciliação (vasconcelos, 2008, p. 36-39) e não uma propriamente mediação
Deveras, na prática, em sua atuação extrajudicial, como canal de acesso à justiça, dificilmente, os membros do mp apenas induzem as partes a encontrarem, por elas próprias, uma solução ou algum encaminhamento para a demanda (o que se exige na mediação clássica), mas, atuam de forma ativa, propondo soluções, em favor da parte hipossuficiente ou mesmo do direito ou interesse da sociedade em discussão.
Tomemos como exemplo o direito à educação, que chega a ser mencionado pela resolução 118/2014, como um campo de atuação do mp mediador (art. 9º, parágrafo único). Em regra, disputas escolares devem ser resolvidas no universo da própria escola, pelos seus educadores, evitando a interferência de atores externos, como o ministério público. A este, cabe a atuação/fiscalização de forma ampla, a fim de garantir o próprio acesso ao direito à educação, em questões como a ampliação de vagas para a educação infantil; a garantia de vaga escolar na rede pública, próxima à residência do estudante; a estrutura das escolas para a educação especial na perspectiva inclusiva; a educação de jovens e adultos etc. É uma atuação tipicamente de um negociador coletivo, que atua de forma ativa, convocando reuniões e propondo soluções, em defesa do direito humano à educação.
Em uma situação bastante excepcional, poderíamos até pensar em uma mediação de conflito envolvendo a direção da escola e um aluno, mas, ainda assim, o membro do mp não seria um mediador clássico, pois a sua missão é defender o direito à educação, principalmente quando se tratar de criança ou adolescente, examinando se houve ou não violação, ainda que buscando preservar a relação entre as partes, da forma mais justa possível.
Não seria, então, o ministério público um conciliador social?
Muito embora a conciliação também seja mencionada pela resolução cnmp 118/2014 (arts. 11 e 12), justamente por atuar como ombudsman (ouvidor da sociedade, art. 129-inciso ii da cf/1988) e pelo compromisso constitucional de defender os interesses e direitos sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, da cf/1988), não seria o membro ministerial um mero conciliador de tais interesses, porque, como explicamos acima, estaria vinculado à realização deles, lutando não somente pela solução da demanda concreta, mas também para evitar que ela se repita no futuro. Além disso, poderá investigar os responsáveis pela violação em questão, mediante o exercício dos seus poderes investigatório e requisitório (art. 129, incisos iii, vi e viii, da magna carta).
Ou seja, trata-se de um terceiro ou órgão de natureza especial, o qual detém certa posição de poder com relação às partes envolvidas e, embora deva sempre atuar com justiça, polidez e respeito quanto às partes interessadas, não pode ser incluído nas definições clássicas de um mediador ou conciliador. Por isso, parece-nos mais adequado qualificar o ministério público como um negociador qualificado, ou, simplesmente, um negociador social.
Importante registrar que, em algumas situações, máxime diante de infrações/atos de natureza penal, quando cabível, indo além da resolução da controvérsia e ainda buscando harmonizar o convívio entre autor e vítimas, poderão ser adotadas práticas restaurativas pelos membros do ministério público, reforçando o papel do parquet como garantia constitucional de acesso ao valor justiça e instrumento de efetivação dos direitos fundamentais (almeida; beltrame; romano, 2015, p. 132-133), como, inclusive também está previsto na resolução cnmp 118/2014 (arts. 13 e 14).
4-Técnicas de atuação para o mp negociador social
Como explicamos outrora, partimos de um pressuposto adotado pela escola da faculdade de direito de harvard, alicerçada na ideia de uma negociação onde todos podem sair vencedores (ganha-ganha), deixando de lado a ideia de que, em uma negociação, uma parte precisa vencer e a outra, perder.
É dentro de tal lógica que o mp negociador social precisa atuar, na busca por uma atuação extrajudicial que seja efetivamente resolutiva, com resultados efetivos, em benefício para toda sociedade ou para a parte titular do direito ou interesse individual indisponível em questão.
Evidentemente, nas situações concretas, poderá haver casos em que se estará diante de infratores contumazes, mas, ainda assim, é preciso ter em mente e passar para a parte interessada que negociar com o ministério público poderá trazer para ela inúmeros benefícios, se comparada a negociação com uma eventual judicialização da demanda.
Não pretendemos esgotar aqui todas as técnicas de negociação para os membros e membras ministeriais, mas somente trazer alguns requisitos, alguns itens os quais entendemos que podem auxiliar para uma negociação exitosa.
Primeiramente, é preciso que o mp negociador social seja ético, atuando dentro dos limites definidos pelo ordenamento jurídico. Na lógica da negociação ganha-ganha, não há espaço para um negociador que pressione a outra parte, muitas vezes ameaçando-a aos gritos, sob o “argumento de autoridade” ou mesmo trazendo exemplos de fatos e de supostos acordos feitos com outras partes os quais, em verdade, não ocorreram (moraes, 2015, p. 168-169).
Além disso, recordando dos pressupostos gerais para uma negociação exitosa ou bem-sucedida (item 2), é preciso que o membro do mp tenha a flexibilidade necessária para saber fazer concessões, dentro dos limites de fato e de direito que lhe são permitidos. Não se trata de abdicar ou abrir mão de um direito indisponível, mas, diante da situação concreta que lhe é apresentada e dos espaços de cumprimento/efetivação do direito fundamental em discussão, que saiba ele criar várias alternativas para a contraparte da negociação, tornando viável o acordo almejado.
Um exemplo a respeito são os prazos para a efetivação de determinado direito fundamental. Tomemos como exemplo a construção ou reforma de uma escola pública. A negociação não evoluirá ou poderá restar infrutífera se o membro (a) for inflexível quanto ao prazo para a referida obra, fixando um tempo de resposta que esteja em desacordo com a proposta da entidade pública. É preciso, então, negociar tendo por meta os princípios e objetivos a serem atingidos (a construção ou renovação de uma escola para a comunidade, isso é o que verdadeiramente importa) e não posições pontuais dentro de um processo negociativo.
Na linha de pensamento da escola harvard de negociação, o membro do mp precisa negociar baseado não em posições pontuais, mas em princípios e interesses; por isso, a necessidade de ser flexível (quando a situação fática assim o permitir), sabendo fazer concessões para a contraparte da negociação, permitindo-lhe que também ela sinta que o acordo lhe beneficia (fisher; ury; paton, 2011, p. 338-394).
O que se busca, efetivamente, com a negociação conduzida pelo ministério público? Qual o direito fundamental que se quer ver realizar/efetivar, a partir de determinada ação? Quais os benefícios reais para a sociedade que a negociação poderá trazer? Haveria outras formas de cumprimento do direito, além daquelas previstas inicialmente pelo parquet? Valeria a pena judicializar determinada demanda? Através do poder judiciário, quando se conseguiria, na prática, a realização do direito fundamental em discussão?
São questionamentos como esse que o membro ministerial deverá fazer, diante da necessidade de flexibilizar (ou não) determinados pontos de um termo de compromisso (como prazo de cumprimento; multa prevista para a contraparte; tempo de validade do acordo; forma de cumprir a obrigação etc.).
Por isso, a importância de conhecer a contraparte do processo de negociação, compreendendo seus anseios e medos. Não pode o membro ministerial ingressar, em uma negociação, com preconceitos já firmados com os negociadores do outro lado, colocando-se em uma posição de dono da verdade ou de instituição acima ou melhor do que aquela com a qual se busca negociar.
Como lembram fisher, ury e patton (2005, p. 30), é preciso saber separar as pessoas envolvidas do problema, tratando-as de forma humanizada e não de forma fria e distante. Tal conduta permitirá manter as relações com a contraparte da negociação, o que, em algumas situações, máxime quando se trata de parceiros de atuação (como o município, o estado ou a união, e os seus diversos órgãos, secretarias ou ministérios) é algo bastante positivo, inclusive já se pensando em ações futuras ou outros procedimentos similares que envolvam a atuação de tais parceiros.
Com fundamento na lição de moraes (2015, p. 206-208),[1] os membros do mp negociadores do interesse social precisam saber escutar, praticando e desenvolvendo uma escuta ativa, interagindo com o outro lado durante a sua fala, onde, efetivamente, a contraparte da negociação sinta que os seus pleitos e propostas, ainda que não acolhidos plenamente, são ouvidos pelo parquet.
No entanto, advertimos que a ideia aqui defendida não é que o membro ministerial tenha uma postura “suave” nas negociações, somente fazendo concessões para a outra parte. Não propomos os extremos (negociação difícil/inflexível versus negociação suave). O ministério público precisa atuar em prol dos princípios e interesses que o move, fazendo concessões à outra parte da negociação, mas também sabendo o momento oportuno para que lhe cobrar concessões, em prol do interesse público em discussão.
Não se trata de atuar como adversário ou inimigo da outra parte, mas de atuar na condição de alguém que deseja solucionar o problema/questão da melhor forma possível, preservando a relação profissional/institucional com a contraparte e chegando a um acordo que deixe todos os envolvidos satisfeitos (tobón, 2017, p. 18-20).
Questões difíceis e pontuais podem exigir mais de uma reunião ministerial de negociação. Reuniões apressadas ou feitas sob pressão de uma conclusão imediata poderão resultar em acordos não sábios (fisher; ury; paton, 2011, 5-6), ou seja, acordos que não atendam o interesse público ou que não realizem o direito fundamental em discussão.
Demais, é preciso que, no âmbito da promotoria ou procuradoria, seja criado um ambiente próprio para uma negociação exitosa, onde a contraparte sinta-se bem-recebida, confortável e não em uma situação sob pressão, de inferioridade ou de submissão perante o parquet.
Conclusões
- A negociação é uma espécie de autocomposição (forma de resolução extrajudicial de litígios), sendo admitida pelo ordenamento jurídico brasileiro pelo código de processo civil (arts. 3º, § 3º, e 166) e, por expressa disposição da resolução cnmp 118/2014, é uma técnica a ser utilizada pelos membros do ministério público em seu trabalho de promoção e implementação dos direitos fundamentais da pessoa humana.
- São pressupostos que precisam ser observados para uma negociação exitosa: 1) perfil de negociador; 2) conhecimento do objeto a ser negociado; 3) conhecimento da contraparte na negociação; 4) ter flexibilidade para saber fazer concessões; 5) entender a negociação como um processo onde todos podem sair vencedores ou satisfeitos com a solução a ser construída (ganha-ganha).
- O ministério público, através dos seus membros e membras, atua como verdadeiro negociador social, em defesa dos interesses e direitos sociais e individuais indisponíveis.
- Por isso, não pode ser considerado um mediador ou conciliador, em razão da sua vinculação constitucional à defesa de tais direitos; por atuar de forma ativa, propondo soluções para as demandas que lhe são trazidas e não apenas induzindo as partes para tanto e por deter certa relação de poder com relação às partes envolvidas, em razão do seu poder requisitório e investigatório (art. 129, incisos iii, vi e viii, da cf/1988).
- Como negociador social, o (a) membro (a) do ministério público deverá, observando os pressupostos gerais para uma negociação exitosa:
-Saber fazer concessões, dentro dos limites de fato e de direito que lhe são permitidos;
-Entender o momento oportuno para também cobrar concessões da contraparte na negociação, em prol do interesse público em discussão;
-Negociar baseado não em posições pontuais, mas em princípios e interesses, tendo em mente o objetivo maior de concretizar o direito fundamental em questão;
-Conhecer a contraparte do processo de negociação, compreendendo seus anseios e medos, evitando preconceitos e sabendo separar as pessoas do problema em discussão;
-Saber escutar, praticando uma escuta verdadeiramente ativa, onde a contraparte do processo de negociação perceba que seus pleitos e propostas, ainda que não acolhidos plenamente, são ouvidos pelo parquet;
-Criar, no âmbito da promotoria ou procuradoria, um ambiente próprio para uma negociação exitosa, onde a contraparte sinta-se bem-recebida, confortável e não em uma situação de pressão, de inferioridade ou de submissão perante o ministério público.
Referências
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