O Ministério Público e os direitos humanos: um agente na busca da transformação social

Luís Sávio Loureiro da Silveira

Promotor de Justiça em Pernambuco e Coordenador do CAOP Criminal

Mariana Farias Silva

Acadêmica em Direito pela UFPE, ex-estagiária do MPPE, estagiária do TCE-PE.

Richardson Silva

Delegado Especial de Polícia em Pernambuco, professor e pesquisador.

 

RESUMO

O presente artigo discorre sobre a relevância da atuação específica e significativa do Ministério Público na prevenção, proteção e efetivação dos Direitos Humanos, destacando o seu caráter de agente de transformação social sobrelevado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no cumprimento de sua missão institucional, incumbido que está, dentre inúmeras outras funções, da defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais, individuais indisponíveis, difusos, coletivos, respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública.

PALAVRAS-CHAVES

Ministério Público; Direitos Humanos; Atuação; Transformação social.

 

ABSTRACT 

This article discusses the relevance of the specific and significant performance of the Public Ministry in the prevention, protection and enforcement of Human Rights, highlighting its character of social transformation agent raised by the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988, in the fulfillment of its institutional mission, which is defending the legal order, the democratic regime, social interests, individual interests that are unavailable, diffuse, collective, respect for the Public Powers and services of public relevance.

KEYWORDS

Public Ministry; Human Rights; Operation; Social Transformation.

 

1 Introdução

O Ministério Público tem na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 um marco na sua história, passando a ter autonomia e independência para agir da forma mais eficiente e dinâmica possível na garantia dos direitos fundamentais e, mais especificamente, na prevenção, proteção e efetivação dos direitos inerentes aos seres humanos, dentre eles o direito à vida, à igualdade, à dignidade, à segurança, à honra, à liberdade, à propriedade, à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à convivência familiar e comunitária, à previdência social e à proteção aos desamparados. Coincide com a consolidação do regime democrático.

Este marco histórico promovido pela Constituição possui um valor notável e crucial na medida em que o Ministério Público detém, dentre várias funções, a de prevenção, proteção e efetivação dos direitos humanos. É de boa lógica afirmar que, para a construção de um Estado Democrático de Direito, esta atribuição é considerada essencial, indispensável, elementar. Consolidado o regime democrático, a luta pelos direitos humanos passou a ser uma batalha pela efetiva implementação dos direitos adquiridos através da nova Carta. A partir dessas considerações, surge um novo perfil do Ministério Público.

Hoje, o Ministério Público atua na defesa e efetivação dos Direitos Humanos tanto através das Promotorias de Justiça comuns como através das chamadas Promotorias de Justiça Extrajudiciais Especializadas, que trabalham com procedimentos preliminares, inquéritos civis e procedimentos de investigação criminal, visando a resolução do conflito sem a instauração de um processo judicial. Esse formato mais voltado à conciliação e à modificação de valores sem a imposição de uma sanção por um juiz representa um evidente processo de transformação social que o Ministério Público se propõe a realizar. Essa transformação é desenvolvida pelo órgão em conjunto com a sociedade civil, por meio da elaboração de mecanismos e estratégias para a efetivação das promessas de cidadania da Constituição de 1988.

Neste artigo, por meio de uma análise histórica do Ministério Público e dos Direitos Humanos, com dados obtidos através de pesquisa bibliográfica e documental, buscamos entender qual a contribuição efetiva deste órgão para a transformação social, levando em consideração suas atribuições e sua forma de atuação.

 

2 Primórdios do Ministério Público

Existe certo mistério quanto à verdadeira origem do Ministério Público, o que causa grande controvérsia entre os pesquisadores. Um olhar na História não possibilita determinar com precisão onde, quando e como se deu o seu surgimento.

Pesquisadores asseveram que a origem da expressão “Ministério Público” foi encontrada em textos romanos clássicos, com certa constância. Ensina Moreira (2009, p. 9-10) que “O termo ‘ministério’ deriva do latim ministerium, minister, que revela o significado de oficio do servo, função de servir, mister ou trabalho. Já o adjetivo ‘público’ indica a ideia de instituição estatal (aspecto subjetivo) ou de interesse geral ou social (aspecto objetivo)”.

Há pesquisadores que datam sua origem há mais de quatro mil anos, no Egito, onde havia um funcionário real, considerado a língua e os olhos do rei. Dentre outras funções, competia-lhe castigar os rebeldes, reprimir os violentos, proteger os cidadãos pacíficos, acolher os pedidos do homem justo e verdadeiro, perseguindo o malvado e o mentiroso. Fazia ouvir as palavras da acusação, indicando as disposições legais que se aplicavam ao caso, além de lhe competir tomar parte das instruções para descobrimento da verdade.

Outros buscam as raízes do Ministério Público na Antiguidade Clássica, na Idade Média e até no vindex religionis do direito canônico. Na doutrina italiana, vê-se que os pesquisadores tentam demonstrar que a origem seria peninsular.

Após muitos estudos e discussões, muitos historiadores tentam fixar a origem do Ministério Público no reinado de Felipe IV – rei da França – especificamente na Ordenança de 25 de março de 1302, na qual foram regulamentadas as principais funções e determinado que os procuradores fizessem o mesmo juramento dos magistrados, não podendo exercer outras funções que não determinadas expressamente pelo rei. Há divergência quanto à data, pois alguns mencionam 23 de março de 1303. A função já existia, só não estava devidamente regulamentada. Registra Machado (apud Marum, 2005, p. 39) que:

a diferença é que, antes desse edito, os procuradores exerciam a defesa dos interesses privados do soberano e, depois dele, passaram a tutelar os interesses do Estado, separados da pessoa e dos bens do rei, sempre, entretanto, em nome dele e como uma projeção exclusiva de sua autoridade.

Com a Revolução Francesa, baseada no lema égalité, liberté, fraternité, houve uma estruturação mais eficaz do Ministério Público, conferindo garantia aos seus integrantes. A França deu grande contribuição para a história do Ministério Público. Inclusive a expressão parquet (assoalho) é constantemente usada no Brasil para referir-se à instituição. Leciona Mazzilli (1995, p. 5) que:

a Revolução Francesa estruturou mais adequadamente o Ministério Público, enquanto instituição, ao conferir garantia a seus integrantes. Foram, porém, os textos napoleônicos que instituíram o Ministério Público que a França veio a conhecer na atualidade, daí vindo a ser difundida a instituição para diversos Estados.

E continua o eminente professor:

A menção a parquet (assoalho), muito usada com referência ao Ministério Público, provém dessa tradição francesa, assim como as expressões magistrature débout (magistratura de pé) e les gens du roi (as pessoas do rei). Os procuradores do rei (daí les gens du roi), antes de adquirirem a condição de magistrados e de terem assento ao lado dos juízes, tiveram inicialmente assento sobre o assoalho (parquet) da sala das audiências, em vez de terem assento sobre o estrado, lado a lado à magistrature assise (magistratura sentada). Conservaram, entretanto, a denominação de parquet ou de magistrature débout.

Para Tornaghi (1987, p.480) “a França foi o primeiro país a registrar o surgimento de um órgão com características semelhantes às do atual Ministério Público, bem como, que, após a Revolução Francesa, tal modelo foi adotado por toda a Europa e pelas Américas, tornando-se, em seguida, uma instituição mundial”.

Esclarece Rassat (apud Marum, 2005, p. 43) que:

a conformação definitiva da instituição na França somente se deu com o movimento de codificação ocorrido no período napoleônico, especialmente com a edição do Código de Instrução Criminal, de 1810, que subordinou definitivamente o Ministério Público ao Poder Executivo, como seu representante junto à autoridade judiciária.

No que concerne a instituição Ministério Público a partir do ano de 1700, Hugo Mazzilli (1995, p. 8), a partir de interessante pesquisa feita por Mario Vellani, destaca que “a expressão ‘ministère public’ foi usada com muita frequência nos provimentos legislativos do século XVIII, ora designando as funções próprias daquele ofício público, ora referindo-se a um magistrado específico, incumbindo-o do poder-dever de exercitá-lo, ora, enfim, dizendo respeito ao ofício”.

Rassat, Mazzilli, Marum e outros chegaram à conclusão de que a expressão “Ministério Público” teria nascido “na prática, quase inadvertidamente”, quando os procuradores do rei falavam de seu próprio mister ou ministério, e a este vocábulo se uniu, “quase por força natural”, o adjetivo “público”, para designar os interesses públicos que os procuradores e advogados do rei deveriam defender.

Finalizando este tópico, para logo em seguida discorrer sobre a origem do órgão no Brasil, destacamos uma fala do jurista Bonavides (2008. p. 384), que também fortalece a nossa tese de que o Ministério Público é agente de transformação social, in verbis: “o Ministério Público nem é governo, nem oposição. O Ministério Público é constitucional; é a Constituição em ação, em nome da Sociedade, do interesse público, da defesa do regime, da eficácia e salvaguarda das instituições”.

 

Origens do Ministério Público no Brasil

Sua origem está diretamente ligada ao direito lusitano, fruto da relação que se deu pela legislação de Portugal e o Brasil. Otacílio Silva (1991, p. 6) a partir de um importante estudo histórico entre os dois países, assim registrou:

No Brasil, o primeiro texto levantado por Addon de Mello e ratificado por José Henrique Pierangelli, no qual se identifica o uso da expressão “Ministério Público”, baseia-se no art. 18 do Regimento das Relações do Império, baixado em 02 de maio de 1847.

O desenvolvimento do Ministério Público no Brasil esteve sempre ligado ao direito português. Seus primeiros traços descendem do direito lusitano, vigente no País no período colonial.

As Ordenações Manuelinas, de 1521, já mencionavam o promotor de Justiça e suas obrigações perante as Casas de Suplicação e nos juízos das terras. “O promotor de Justiça atuava basicamente como um fiscal da lei e de sua execução. Nas Ordenações Filipinas, de 1603, são definidas as atribuições do promotor de Justiça junto às Casas de Suplicação, que fica incumbido, além das atribuições de fiscal da lei, do direito de promover a acusação criminal”. (DIAS; AZEVEDO. 2008, p. 223).

Discorrendo sobre o assunto, Octacílio Silva (1991, p. 6), ao fazer uma ligeira síntese sobre a ligação histórica dos dois países, assim declara:

O Brasil foi descoberto por Portugal sob o império legal das Ordenações Afonsinas, que vigoravam desde 1446. Estas foram substituídas pelas Ordenações Manuelinas, a partir de 1521, as quais vigoraram em Portugal e nas suas colônias até 1868, quando entraram em vigor as Ordenações Filipinas. Assim, grande parte do Brasil – colônia e parte do Império foram regidas pelas Ordenações Manuelinas, em cujos Títulos XI e XII do Livro I se compeliram as obrigações do procurador dos feitos, do promotor de justiça da Casa da Suplicação e dos promotores de justiça da Casa Civil.

Em um excelente levantamento histórico acerca do Ministério Público, os pesquisadores Dias e Azevedo (2018. p. 223), registraram que:

na época colonial até 1609 apenas funcionava no Brasil a justiça de primeira instância, e nela ainda não existia órgão especializado do Ministério Público. Os processos criminais eram iniciados pela parte ofendida ou pelo próprio juiz, e o recurso era interposto para a Relação de Lisboa. A figura do Promotor de Justiça só surgiu em 1609, quando foi regulamentado o Tribunal de Relação da Bahia sob as Ordenações Filipinas.

Ressaltam ainda que:

em 1751 foi criada a Relação da cidade do Rio de Janeiro, que viria a se transformar em Casa de Suplicação do Brasil em 1808, cabendo-lhe julgar os recursos da Relação da Bahia. Neste novo tribunal, os cargos de Promotor de Justiça e de procurador dos feitos da coroa e da fazenda separaram-se e passaram a ser ocupados por dois titulares, dando o primeiro passo para a separação total das funções da Advocacia-Geral da União (que irá defender o Estado e o fisco) e do Ministério Público.

Não havia nenhuma referência constitucional no Período Imperial, a instituição era apenas tratada no Código de Processo Criminal. Apenas na Constituição de 1824 foram criados o Supremo Tribunal de Justiça e os Tribunais de Relação, tendo sido nomeados os respectivos Desembargadores, Procuradores da Coroa, reconhecidos como chefes do parquet. Registra Vasconcelos (2009, p. 1) que:

Com o advento da Constituição do Império, de 1824, embora ainda não institucionalizado o Ministério Público, mencionava-se o procurador da coroa, a quem pertencia a incumbência de acusação no juízo dos crimes. Em 1932, o Código de Processo Criminal do Império referiu-se ao “promotor da ação penal”.

A Primeira Constituição da República (1891) fez referência expressa ao Ministério Público no Texto Fundamental, apenas no que diz respeito à escolha do Procurador-Geral e à sua iniciativa na revisão criminal pro reo. Assevera Vasconcelos (2009, p. 2) que a referida Constituição “limitou-se a dispor que a escolha do Procurador-Geral da República, pelo Presidente da República, deveria recair dentre os Ministros do Supremo Tribunal Federal”.

Não reconheceu sua condição de órgão autônomo. O Ministério Público só surgiria como instituição com a Proclamação da República. Segundo Camargo (1970, p. 6), a nível de legislação o Ministério Público foi previsto:

[…] primeiro pelo Decreto nº 848/1890 que reformou a justiça no Brasil; depois pelo Decreto nº. 1.030/1980, de 14 de novembro, que organizou a Justiça do Distrito Federal. No primeiro dos dois diplomas legais, na sua Exposição de Motivos, afirma-se que “o Ministério Público é instituição necessária, à qual compete: velar pela execução das leis, decretos e regulamentos que devam ser aplicados pela Justiça Federal e promover a ação pública onde ela convier”.

O Código Civil de 1916 concedeu ao Ministério Público várias atribuições, dentre estas, a curadoria de fundações, a legitimidade para propor ação de nulidade de casamento, a defesa de crianças e adolescentes, de interdição.  Em seguida, veio a Constituição de 1934, que delineou, de forma genérica, suas competências funcionais e trouxe várias conquistas: proporcionou estabilidade aos seus membros; regulou o ingresso na carreira através de concurso; o Procurador-Geral da República passou a ser de livre nomeação e demissão pelo Presidente da República, mediante aprovação pelo Senado Federal, e garantia de vencimentos iguais aos dos ministros da Corte Suprema; tratou da organização do Ministério Público nas justiças militar e eleitoral e determinou a competência privativa dos Estados para legislar sobre as garantias do Poder Judiciário e do Ministério Público locais.

A Carta outorgada na ditadura de Vargas (1937), deu início ao período conhecido como Estado Novo e foi um retrocesso para a instituição ministerial. Praticamente extirpou o parquet do ordenamento constitucional e do próprio cenário político. A Constituição de 1946 tratou da independência do Ministério Público como instituição, destacando-lhe título próprio. Várias conquistas, tais como: sistematização em dois ramos: federal e estadual; estabilidade na função, só podendo haver demissão ante sentença judicial ou processo administrativo: concurso de provas e títulos, assegurando garantias de estabilidade e inamovibilidade; promoção na carreira de entrância a entrância; remoção só por meio de representação motivada pelo Procurador-Geral; assegurada a participação do Ministério Público na composição dos tribunais. Segundo Almir Pereira (2009. p. 208) “nasceu deste modo o que se pode chamar de Independência da Instituição, que foi mantida até esta data, pelas Constituições seguintes, patenteando um Ministério Público soberano no cumprimento legal para a sociedade e a justiça”.

Em 1966, o governo militar decidiu elaborar uma nova Constituição, incorporando as emendas e os atos institucionais antes editados. O Congresso Nacional foi transformado por ato institucional em Assembleia Constituinte limitada. Em 24 de janeiro de 1967, foi promulgada a nova Constituição. O Ministério Público passou a integrar o Poder Judiciário. Segundo Marum (2005, p. 51), “Foi como era de se esperar, econômica, dedicando à Instituição apenas três artigos, determinando a sua organização em carreira na União, no Distrito Federal, nos Territórios e nos Estados. Posteriormente, após a ocorrência de novo golpe, uma junta militar, sob a forma de Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, decretou a Carta de 1969, passando o Ministério Público a integrar o Poder Executivo”.

O Código de Processo Civil de 1973 deu tratamento sistemático ao Ministério Público, conferindo-lhe papel de órgão interveniente (custus legis) nas causas de interesse público ou que envolvessem interesses de incapazes. A Carta de 1969 foi emendada em 1977 passando o seu art. 96 a ter nova redação e passou-se a admitir a edição de Lei Complementar, de iniciativa do Presidente da República, para estabelecer normas gerais a serem adotadas na organização do Ministério Público dos Estados. Consequentemente, foi editada a Lei Complementar nº 40, de 1981, primeira Lei Orgânica do Ministério Público, que definiu seu estatuto jurídico, com suas principais atribuições, garantias e vedações. Segundo Dias e Azevedo (2008, p. 228):

Esta lei já definia o Ministério Público como uma instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado e responsável, perante o Poder Judiciário, pela defesa da ordem jurídica e dos interesses indisponíveis da sociedade, pela fiel observância da Constituição e das leis, definição que viria a ser praticamente repetida pela Constituição de 1988.

Finalmente é publicada a Constituição de 1988, a qual reconheceu de forma ampla e democrática a real importância da instituição, tendo, a partir de então o Ministério Público passado a ocupar posição autônoma frente aos três Poderes Estatais e, no exercício pleno de suas atribuições, pôde passar a exercer com independência funcional e administrativa todas as atribuições que lhe são afetas, destinadas, no contexto nacional, a defesa sem reservas dos interesses sociais e individuais indisponíveis, a tutela dos interesses difusos. Tornou-se uma instituição permanente, competindo-lhe a defesa do regime democrático, da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Com efeito, afirma Uadi Lâmmego Bulos (2003, p. 1084):

A Carta de 1988 pode ser apelidada de a Constituição do Ministério Público. Do ângulo constitucional positivo, nunca se viu tanta atenção ao parquet como agora. Pela primeira vez um texto constitucional brasileiro disciplinou, enfaticamente, a estrutura orgânica-funcional da instituição, as principais regras relativas ao seu funcionamento e atribuições. Acresça-se a isso o alargamento de seu campo funcional, que ocupou lugar destacado no Estado brasileiro.

Como forma de especificar a atuação, o Ministério Público foi dividido em: 1) Ministério Público Federal, que se subdivide em Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Militar e Ministério Público do Distrito Federal e Territórios; e 2) Ministério Público Estadual. Após a edição da Lei Orgânica do Ministério Público, a instituição foi alçada à condição de ator proativo e comprometido com a proteção dos direitos mais importantes para a conservação do bem-estar da sociedade, dentro de várias perspectivas, principalmente os direitos humanos.

Nestes termos, demonstra-se a importância do Ministério Público como regulador do bem-estar social, ao garantir a sua atuação junto ao judiciário, ora como fiscal de lei, ora como parte do processo, atribuindo-se-lhe, em especial, a defesa dos interesses coletivos e individuais que proporcionam à sociedade a garantia de um mínimo existencial. A doutrina diferencia o Ministério Público como órgão agente, ao promover diretamente ação na tutela de direitos coletivos, ou como, órgão fiscalizador, ou seja, custos legis (artigo 83, inciso II, da Lei Complementar 75/93). Todavia, essa nomenclatura tem maior caráter pedagógico, visto que, mesmo quando o Ministério Público atua como fiscal da lei, possui poderes próprios da parte legitimada no processo, e mesmo atuando como órgão agente, tem o dever de zelar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Como vimos, assiste razão a Hélio Tornaghi (1987, p. 480) quando declarou, verbis: “O Ministério Público não surgiu de repente, num só lugar, por força de algum ato legislativo. Formou-se lenta e progressivamente, em resposta às exigências históricas”.

 

3 Antecedentes históricos dos direitos humanos

A filosofia grega e as mais diversas religiões do mundo são as origens mais próximas dos chamados direitos humanos. No século XVIII, quando da efervescência do Iluminismo, a expressão direitos humanos passa à condição de uma categoria explícita. O Iluminismo foi decisivo no desenvolvimento dos conceitos de direitos humanos. As ideias de Hugo Grotius (1583-1645), um dos pais do direito internacional moderno, de Samuel von Pufendorf (1632-1694), e de John Locke (1632-1704) atraíram muito interesse pela Europa no século XVIII. Locke, por exemplo, desenvolveu um conceito abrangente de direitos naturais; sua lista de direitos que consiste em vida, liberdade e propriedade. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) elaborou o conceito sob o qual o soberano derivava seus poderes e os cidadãos de seus direitos de um contrato social.

O ser humano em determinado momento, passa a ser visto como um indivíduo autônomo, provido pela natureza de determinados direitos fundamentais inalienáveis, que podem ser invocados contra todos, particulares ou Estado, e que deveriam ser protegidos e garantidos por ele. Nesse passo, os direitos humanos passam a ser pré-condições essenciais para uma existência digna, passando-se a falar em dignidade da pessoa humana. Na definição de Castilho (2011, p. 137), a dignidade humana:

Está fundada no conjunto de direitos inerentes à personalidade da pessoa (liberdade e igualdade) e também no conjunto de direitos estabelecidos para a coletividade (sociais, econômicos e culturais). Por isso mesmo, a dignidade da pessoa não admite discriminação, seja de nascimento, sexo, idade, opiniões ou crenças, classe social e outras.

A história dos direitos humanos está repleta de cartas de direitos e liberdades elaboradas em vários períodos, constituindo passos importantíssimos para se atingir uma certa maturidade. Entretanto, a primeira geração de documentos restringia o conceito de liberdade apenas conferidos a indivíduos ou grupos tendo em vista suas posições ou status. São exemplos importantes deste período: a) Ciro, o Grande (576 ou 590 a.C – 530 a.C) lançou o Cilindro de Ciro, que declarou que os cidadãos do império poderiam praticar suas crenças religiosas livremente e também abolir a escravidão; b) a Magna Charta Libertatum de 1215; c) a Bula de Ouro da Hungria (1222), do dinamarquês Erik Klipping Håndfaestning de 1282; d) o Joyeuse Entrée de 1356 em Brabant (Bruxelas); e) a União de Utrecht de 1579 (Países Baixos) e f) a Carta de Direitos inglesa de 1689.

Após a Idade Média, o conceito de liberdade tornou-se gradualmente separado do status e passou a ser visto não como um privilégio, mas como um direito de todos os seres humanos. Os estudiosos em Teologia e vários juristas espanhóis tiveram um papel sobreeminente nesse contexto. Destacaram-se os trabalhos de Francisco de Vitoria (1486-1546) e Bartolomé de las Casas (1474-1566). Seus estudos estabeleceram o fundamento (doutrinário) para o reconhecimento da liberdade e da dignidade de todos os seres humanos, defendendo os direitos pessoais dos povos indígenas que habitavam os territórios colonizados pela Coroa Espanhola.

A história moderna é marcada por eventos conturbados de mudanças sociais e políticas. A Declaration des Droits de l’Homme et du Citoyen de 1789, assim como a Constituição francesa de 1793, refletiam a emergente teoria internacional dos direitos universais. O termo “direitos humanos” apareceu pela primeira vez na França, em sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). A Declaração de Independência Americana de 4 de julho de 1776 foi baseada na suposição de que todos os seres humanos são iguais. Referia-se também a certos direitos inalienáveis, como o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Tanto as declarações americanas quanto as francesas foram planejadas como enumerações sistemáticas desses direitos.

Com base no princípio da igualdade contido na Declaração Francesa de 1789, várias constituições elaboradas na Europa por volta de 1800 continham direitos clássicos, como também traziam artigos que atribuíam responsabilidades ao governo nas áreas da relação de trabalho e emprego, assistência social, saúde pública e educação. Após isso, os direitos sociais foram expressamente incluídos na Constituição mexicana de 1917, na Constituição da União Soviética de 1918 e na Constituição alemã de 1919.

De acordo com Leandro Karnal (2007, p. 94), este momento representa uma séria guinada na política ao redor do mundo ocidental:

Com todas as suas limitações, o movimento de independência significava um fato histórico novo e fundamental: a promulgação da soberania “popular” como elemento suficientemente forte para mudar e derrubar formas de governo estabelecidas de governo, e de cada capacidade, tão inspirada em Locke, de romper o elo entre os governantes e governados quando os primeiros não garantissem aos cidadãos seus direitos fundamentais. Existia uma firme defesa da liberdade, a princípio limitada, mas que se foi estendendo em diversas áreas.

Os direitos clássicos dos séculos XVIII e XIX estavam diretamente relacionados à liberdade do indivíduo. Juristas, teólogos, filósofos e outros desta época, defendiam que os cidadãos tinham o direito de exigir que o governo se esforçasse para melhorar suas condições de vida.  Já no século XIX, houve frequentes disputas interestatais relacionadas à proteção dos direitos das minorias na Europa. A partir dessas proteções levaram a várias intervenções humanitárias e exigiram acordos de proteção internacional. Um dos primeiros, o Tratado de Berlim de 1878, que concedeu status legal especial a alguns grupos religiosos; depois estabeleceu-se o Sistema de Minorias dentro da Liga das Nações.

A necessidade de padrões internacionais de direitos humanos foi sentida pela primeira vez no final do século XIX, quando os países industrializados começaram a introduzir a legislação trabalhista. A primeira convenção multilateral destinada a salvaguardar os direitos sociais foi a Convenção de Berna de 1906, que proíbe o trabalho noturno por mulheres. Posteriormente a Organização Internacional do Trabalho (OIT), fundada em 1919, elaborou muitas outras convenções trabalhistas.

Segundo Hayek (1985, p. 124-127), “Entre revoluções políticas, mudanças econômicas, fins de poderosos impérios, dissolução e surgimento de novas nações, além de enormes conflitos armados entre os séculos XIX e XX, o mundo passou por sérias transformações políticas, econômicas e sociais”.

No magistério de Magnoli (2006, p. 319-390), “os dois principais eventos marcantes do início do século XX foram as duas grandes guerras mundiais, que juntas provocaram a morte de milhões de pessoas e mudaram intensamente a geografia política da Europa e do restante do planeta”. Lafer (1988, p. 178-180) destaca que “uma das grandes questões levantadas pela última grande guerra foi o genocídio praticado contra determinados povos, promovidos diretamente pelos Estados totalitários, entre eles a Alemanha nazista”. Quanto ao nascimento de uma das mais importantes organizações, Oliveira (2012, p. 64-65) registra que:

Foi nesse contexto histórico que foi fundada, em 1945, a Organização das Nações Unidas (ONU), órgão internacional criado pelos países vencedores da 2ª Guerra Mundial, cujas finalidades principais eram de intermediar as relações entre nações antes e durante conflitos, fosse estes armados ou não, e buscar garantir os direitos dos indivíduos independentes de sua nacionalidade, classe social, cor ou gênero.

Uma maneira encontrada pelos membros da ONU para manifestar publicamente todo o repúdio aos crimes contra a humanidade cometidos pelas nações derrotadas durante a guerra, foi a aprovação em 1948 do documento intitulado Declaração Universal dos Direitos Humanos, o qual contempla e promove um amplo espectro de direitos considerados fundamentais, incluindo aqueles presentes em famosas declarações históricas de direito anteriores. Preleciona, nesse sentido, Oliveira (2012, p. 64-65):

No texto da Declaração relacionam-se os direitos civis e políticos (conhecidos por direitos de primeira geração: liberdade) e os direitos sociais, econômicos e culturais (chamados direitos de segunda geração: trabalho), e há, ainda, a fraternidade como valor universal (denominados direitos de terceira geração: espírito de fraternidade, paz, justiça, entre outros – nos considerandos e arts. I, VIII, entre outros).

Após a Segunda Grande Guerra Mundial, resta superada a visão tradicional de que os Estados têm plena liberdade para decidir o tratamento de seus próprios cidadãos, apesar de haver ainda hoje resquícios dessa visão. A assinatura da Carta das Nações Unidas (ONU) eleva os direitos humanos à esfera do direito internacional. Digno de aplausos é o fato de que todos os membros da ONU concordaram em tomar medidas para proteger os direitos humanos.

Em 1946, foi estabelecida a Comissão de Direitos Humanos da ONU, a qual apresentou um projeto de Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) à Assembleia-Geral da ONU (AGNU). Este projeto foi adotado em Paris em 10 de dezembro de 1948. Esse dia foi mais tarde designado Dia dos Direitos Humanos.

Vários países subscreveram os princípios e ideais estabelecidos na Declaração Universal dos Diretos Humanos. Na primeira Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, todos os compromissos foram ratificados na Proclamação de Teerã (1968), e repetidos na Declaração e Programa de Ação de Viena, adotada durante a segunda Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (1993).

A Carta Internacional dos Direitos Humanos é formada pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A partir de então foram criados inúmeros mecanismos de supervisão, incluindo responsáveis pelo monitoramento da conformidade com os documentos oficiais.

 

4 Direitos humanos versus direitos fundamentais

Hodiernamente, não há consenso quanto à diferença entre direitos humanos e direitos fundamentais. Entretanto, sabe-se que a positivação desses direitos ocorre em planos distintos. Os direitos humanos, no plano internacional, estão consagrados em tratados e convenções internacionais, enquanto os direitos fundamentais são os direitos humanos positivados na Constituição de cada país, internamente, com o objetivo de proteção, segurança e dignidade aos seus membros. Mas, enumerar esses direitos é tarefa bastante difícil, pois, além dos direitos explicitamente reconhecidos pela Carta Magna, existem outros que decorrem do regime e dos princípios por ela adotados.

Por outro lado, há doutrinadores, a exemplo de Fábio Konder Comparato, que defendem que as expressões “direitos humanos” e “direitos fundamentais são sinônimas”. A denominação “direitos humanos” surgiu da doutrina norte-americana, como ficou conhecida na Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, de 1948. A expressão “direitos fundamentais” é mais ligada à doutrina alemã, que significa os direitos das pessoas frente ao Estado que são objeto da Constituição.

Leciona Pérez Luño (apud NOVELINO, 2011, p. 383) que “A expressão ‘direitos fundamentais’ surgiu na França, em 1770, no movimento político e cultural que deu origem à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789”.

Cria-se, a partir do Princípio do Devido Processo Legal, um espaço discursivo, com amplo espectro de intervenção do Ministério Público, que, a partir da Constituição Federal de 1988, ganha status de garantia fundamental, visando a manutenção do Estado Democrático de Direito.  Tavares (2012) salienta que:

Os direitos fundamentais, inclusive, da forma como criados pelo devido processo, entendido este como o espaço discursivo instituído pelos princípios do contraditório, da ampla defesa e da isonomia, já são dotados de liquidez (auto-executoriedade) e certeza (infungibilidade), e uma vez constantes da Constituição, compõem esta que é um título executivo cartularizado constitucionalmente e oponível face a gestão governativa como forma de implemento dos direitos à vida, liberdade e dignidade.

O Ministério Público tem importante papel na defesa contra o arbítrio do poder estatal desse conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano (direitos fundamentais), o respeito à dignidade, o estabelecimento de condições mínimas de vida e o desenvolvimento da personalidade humana.

Para tentar entender a função dos direitos fundamentais, colacionamos os ensinamentos do professor Dimitri (2008, p. 64):

Para compreender a função dos direitos fundamentais, deve-se imaginar a relação entre o Estado e cada indivíduo como relação entre duas esferas de intervenção. Os direitos fundamentais garantem a autonomia da esfera individual e, ao mesmo tempo, descrevem situações nas quais um determinado tipo de contrato é obrigatório.

Os direitos humanos compreendem os direitos fundamentais de todos os seres humanos. Não importa seu sexo, sua orientação sexual, sua cor, se indígena, deficiente físico, idoso, criança ou adolescente, seu local de nascimento, se portador de alguma doença etc. Todos devem ser protegidos e respeitados, pelo fato de serem humanos. Devem ser preservados os princípios da dignidade, da liberdade, da igualdade, da solidariedade, da responsabilidade, da autoridade e da universalidade. Defende Fernandes (2004, p. 111) que:

Para que os direitos e as liberdades fundamentais do homem possam ser consagrados, protegidos e respeitados é preciso que os regimes políticos em vigor respeitem tais princípios. Caso contrário, os direitos humanos serão desrespeitados, cerceados ou negados. Segundo ele, o que aconteceu ao longo da história da humanidade mostra-nos claramente que a vigência de regimes aristocráticos, ditatoriais e totalitários não foi favorável à consagração e salvaguarda dos direitos humanos, e que estes apenas foram proclamados e salvaguardados em países onde vigoraram regimes democráticos.

A Constituição da República Federativa Brasileira de 1988 consagrou uma série de direitos fundamentais, dentre eles, destacamos: o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Dedicou um capítulo para definir os direitos sociais, que se encontram catalogados no art. 6º, como: os direitos a educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, proteção à maternidade e à infância.

O princípio da dignidade da pessoa humana constitui, segundo o art. 1º da Constituição Federal Brasileira de 1988, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito; é essencial a uma sociedade livre, justa e igualitária. Cabe ao Ministério Público velar para que o texto da Constituição e a realidade se encontrem, simbolizando maximamente o dever-ser normativo e o ser da realidade social.

Segundo Soares (2010, p. 20), “a dignidade da pessoa humana, antes mesmo de seu reconhecimento jurídico nas Declarações Internacionais de Direito e nas Constituições de diversos países, figura como um valor, que brota da própria experiência axiológica de cada cultura humana, submetida aos influxos do tempo e do espaço”.

Estudando o fundamento dos Direito Fundamentais, afirmou Bobbio:

o problema do fundamento dos direitos fundamentais teve sua solução atual na Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948; que representa a manifestação da única prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e, portanto, reconhecidos; e essa prova é o consenso geral acerca da sua validade. Pela importância e necessidade no Estado democrático de direito, sem dúvida, os direitos humanos fundamentais são essenciais ao ordenamento jurídico de qualquer país, uma vez que, tem como finalidades precípuas assegurar a promoção de condições dignas de vida humana e de seu desenvolvimento, bem como garantir a defesa dos seres humanos contra abusos de poder econômico praticados pelos órgãos do Estado.

Importante observação faz Comparato (2001, p. 227), ao dizer “que a vigência dos direitos humanos independe de sua declaração em constituições, leis e tratados internacionais, exatamente porque se está diante de exigências de respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou não”.

Resumindo os ensinos de Penteado Filho (2006, p. 15), diversas teorias procuraram justificar e delimitar o fundamento dos direitos humanos, merecendo destaque a jusnaturalista e a positivista. A primeira teoria, jusnaturalista, inscreve os direitos humanos em uma ordem suprema, universal, imutável, não se tratando de criação humana; e a segunda, denominada teoria positivista, assevera que os direitos humanos são criação normativa, na medida em que são legítima manifestação da soberania do povo. Assim, só seriam direitos humanos aqueles reconhecidos pela legislação positiva.

Para o jurista espanhol Antônio Perez Luño (apud SANTOS, 2003), para quem a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade são fundamentos dos direitos fundamentais, os direitos humanos seriam:

um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional.

Modernamente, o que se tem visto é uma preocupação de buscar uma sólida teoria acerca dos direitos humanos, redefinindo situações para adequá-las aos anseios dos indivíduos, em confronto com as suas necessidades mais urgentes, buscando, também, torná-lo compreensíveis pelas várias camadas sociais. O Ministério Público entende que a dignidade da pessoa humana figura um valor, que surge intrinsecamente nas experiências culturais da humanidade, sujeitas às inconstâncias do tempo e do espaço.

Ciente de que a sociedade é dinâmica e se encontra em constante mutação, numa relação contínua com o progresso técnico-científico, a informatização, a globalização e outros fenômenos mundiais, é que o Ministério Público, no seu mister, tem se preparado a fim de enfrentar um direito vivo, que precisa se transformar em realidade e não permanecer como um simples programa, se adequando à evolução, e aos novos desafios postos através do tempo. Já afirmava Norberto Bobbio que os direitos humanos são um construído jurídico historicamente voltado para o aprimoramento político da convivência coletiva.

É possível perceber com certa facilidade que a evolução de tais direitos se ampliou e se amplia constantemente. Na atualidade, por exemplo, a doutrina dominante fala em direito à autodeterminação, direito ao patrimônio comum da humanidade, direito a um meio ambiente saudável e sustentável, direito à democracia, direito à informação, direito ao pluralismo, direito à paz e ao desenvolvimento.

Os direitos humanos e fundamentais têm sido temas bastante discutidos e sem sombra de dúvida, de suma relevância no presente espaço e tempo.

Nesta linha de pensamento, Bonavides (2008, p. 61) é enfático, ao asseverar:

Uma democracia não se constrói com fome, miséria, ignorância, analfabetismo e exclusão. A democracia só é um processo ou procedimento justo de participação política se existir uma justiça distributiva no plano dos bens sociais. A juridicidade, a sociabilidade e a democracia pressupõem, assim, uma base jusfundamental incontornável, que começa nos direitos fundamentais da pessoa e acaba nos direitos sociais.

Rotineiramente, o Ministério Público tem ingressado com ações na Justiça e realizado termos de compromissos extrajudiciais, de forma individual ou coletiva, cobrando do Estado a implementação dos direitos sociais e econômicos, o cumprimento, a efetivação, o reconhecimento dos direitos sociais, alguns deles relacionados à saúde, à educação, à moradia, dentre outros. Grande parte da população não tem plano de saúde, não tem condições de custear suas educações em escolas e universidades particulares, direitos esses, contemplados nas convenções, constituições e demais leis que regem as matérias nas nações. Há ainda os que não sabem nem mesmo como requerer, como lutar pela conquista de tais direitos.

 

5 O Ministério Público como agente de transformação social

A atual Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988 e denominada Constituição Cidadã pelo deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, traz em seu texto que o Ministério Público é um órgão de soberania popular e um instrumento da sociedade para a realização dos fins a que ela se propõe.

A Constituição Cidadã manteve e ampliou as hipóteses de atuação do Ministério Público na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, ao mesmo tempo em que o desvinculou e lhe conferiu independência quase total dos órgãos do governo. Essa independência só não pode ser considerada total porque se manteve a nomeação dos Procuradores-Gerais pelos chefes do Executivo. Essa Constituição conferiu à instituição um sentido finalístico, ou seja, um critério constitucional capaz de definir os fins para os quais a instituição se volta, deixando claro ser o Ministério Público um órgão da soberania popular, um instrumento da sociedade para a realização dos fins a que ela se propõe.

Os membros do Ministério Público, como agentes políticos, devem atuar com ampla liberdade funcional, ficando condicionados apenas aos parâmetros das legislações pertinentes aos casos submetidos às suas apreciações. Segundo Menna (2012, p. 33):

Ao exercer o direito, submete-se aos mesmos princípios, deveres e obrigações concernentes às partes; no entanto, não está sujeito às custas, despesas processuais e sucumbência, sendo que, por força do art. 188 do Código de Processo Cível, terá prazo em dobro para recorrer e em quádruplo para contestar.

Uma das maiores novidades introduzidas por esta Constituição foi a valorização do Ministério Público como órgão de defesa da sociedade e patrocinador dos interesses coletivos contra os detentores do poder político e econômico e inclusive contra o próprio Estado e seus agentes. Como acentua, oportunamente, Rodrigo César Rebello Pinho (2002, p. 131-132):

para a consolidação do Estado Democrático de Direito previsto na Constituição brasileira não basta à imparcialidade do Poder Judiciário; é indispensável à existência de um órgão independente que o movimente na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, sendo essa a razão pela qual o Ministério Público é considerado essencial à função jurisdicional do Estado.

A essência do Ministério Público está na busca diuturna da Justiça, consubstanciada, também, na defesa dos direitos sociais, estejam eles explícitos ou implícitos, porquanto é nesta instituição que a sociedade brasileira espera se revelarem os princípios constitucionais. (D´ANGELO. 2010, p. 391)

Quanto aos Direitos Humanos em específico, o Ministério Público se propõe a atuar promovendo a igualdade étnico-racial, defendendo os direitos da comunidade LGBTT, reconhecendo a existência de comunidades tradicionais e oferecendo atendimento às pessoas em situação de rua. Busca ainda intervir na resolução de conflitos agrários e promover a igualdade de gênero, dentre outros temas relacionados à defesa dos direitos fundamentais das parcelas mais vulneráveis da população[1].

Essa atuação do órgão se dá através de suas Promotorias de Justiça, que são, segundo o artigo 6º, inciso II da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei Federal 8625/93), órgãos de Administração do Ministério Público. Elas são compostas por pelo menos um cargo de promotor de Justiça e seus serviços auxiliares.

Conforme disposto no site institucional do Ministério Público de Pernambuco[2]:

As promotorias de Justiça podem ser judiciais (quando os promotores atuam em processos judiciais) ou extrajudiciais (quando os promotores são responsáveis pela instauração de procedimentos extrajudiciais, como por exemplo, procedimentos preliminares, inquéritos civis, procedimentos de investigação criminal). Elas ainda podem ser especializadas (quando atuam numa determinada matéria, como por exemplo, Direito da Criança e do Adolescente, Defesa do Patrimônio Público) ou gerais (quando atua em diversas matérias).

Através das Promotorias de Justiça comum o Ministério Público participa das ações já propostas no judiciário defendendo os direitos humanos e fundamentais. Essa é a forma de atuação mais conhecida do órgão. Porém, ele também faz um trabalho extrajudicial, através de Audiências Públicas, Reuniões, Procedimentos Administrativos Preliminares, Inquéritos Civis, Procedimentos Investigatórios Criminais, Recomendações e Termos de Ajustamento de Conduta (art. 25 e 26 da Lei 8.625/93). Com esse trabalho, o Ministério Público visa a conciliação e a mudança de valores da sociedade, trazendo um resultado de maneira mais rápida e efetiva. Isso é uma demonstração evidente de como esse órgão pode ser um agente de transformação social.

Não há como pensar em transformação social e mudança de valores sem a participação efetiva das pessoas por meio dos movimentos sociais. Por isso, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por meio da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais (CDDF), organizou até 2017 o Encontro Nacional do Ministério Público e Movimentos Sociais. Como podemos entender a partir do site do CNMP[3], “o objetivo é fomentar o debate aberto, transparente e colaborativo sobre a missão constitucional do Ministério Público na efetivação dos direitos fundamentais”.

Após a quarta edição do evento, em 2017, foi aprovada, pelo Plenário do CNMP, Recomendação para que as unidades e os ramos do Ministério Público realizem encontros com movimentos sociais a fim de atender as especificidades de cada estado ou localidade de forma aprofundada, garantindo com isso o acesso da população ao conhecimento de seus direitos e possibilitando o processo de transformação social.

 

Conclusão

O Ministério Público é uma instituição de suma importância em uma sociedade, haja vista as atribuições que lhe são conferidas por lei. É responsável pela preservação, manutenção e defesa dos direitos fundamentais. Tem como meta a edificação de um Estado social de direito, capaz de garantir vida digna, justa e humana para todos, preservando os princípios e valores constitucionais, primando pela efetivação das leis, zelando pela condução da coisa pública e cada vez mais, procurando se firmar como um instrumento de transformação social.

Este Órgão deve agir com autonomia em nome da sociedade, da lei e da Justiça, ser atuante, primar pela efetivação das leis, zelar pela condução da coisa pública e, cada vez mais, procurar se firmar como um instrumento de transformação social.

Modernamente, é considerado o defensor dos valores fundamentais da sociedade e ouvidor do povo. Tem como meta a edificação de um Estado social e democrático de direito, capaz de garantir vida digna, justa e humana para todos, preservando os princípios e valores constitucionais.

É um órgão de transformação social, que luta pela efetivação e consagração dos direitos dos cidadãos, sendo de extrema importância para o engrandecimento de uma nação.

No exercício de suas atribuições, o MP dispõe dos meios para promover alterações substanciais na realidade, como foi demonstrado ao longo do texto. Diante da urgência e da necessidade de se efetivar os direitos fundamentais e os direitos humanos, o Ministério Público deve continuar trabalhando na ampliação de sua atuação extrajudicial e no incentivo à participação popular, se colocando, dessa maneira, como um verdadeiro agente de transformação social.

 

REFERÊNCIAS

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[1] Disponível em: <http://www.direito.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=208>.

[2] Disponível em: <https://www.mppe.mp.br/mppe/institucional/promotorias-justica>.

[3] Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal/publicacoes/10697-relatorio-iv-encontro-nacional-do-ministerio-publico-e-movimentos-sociais>.