Análise jurídica da presunção de inocência à luz da Declaração Universal de Direitos Humanos e o papel do Ministério Público como defensor do direito fundamental às liberdades

Guilherme Graciliano de Araújo Lima

Doutorando em Direitos Humanos no Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da UFPE. Mestre em Direito pela mesma instituição. Promotor de Justiça em Pernambuco, atualmente em exercício pleno na 2ª Promotoria de Justiça da Carpina, aprovado em 1º lugar-geral no XXIV concurso público de provas e títulos para o cargo de promotor de Justiça e promotor de Justiça substituto do MPPE. Foi procurador do Estado de São Paulo e professor em cursos de graduação e pós-graduação em Direito. E-mail: guilhermegraciliano@gmail.com

 

RESUMO

Na jurisprudência moderna do Supremo Tribunal Federal (STF), é possível encontrar uma verdadeira oscilação decisória quanto à aplicação do princípio constitucional da presunção de inocência, também conhecido como presunção de não culpabilidade. Tal oscilação deixa de considerar a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) como instrumento jurídico internacional que favorece a primazia do referido princípio, mormente no caso brasileiro, que tem na Constituição Federal garantia inafastável da exigência do trânsito em julgado da sentença criminal para se dar início à execução penal. Nesse quadro, cabe ao Ministério Público o dever institucional de, atuando na defesa dos direitos humanos e nos interesses sociais e individuais indisponíveis, assegurar o respeito ao estado de inocência, atuando assim na preservação da DUDH em um contexto social e democrático.

1 Notas introdutórias

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem se destacado pelo impacto social, político e econômico contido nas decisões judiciais emanadas pela corte nos últimos anos, bem como pelas declarações além dos autos proferidas por seus ministros junto à imprensa e às redes sociais. Holofotes iluminam os ministros da corte em suas mais importantes passagens, e nas menos importantes igualmente, em ambientes jurídicos ou sociais, mas, ultimamente, as luzes têm sido ofuscadas por doses gritantes de insegurança jurídica.

É possível verificar um verdadeiro combate entre as decisões dos ministros do STF e incessantes e indignas lutas sobre que decisão judicial deve prevalecer eficazmente em detrimento de outra decisão judicial, seja do órgão colegiado, seja decisão monocrática.

Sobre esse tema encontra-se a discussão, aparentemente interminável, sobre o princípio processual penal da presunção da inocência, também conhecido como princípio da não culpabilidade, e a execução provisória da pena aplicada por órgão jurisdicional competente em sede de segunda instância, em meio a direções e caminhos de idas e vindas, voltas e retornos, de vai e vem, no qual a principal prejudicada é sempre a sociedade como um todo dependente de afirmações e definições sólidas e coerentes quando provindas dos órgãos do sistema de Justiça do País, especial daquela que é considerada a Corte Suprema.

Partindo das interlocuções geradas a partir da discussão acima colocada, o presente trabalho vai sondar os temas da presunção de inocência à luz da Declaração Universal de Direitos Humanos, ressaltando que, quando das considerações acerca dessa última, irar-se-á tentar colocar a posição do Ministério Público como defensor do Estado Democrático de Direito e dos direitos fundamentais do cidadão, vinculando-o à problemática da execução provisória de condenação penal sem trânsito em julgado.

 

2 Apontamentos acerca da presunção de inocência e da execução provisória da pena na jurisprudência do STF

O princípio da presunção de inocência, também conhecido como princípio da não culpabilidade, tem no ordenamento brasileiro guarida constitucional no artigo 5º, inciso LVII, da Carta Cidadã quando afirma: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

No Código de Processo Penal também é possível encontrar insculpido o aludido princípio, exatamente no art. 283, ao aduzir que ninguém pode ser preso a não ser por flagrante delito ou por ordem escrita da autoridade judicial, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado, ou em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva, no curso da investigação ou do processo criminal.

Logo, no ordenamento jurídico brasileiro, em diplomas distintos, quais sejam, a Constituição Federal de 1988 e o Código de Processo Penal, há de maneira categórica e expressa uma ressalva necessária ao trânsito em julgado da decisão criminal como requisito inarredável para se declarar alguém como culpado e fazer cumprir pena pela prática de determinado crime.

Não obstante o tema ser demasiadamente claro nos dispositivos citados, na jurisprudência do STF a matéria causa pânico nos incautos e maus agouros nos arautos da segurança jurídica.

Até fevereiro de 2009, era possível identificar facilmente no âmbito da jurisprudência do STF a tendência de permitir a execução de condenação penal antes mesmo do trânsito em julgado da decisão condenatória. Ainda na década de 1990, é possível encontrar julgados da Suprema Corte afirmando que a ordem de prisão decorrente de sentença condenatória confirmada pela segunda instância não colide com a garantia constitucional da presunção de inocência, como foi o caso do julgamento do HC 68.726.

Contudo, em fevereiro de 2009, como dito, a jurisprudência do STF, cuja composição tinha se alterado significativamente desde o começo da década anterior, sofreu uma guinada forte para, no julgamento do HC 84.078, formar-se no sentido de impedir a execução de sentença condenatória criminal antes do seu respectivo trânsito em julgado, em obediência ao art. 5º, LVII, da Constituição Federal de 1988, no qual ficaram vencidos os votos proferidos pelos ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa e Ellen Gracie, sendo que o ministro Gilmar Mendes, então presidente do tribunal, votou de acordo com a maioria, isto é, contra a execução provisória da pena antes que se tenham esgotadas todas as possibilidades recursais.[1]

Sete anos depois, porém, o STF, com composição relativamente alterada, pois seis dos onze ministros que participaram do julgamento do HC 84.078 (Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau e Menezes Direito foram substituídos por Rosa Weber, Teori Zavascki, Roberto Barroso, Edson Fachin, Luiz Fux e Dias Toffoli, respectivamente) não mais integravam o STF, quando do julgamento do HC 126.292, que mudou novamente o entendimento sobre a matéria, retornando ao posicionamento de antes de 2009.

Assim, em fevereiro de 2016, durante o julgamento do HC 126.292, o STF praticou um segundo overruling, ou seja, uma espécie de overruling do overruling.[2] Restaram vencidos nesse novo julgamento os ministros Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski, então presidente da Corte à época.

Desse modo, a partir de fevereiro de 2016, o STF voltava sete anos no tempo para reafirmar uma tese que a própria corte já havia abandonado anteriormente, para dizer novamente que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência.

Destaca-se que, mudando o entendimento que tinha na época do julgamento do HC 84.078, o ministro Gilmar Mendes continuou a formar a maioria vencedora do julgamento do HC 126.292, mas contrariando a posição que ele mesmo, ministro Gilmar, havia tomado anteriormente, em 2009, de forma que passou a entender em 2016 que o cumprimento provisório de sentença condenatória criminal não tinha aptidão a violar o princípio constitucional da presunção de inocência.

Ainda de volta ao mesmo tema, em outubro de 2016, o plenário do STF julgou os pedidos de medida cautelar nos autos da ação declaratória de constitucionalidade (ADC) de nº 43 e 44, indeferindo os mesmos, para reafirmar a tese esposada no HC 126.292, asseverando que o art. 283 do Código de Processo Penal (CPP) não é incompatível com o cumprimento antecipado da pena, vencidos os ministros Marco Aurélio (Relator), Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello, e, em parte, o ministro Dias Toffoli.

A nota relevante aqui é que esse julgamento foi proferido em sede de controle concentrado de constitucionalidade, processo objetivo e analisado em tese, isto é, não a partir de determinado caso concreto, e tem efeitos vinculantes para a Administração Pública e para os órgãos do Poder Judiciário, cabendo contra as decisões ou atos administrativos que desrespeitem os seus ditames o ajuizamento de reclamação constitucional perante o STF.

Ainda em 2016, desta feita no mês de novembro, o STF apreciou novamente o tema, agora em sede de julgamento de agravo em recurso extraordinário (ARE) nº 964.246 através do seu plenário virtual, com repercussão geral reconhecida, reafirmando que não viola a presunção de não culpabilidade o cumprimento provisório de pena após o julgamento do tribunal de apelação.

Observação relevante é feita por Guilherme Assis ao analisar o referido julgamento, quando afirma o autor que o ministro Dias Toffoli mudou parcialmente seu entendimento para restringir a execução provisória da pena, exigindo o julgamento de eventual recurso especial pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) antes de se admitir o cumprimento da reprimenda penal. Por sua vez, continua Assis, a ministra Rosa Weber – que havia votado pela manutenção do entendimento anterior assentado no HC 84.078 – não se manifestou no prazo adequado, razão pela qual o resultado do julgamento foi de 6 votos a 4, e não de 7 votos a 4, como ocorreu no HC 126.292, julgado pelo plenário meses antes.[3]

Em síntese, em 2016 o STF mudou de posição quanto à possibilidade de início de cumprimento de pena antes do trânsito em julgado da sentença criminal condenatória, e o fez ao menos em três oportunidades relevantes: no HC 126.292, julgado em fevereiro daquele ano; no indeferimento das medidas cautelares nas ADC 43 e 44, em outubro de 2016; e no julgamento do ARE 964.246, com repercussão geral reconhecida e julgado pelo plenário virtual da corte.

Quando a questão parecia se resolver, eis que os ministros Marco Aurélio Mello e Ricardo Lewandowski passaram a proferir diversas decisões monocráticas contrárias ao posicionamento mais recente da maioria dos ministros que compõem o STF fixado no HC 126.292 quanto ao epigrafado tema, podendo serem citados os casos do HC 138.337, HC 137.063, HC 145.856, HC 140.217, HC 144.908 entre outros, nos quais os ministros referidos insistem em afastar o cumprimento provisório da pena antes do trânsito em julgado da condenação.

Essa constante revisão de julgados sobre a mesma matéria não parece posição mais consentânea ao postulado da segurança que se espera de uma corte constitucional. Embora seja salutar a idiossincrasia entre os juízes e seja factível não se desejar o engessamento das teses jurídicas fixadas nos tribunais, sobretudo em tempos de modernidade líquida e fluída, a revisitação de temas apenas pelo fato de ter havido mudança significativa na composição dos órgãos decisórios ou apenas em razão da mudança de entendimento pessoal de determinado ministro, parece atentar contra os primados da formação sólida do Direito.

 

3 A presunção de inocência à luz da Declaração Universal de Direitos Humanos

O princípio da presunção de inocência, albergado pela Constituição Federal de 1988, também recebe amparo na Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH). Antes de adentrar na análise do aludido princípio, porém, mister tecer breves comentários sobre a contextualização da DUDH e os pontos básicos para entender o quadro de seu surgimento.

Sobre o tema convém inicialmente destacar os ensinamentos de Antônio Augusto Cançado Trindade, juiz da Corte Internacional de Justiça (Haia), ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos e professor emérito de Direito Internacional da Universidade de Brasília.

Segundo Cançado, atualmente não se pode negar que, embora a ocorrência de avanços no domínio de proteção dos direitos humanos ao longo das sete últimas décadas, surgem com frequência novos obstáculos, traduzidos sobretudo pela “marginalização e exclusão sociais de segmentos crescentes da população, na diversificação de fontes de violações de direitos humanos e na impunidade de seus perpetradores.”[4]

Segundo o professor, devido à evolução da doutrina contemporânea, hoje se reconhece que as derrogações e limitações permissíveis ao exercício dos direitos humanos previstos nos tratados internacionais de direitos humanos devem ser restritivamente interpretadas, impondo-se a intangibilidade das garantias judiciais em matéria de direitos humanos, que devem ser exercitadas consoante os princípios do devido processo legal, mesmo em estados de emergência.[5]

É inegável que não se pode deixar de atribuir à Declaração Universal o marco primordial de generalização da efetivação, universalização do estabelecimento de direitos individuais e proteção dos direitos humanos no mundo, mormente se considerarmos o momento em que se deu o seu surgimento, logo após o fim da segunda grande guerra mundial.

Nesse sentido também é o pensamento de Sérgio Resende de Barros, afirmando que os direitos humanos tendem a ser direitos universais, vinculados aos direitos sociais, nestes se realizando, resultando com esse espírito de síntese do individual na confirmação de direitos sociais, permitindo-se, assim, se chegar à Declaração das Organizações das Nações Unidas (ONU) de 1948, que internacionalizou e universalizou os direitos humanos, universalização essa que, ainda segundo o autor, teria seus primórdios nas declarações norte-americanas sobre direitos do homem e do cidadão.[6]

Segundo apregoa Fernando Almeida sobre o tema, a Declaração Universal dos Direitos Humanos forneceu um avanço para conferir maior liberdade ao homem, enquanto, simultaneamente, despertou uma consciência mais clara desses direitos e propiciou uma maior quantidade de instrumentos para sua defesa, sendo que, à medida que passou a ser incorporada às legislações internas das nações, a violação de tais direitos passou a ser tida como ato criminoso.[7]

A construção da DUDH teve importância sobremaneira a partir dos trabalhos desenvolvidos pela Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, entre maio de 1947 e junho de 1948, e o seu respectivo Grupo de Trabalho, cujas conclusões foram levadas à análise da comissão estabelecida pela Assembleia Geral da ONU para tratar da elaboração e formatação da declaração universal.

Assim, em 10 de dezembro de 1948, dos 58 Estados membros da ONU, 48 votaram a favor do texto final e 8 Estados se abstiveram de votar, não havendo nenhum voto contrário, razão pela qual a Assembleia Geral proclamou a Declaração Universal de Direitos Humanos.

Vale destacar à oportunidade que há, na doutrina humanista, quem veja na Carta das Nações Unidas, que pode ser vista como uma espécie sui generis de tratado internacional que deu origem formal às Organizações das Nações Unidas em 1945 logo após a ratificação do seu teor pelos países integrantes do Conselho de Segurança e da maioria dos demais Estados signatários, a gênese da Declaração Universal de Direitos Humanos e a consequente internacionalização dessa espécie de direitos.[8]

Junto à declaração se somaram, 22 anos após, dois pactos jurídicos relevantes: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, formalmente adotados pela Assembleia Geral da ONU em 1966. Assim, com os citados pactos e a DUDH, se forma a Carta Internacional dos Direitos Humanos.

Sobre a importância atual da Declaração e dos seus pactos, vale destacar a posição de Gilberto Saboia:

Passados 60 anos e a despeito das conquistas alcançadas através da confirmação nos Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos e na numerosa teia de instrumentos jurídicos de alcance universal, regional ou que estabelecem sistemas de proteção específica contra certas formas de violação ou para determinadas categorias de pessoas vulneráveis, a Declaração Universal permanece atual e relevante como impulso que inspirou este processo, apesar das contingências frequentemente desfavoráveis dos jogos de poder internacional, e como interpretação autêntica das obrigações contidas na Carta da ONU.[9]

Por esse pensamento fica evidente que a DUDH e os dois pactos que lhe seguiram em 1966 serviram como instrumentos jurídicos de garantia e eficácia da implementação de direitos humanos, sendo que, ainda hoje, após 70 anos da promulgação da Declaração, seu debate continua atual e presente.

No tocante à presunção de inocência, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos o tratou de maneira específica, rezando, em seu artigo 14, parágrafo 2º, que “toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”.

De seu turno, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também chamado de Pacto de São José da Costa Rica, recebida no ordenamento jurídico brasileiro através do decreto presidencial nº 678/92, e recepcionada com status de supralegalidade, conforme entendimento do STF, reafirma em seu artigo 8º, parágrafo 2º, a presunção de não culpabilidade, ao aduzir: “toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma a sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”.

Vale destacar que as análises sobre o supramencionado princípio também o fazem sob a luz do processo penal, de um ponto de vista mais intrínseco à natureza instrumental do processo, de modo que o princípio ora configura regra de tratamento, através da qual se presume o acusado inocente até o trânsito em julgado da decisão condenatória, ora se apresenta como regra de julgamento, segundo a qual no momento do proferimento da sentença em caso de dúvida razoável deve-se absolver o réu.

Antes de adentrar mais a fundo na discussão acerca do princípio da presunção de não culpa, é primordial esclarecer que existe, na doutrina internacionalista, discussão sobre o caráter vinculativo da DUDH, isso porque, para alguns, a referida declaração teria caráter meramente recomendatório, tais como as resoluções da ONU, configurando o soft law. Contudo, prevalece o entendimento de que, assim como os tratados de direito internacional, que são vinculativos em sua essência, hard law, a DUDH tem caráter vinculante, ressaltando ser ela um instrumento normativo que cria obrigações jurídicas para os Estados-Membros da ONU, ressaltando apenas atualmente a discussão acerca do seu caráter normativo, não se referindo mais à existência ou não de sua força vinculante, mas se reduzindo a celeuma em saber se todos os direitos proclamados pela DUDH têm força obrigatória ou não, e em que circunstâncias exatamente ela ocorre.[10]

Voltando ao tema da presunção da inocência, em específico, vale tecer algumas considerações a partir de então.

A principal referência ao primado da não culpabilidade na DUDH é encontrada no art. 11 da declaração, ao aduzir no seu artigo 11, parágrafo 1º:

Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

Também é possível falar na manutenção da presunção de inocência a partir de uma leitura sistemática do art. 8º da Declaração Universal, ao apregoar que “todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei”.

Nesse sentido, pode-se perceber que foi a própria Constituição Federal de 1988 que assegurou os remédios efetivos contra possíveis decisões judiciais criminais condenatórias injustas, no caso, os recursos excepcionais, como o extraordinário e o especial, cuja interposição tem a capacidade de impedir o trânsito em julgado e evitar violações a direitos fundamentais do cidadão, como o direito à liberdade.

Logo, por esse ângulo de vista, também é possível afirmar que a defesa da presunção de inocência requer o trânsito em julgado da sentença condenatória, posto que é direito assegurado pela DUDH que os tribunais garantam mecanismos efetivos contra violações a direitos fundamentais do cidadão, esclarecendo que essa violação pode surgir de uma decisão criminal que venha a ser cassada ou reformada em sede de julgamento de recursos perante os tribunais superiores.

A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), assinada em novembro de 1969, em São José, na Costa Rica, também asseverou a presunção de inocência no seu art. 8.2, conforme o qual “toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”. O Brasil apenas em 1992 veio a adotar a CADH em seu ordenamento jurídico, mas, segundo o STF, quando houve essa incorporação, o texto internacional passou a deter natureza supralegal e infraconstitucional.

Com efeito, o grau de importância dado por tantos instrumentos internacionais em matéria de direitos humanos ao estado de inocência do cidadão não deixa dúvidas de que o entendimento mais consentâneo com a Declaração Universal de Direitos Humanos, aprofundado e delineado pela Constituição Federal de 1988, é aquele que exige o trânsito em julgado para se dar início ao cumprimento de uma sentença penal condenatória, permitindo-se, todavia, antes desse marco, a prisão apenas de natureza cautelar ou temporária.

É que a discussão sobre a culpabilidade do acusado, segundo as garantias impostas pela DUDH, somente pode ser superada após o final do julgamento criminal, realizado “na forma da lei”, como visto. No caso do direito brasileiro, a lei é o Código de Processo Penal, em seu art. 283, e, considerando o termo em seu sentido amplíssimo, para ser entendido como norma jurídica de direito positivo, também se fala da Constituição Federal de 1988, onde se pode encontrar a afirmação da garantia dos efeitos do princípio da presunção de inocência, exigindo para a sua superação o esgotamento de todas as vias recursais disponíveis.

Além disso, quando se percebe que a DUDH exige que sejam asseguradas “todas as garantias necessárias” à defesa do acusado, nessa percepção se faz compreensível entender que a própria exigência do trânsito em julgado é uma garantia do acusado e que ignorar tal mecanismo configura violação ao texto expresso da Declaração.

Desse modo, seguindo uma interpretação principiológica e sistemática, é possível afirmar que, pelo princípio da não culpabilidade, ninguém pode ser perseguido ou condenado antes dos trâmites processuais legais, pois sua culpa somente se forma no modelo jurídico previsto na lei.

Por esse mesmo princípio diz-se que ninguém poderá ser julgado sem que tenha sido devidamente chamado ao processo, deduzindo-se que, enquanto o acusado não seja declarado culpado por uma decisão com força de caso julgado, será considerado inocente. Finalmente, por esse mesmo princípio, é possível definir que o processado tem o direito de apresentar a sua defesa de maneira ampla e livre, discutindo os elementos de prova contra si reunidos, cabendo à acusação a prova do crime, posto que, em último caso, a dúvida beneficia o réu do processo penal.[11]

Diante do exposto, percebe-se que, espancando qualquer dúvida, a exigência do trânsito em julgado para dar início ao cumprimento da pena configura regra jurídica objetiva e marco temporal preciso, estabelecido pela Constituição Federal e pelo Código de Processo Penal, configurando-se, desse modo, instrumento de garantia dos direitos humanos do acusado, com cuja defesa o Estado Brasileiro se comprometeu ao incorporar à sua ordem jurídica a Declaração Universal de Direitos Humanos.

 

4 A atuação do Ministério Público à luz da DUDH em matéria de presunção de inocência

Nesse último ponto do trabalho, a discussão é voltada para a tentativa de direcionamento e compreensão da atuação ministerial frente à garantia constitucional da presunção de inocência.

Quando da defesa do primado constitucional, o Ministério Público também tem o papel relevante de prezar pelos direitos humanos e fundamentais do cidadão, inclusive o direito à liberdade, não somente de pensamento, mas também à liberdade de locomoção.

Na defesa desse direito, portanto, cabe ao órgão ministerial se utilizar dos instrumentos legais e constitucionais cabíveis na defesa da ordem constitucional e do Estado Democrático de Direito, bem como dos mecanismos cabíveis e providências adequadas, para garantir não somente o bem da sociedade e condução adequada do processo penal, mas também os direitos mais básicos do indivíduo, considerando-o na sua individualidade.

Ademais, cabe ainda ao parquet a defesa e a promoção dos direitos humanos delineados na Declaração Universal de 1948, na medida em que foram proclamados no texto internacional do século passado, nos pactos, tratados e convenções internacionais que lhe sucederam, mas que ainda assim confirmaram o dever de obediência e respeito aos direitos mais básicos e elementares do homem.

Também vale destacar que essa defesa não é limitada tão apenas aos termos literais da DUDH, até mesmo porque com o passar do tempo e o desenvolvimento das comunidades globais e regionais, com o surgimento de novos desafios, cuja amplitude dimensional parece sempre estar em processo de expansão, mormente em tempos de mídias sociais iterativas e globais e na era da informação rápida e difusa, o sentido e o alcance interpretativo das normas da DUDH podem sofrer variações em suas interpretações e aplicações.

A defesa dos interesses individuais indisponíveis e dos direitos humanos pelo Ministério Público deve alcançar igualmente os limites e compreensões dadas posteriormente à DUDH, mas que surgem a complementando, que foi exatamente o caso da Constituição Federal de 1988 quando exigiu o trânsito em julgado como marco temporal, processual e objetivo para afastar a presunção de inocência que recai sobre o cidadão acusado do cometimento de determinados crimes.

Logo, a estabilidade do pensamento ministerial concatenado à defesa dos direitos humanos é tarefa árdua que não merece vacilo por parte dos procuradores e promotores de Justiça quando se diz respeito a esse tipo de direito.

É necessário prezar pelo estabelecimento de uma segurança jurídica mínima, que, no caso do princípio da presunção de inocência, sendo consentâneo com o Texto Constitucional de 1988, com a Declaração Universal de Direitos Humanos, com o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e com a Convenção Americana de Direitos Humanos, entre outros instrumentos jurídicos de direito internacional, deve ser garantida no sentido de exigir o trânsito em julgado da sentença penal condenatória antes do cumprimento efetivo da pena.

O STF, na forma como atuou sobre o tema, parece vacilar na manutenção da ordem e da segurança constitucional, contudo já aparecem indícios de que talvez a corte venha, mais uma vez, revisitar o tema.

Conforme pontua Assis, caso venha, de fato, a ocorrer uma posição de revisão do entendimento do ministro Gilmar Mendes, como visto um dos principais responsáveis pela mudança de entendimento, é possível se chegar a mais um overruling acerca do mesmo tema:

A revisão da posição do ministro Gilmar Mendes, caso venha a se concretizar quando do julgamento final das ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44, provavelmente conduzirá a mais uma guinada na jurisprudência do STF (o terceiro overruling), visto que se formará nova maioria de votos para restabelecer a tese da proibição da execução imediata da pena após a condenação em segunda instância.[12]

Diante do exposto, é papel inarredável do Ministério Público brasileiro defender os direitos humanos e fundamentais, especialmente quando detêm guarida constitucional e são observados nos mais diversos instrumentos jurídicos da ordem internacional, sendo necessária, desse modo, a atuação do membro do parquet para promover as medidas judiciais e extrajudiciais necessárias para que a execução da pena somente tenha início após o devido trânsito em julgado da sentença criminal, estando assim em plena consonância com a garantia estabelecida no art. 5º, LVII, da Constituição Federal de 1988, bem como no art. 11, parágrafo 1º, da Declaração Universal de Direitos Humanos.

 

5 Conclusões

As discussões que permearam o presente ensaio voltaram-se sobre o princípio da presunção de inocência na jurisprudência do STF e sua aplicação nos moldes daquilo que pode se extrair da Declaração Universal de Direitos Humanos, para, ao final, tecer comentários sobre qual seria o papel de atuação do Ministério Público no contexto democrático de aplicação do referido princípio.

Depreendeu-se que o STF não tem se preocupado tão eficazmente com o primado da segurança jurídica, posto que em menos de uma década alterou o seu entendimento sobre o princípio constitucional da não culpabilidade e a necessidade de se exigir o trânsito em julgado de sentença criminal condenatória para dar início à fase da execução penal.

Nesse cenário, focou-se, outrossim, o trabalho em analisar o contexto da gênese da DUDH e os demais e principais instrumentos internacionais de garantia e proteção de direitos humanos, para que a eles se pudesse atrelar o princípio da não culpabilidade, principalmente na esfera criminal, para adotar como tese primordial do ensaio a necessidade de se exigir o trânsito em julgado da sentença condenatória antes de se iniciar o cumprimento da reprimenda penal, haja vista que esse é o melhor entendimento que pode ser extraído da DUDH, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana de Direitos Humanos, quando todos exigem a tramitação dos meandros legais antes de se formar a convicção jurídica de culpa contra o cidadão.

Finalmente, tratando o Ministério Público de órgão independente, de cunho constitucional e no exercício de função essencial à Justiça, acredita-se que o parquet, que tem como dever legal e constitucional a proteção de interesses sociais e individuais indisponíveis, nos termos do art. 127, caput, da Constituição Federal, pode e deve atuar para fazer prevalecer o primado da presunção de inocência, posto que se trata de garantia derivada, ao menos indiretamente, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e de vários outros instrumentos internacionais de afirmação de direitos do cidadão, que merecem o respaldo devido e o respeito esperado na ordem jurídica atual do País.

 

REFERÊNCIAS

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BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

BRASIL, Deilton Ribeiro. A garantia do princípio constitucional da presunção de inocência (ou de não culpabilidade): um diálogo com os direitos e garantias fundamentais. Revista de Direito Brasileira, São Paulo, v. 15, n. 6, p. 376/398, set./dez., 2016. Disponível em: <http://www.indexlaw.org/index.php/rdb/article/view/3038/2785>. Acesso em: 27 dez. 2018.

PEREIRA, Luciano Meneguetti. A Declaração Universal dos Direitos Humanos e sua importância na gênese, desenvolvimento e consolidação do direito internacional dos diretos humanos. In: SGARBOSSA, Luís Fernando; IENSUE, Geziela. Direitos Humanos & Fundamentais: Reflexões aos 30 Anos da Constituição e 70 da Declaração Universal. Campo Grande: Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica, 2018.

SABOIA, Gilberto Vergne. Significado Histórico e Relevância Contemporânea da Declaração Universal dos Direitos Humanos para o Brasil. In: GIOVANNETTI, Andrea (org). 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos: conquistas do Brasil. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. As sete décadas de projeção da declaração universal dos direitos humanos (1948-2018) e a necessária preservação do seu legado. Revista da Faculdade de Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 97-140, jul./dez. 2018.

[1]             ASSIS, Guilherme Bacelar Patrício de. A oscilação decisória no STF acerca da garantia da presunção de inocência: entre a autovinculação e a revogação de precedentes. Revista de Informação Legislativa: RIL, v. 55, n. 217, p. 135-156, jan./mar. 2018, p. 144. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/55/217/ril_v55_n217_p135>. Acesso em: 21 dez. 2018.

[2]             Idem, p. 145.

[3]             Idem, p. 145.

[4]          TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. As sete décadas de projeção da declaração universal dos direitos humanos (1948-2018) e a necessária preservação do seu legado. Revista da Faculdade de Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 97-140, jul./dez. 2018, p. 100.

[5]             Idem, p. 136.

[6]             BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 372.

[7]             ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria Geral dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1996, p. 111.

[8]             PEREIRA, Luciano Meneguetti. A Declaração Universal dos Direitos Humanos e sua importância na gênese, desenvolvimento e consolidação do direito internacional dos diretos humanos. In: SGARBOSSA, Luís Fernando; IENSUE, Geziela. Direitos Humanos & Fundamentais: Reflexões aos 30 Anos da Constituição e 70 da Declaração Universal. Campo Grande: Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica, 2018, p. 49.

[9]             SABOIA, Gilberto Vergne. Significado Histórico e Relevância Contemporânea da Declaração Universal dos Direitos Humanos para o Brasil. In: GIOVANNETTI, Andrea (org). 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos: conquistas do Brasil. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, p. 57.

[10]           PEREIRA, Luciano Meneguetti. Ob. cit., p. 63.

[11]           BRASIL, Deilton Ribeiro. A garantia do princípio constitucional da presunção de inocência (ou de não culpabilidade): um diálogo com os direitos e garantias fundamentais. Revista de Direito Brasileira, São Paulo, v. 15, n. 6, p. 376/398, set./dez., 2016, p. 379. Disponível em: <http://www.indexlaw.org/index.php/rdb/article/view/3038/2785>. Acesso em: 27 dez. 2018.

[12]           ASSIS, Guilherme Bacelar Patrício de. Ob. cit., p. 147.