Habeas Corpus como dever fundamental de ofício

Artigo de André Silvani da Silva Carneiro
 57º Promotor de Justiça Criminal do Recife, formado pela UFPE, Faculdade de Direito do Recife, pós-graduado em Direito Ambiental.

RESUMO. O legislador constituinte de 1988 inseriu, na Carta Magna brasileira, uma nova Teoria dos Direitos Fundamentais, os quais se traduzem em individuais e coletivos, e estão previstos nos diversos incisos do art. 5º.

As máximas conquistas de uma sociedade democrática estão, de fato, ligadas à tutela de direitos fundamentais e a Constituição Federal do Brasil incumbiu ao Ministério Público, expressamente, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

O trabalho pretende, pontualmente, abordar a correlação deste mister formal constitucionalmente atribuído ao Ministério Público com o atuar de seus membros na seara criminal, com vistas à propositura de novos modelos de aplicação do direito.

Palavras-chave: habeas corpus. Dever fundamental. Decisões inconstitucionais.

 

  1. DO HABEAS CORPUS

A ação constitucional do habeas corpus se revela como sendo o remédio constitucional mais efetivo na defesa de um dos principais direitos fundamentais: a liberdade individual.

Apontam-se as origens remotas do habeas corpus, entre outras, no Direito Romano[2], onde era possível que todo cidadão tivesse o direito de reivindicar a apresentação do homem livre que tivesse sido preso de modo ilegal. A ação era denominada interdictum de libero homine  .

Todavia, a ascendência mais aceita, entre muitos autores, menciona a Inglaterra do Rei João Sem Terra, por meio da Carta Magna daquela nação, em 1215, embora ainda seja citada como mais completa a forma retratada no reinado de Carlos II, quando editada a Petition of Rights, passando a ser o instrumento utilizado não apenas nos casos do indivíduo acusado de crime, mas em hipóteses outras diversas[3].

No Brasil, ainda que já presente, implicitamente, na Constituição Imperial de 1824, somente foi expressamente apresentado o habeas corpus na Constituição de 1891. Na Carta Magna vigente está previsto no art. 5º, LXVIII.

No mundo, e com a forma atualmente conhecida, o instituto foi se espalhando e se consolidando, de modo a restar presente na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, em seu art. 8º, estabelecendo que “Toda pessoa tem direito a um recurso efetivo ante os tribunais competentes que a ampare contra atos violatórios de seus direitos fundamentais, reconhecidos pela Constituição e pelas leis.”

Entretanto, ainda há nações que não o admitem em seu ordenamento jurídico.

Como instrumento de garantia da liberdade de locomoção, o remédio jurídico pode ser interposto tanto para restabelecer essa liberdade, como para prevenir a ocorrência de sua violação, podendo ser movido por qualquer pessoa, física ou jurídica[4], anonimamente ou até mesmo concedido, de ofício, pela autoridade judiciária competente.

A sua abrangência alcança todos os direitos que digam respeito à liberdade de locomoção, direta ou indiretamente envolvidos, também não vinculando a autoridade julgadora à causa de pedir ou pedidos formulados pelo impetrante.

Ainda assim, trata-se de medida poucas vezes utilizada pelo Ministério Público, mesmo diante de um cenário de violações cotidianas de direitos e garantias fundamentais, também no âmbito do processo penal.

 Tenha-se presente que o Art. 5º, LXVIII, da Constituição da República Federativa do Brasil dispõe, expressa e claramente, que “conceder-se-á habeas-corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.

De fato, a constitucional incumbência ligada à tutela de direitos fundamentais pelo Ministério Público, inserta no art. 127, da Constituição Federal, é inequívoca quanto ao dever imposto à Instituição ministerial, em todas as suas áreas de atuação, de promover, com efetividade, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Ora, se por um lado ninguém deve discordar de que toda prisão ilegal é juridicamente insustentável, por outro lado não se mostra tão evidente a realidade prática desse consenso em alguns casos, ainda que a Constituição Federal disponha que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária” (Art. 5º, LXV, CRFB).

Isto será melhor demonstrado a seguir.

 

  1. DO CUSTOS LEGIS

 

Parece por demais evidente a compreensão de que o Ministério Público é, também, por mandamento constitucional expresso, essencial à função jurisdicional estatal.

Essa realidade assume grande relevância no processo penal, pois, muito mais do que apenas parte na ação penal, o Ministério Público também exerce a cara e indelegável atribuição de custos legis, função que tem bases históricas e culturais profundas no caso brasileiro.

E é nessa atividade fiscalizatória que a instituição desempenha, sobretudo, o papel constitucional de tutela dos direitos fundamentais, conforme inserto no art. 127, da Constituição Federal, cuja análise presente se restringe à atuação no processo penal.

Desse modo, a análise recai na cotidiana atuação do membro com atribuições na área penal.

No que toca à atuação processual penal do Ministério Público, a despeito de tão honrosa incumbência na defesa de direitos fundamentais, parece se revelar incipiente o desempenho institucional neste campo, passando despercebidos até mesmo graves e reiteradas violações que, de tão sedimentadas, deixam de ser atacadas, especialmente de ofício.

Relegada à modestas situações pontuais a defesa de direitos e garantias fundamentais, no atuar processual penal pelo Ministério Público, acentua-se a ideia de que tal mister seria incompatível com a promoção da ação penal, como se fosse menos importante, justamente, a função de custos legis.

Eis o ponto em que deve ser bastante ressaltada a aviltante condição em que se acham a quase totalidade dos estabelecimentos prisionais brasileiros e da forma como as prisões, temporárias ou definitivas, são de regra cumpridas nos estabelecimentos prisionais brasileiros.

É possível que a prefalada omissão ministerial decorra de uma certa atrofia do exercício da função fiscalizatória no processo penal, naturalmente inclinado a buscar o Parquet, desde a sua mais tenra origem, o encarceramento, pelo clássico papel de acusador.

E, talvez, a consequência disso seja, exatamente, a constatação de uma reiterada violação de direitos e garantias fundamentais pelo Estado, já que consentida por uma surpreendente omissão do Ministério Público que atua “no crime”, revelada no ignorar sedimentado de violações formais e materiais, estas últimas que, sorrateiramente, norteiam a realidade das piores ilegalidades.

Nas audiências de custódia, por exemplo, pouquíssimos promotores de justiça, provavelmente, impetram habeas corpus quando da negativa injusta e desfundamentada à liberdade provisória ou à medidas cautelares diversas da prisão pelo .

Quanto à transgressão material, nos casos em que, embora irretocáveis as razões processuais à manutenção da prisão, revelando-se aviltante à dignidade humana o local reservado ao cumprimento da medida prisional, o Ministério Público também silencia a este respeito, ao invés de adotar alguma medida no âmbito de sua esperada atuação como custos legis.

A falta de compreensão e interesse, dos que atuam na área criminal, sobre a importância de se dar efetividade plena a missão constitucional de defesa de direitos e garantias fundamentais, parece decorrer de uma série de distintas razões: limitações interesses do Poder Executivo; receio da opinião pública; visão distorcida do tema; complexidade do problema; descrença ou desconhecimento das alternativas possíveis, etc.

Ora, é óbvio que toda prisão ilegal é juridicamente insustentável, isto não se discute. O que não é tão evidente assim é a consequência prática disso em alguns casos: a liberdade do indivíduo, ainda que estabeleça a Constituição Federal que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária” (Art. 5º, LXV, CRFB).

 

  1. DO SISTEMA PRISIONAL EM PERNAMBUCO

Mesmo sendo notórias, especialmente no meio jurídico, as vexatórias condições da maioria dos estabelecimentos prisionais no Brasil, faz-se necessários alguns destaques sobre a situação no Estado de Pernambuco, para melhor compreensão do tema proposto:

“Falar do sistema penitenciário do Estado é falar de contas que não fecham. De acordo com dados da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos e do Sindicato dos Agentes Penitenciários, existem 30.028 detentos no Estado para 10.967 vagas nas unidades carcerárias. O déficit é de nada menos de 19.061 vagas. Quando se sai da calculadora para a realidade, o que se vê é um barril de pólvora diariamente pronto para explodir com rebeliões que resultam na fuga de presidiários ou no confronto entre detentos, policiais e agentes penitenciários.

As rebeliões e as mortes causadas por elas – só em 2016, o registro foi de 43 assassinatos dentro do sistema prisional – foram frequentes nos últimos dez anos. Se por um lado elas não despertam a solidariedade de parte da sociedade, que se guia pela lógica de que “bandido bom é bandido morto”, por outro, chamaram a atenção internacional

A própria Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do Estado de Pernambuco, em Relatório oficial datado de 14 de setembro de 2014, apresentou a situação caótica das unidades prisionais no Estado, quanto ao número de vagas e quantidade de presos.

Para mencionar, apenas, o problema da superlotação, destacam-se o Presídio de Igarassú que, com apenas 426 (quatrocentos e vinte e seis) vagas, apresenta um número superior a 3.500 (três mil e quinhentos) presos; o Centro de Observação Criminológico e Triagem – COTEL, com somente 311 vagas, mas com 2.759 encarcerados; e a Penitenciária Agro-industrial São João, com 630 vagas e 2.080 custodiados.

O total de presos em todo o Estado, quando do relatório citado, era de 30.586 pessoas, para apenas 16.855 vagas. Atualmente, são 32.781 presos e, somente, 11.767 vagas, o que significa uma quantidade de detentos 178,6% maior que a capacidade das unidades[6]. É a maior taxa de superlotação carcerária do país.

O ambiente acaba favorecendo o caos, com o ingresso até mesmo de armas de fogo e armas brancas, telefones celulares, drogas e outros diversos materiais ilícitos, o que também proporciona a ocorrência de crimes graves praticados entre os detentos e contra o efetivo de servidores públicos que ali desenvolvem suas atividades. É a superlotação que leva a anomalia de todo o sistema prisional, favorecendo o aumento da criminalidade e da violência, dentro e fora dos estabelecimentos.

Condições como estas levaram a que a citada Corte Interamericana de Direitos Humanos viesse a expedir Resolução específica, dirigida ao Estado brasileiro, acerca do Complexo Penitenciário do Curado, requerendo a observância a uma série de medidas, as quais pouco ou nenhuma efetividade parece terem apresentado, pois continuam públicas e notórias, cotidianamente, as ilegalidades naquele e em outros estabelecimentos prisionais no Estado de Pernambuco, onde o excesso de presos é apenas uma das dificuldades.

Sem dúvidas, a problemática em torno do sistema prisional no Brasil está mesmo inserida em uma realidade sistêmica e histórica, mas certamente a ausência de uma pressão qualificada favorece a manutenção desse estado de coisas inconstitucional, assim já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, em ação própria.

Nesses estabelecimentos não controlados pelo Estado, até os disputados espaços para dormir são objeto de comercialização e muitas vezes se faz necessário o revezamento entre os presos, tamanho aperto em determinados recintos, a ponto do próprio refeitório haver sido desativado, há anos, apenas para servir de dormitório entre um amontoado de presos.

É fato mesmo conhecido que tais estabelecimentos em Pernambuco, em especial os situados na Região Metropolitana do Recife, de há muito desafiam a todos a uma permanente reflexão acerca das condições em que ali se coloca a dignidade humana, considerada um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.

 No caso dos logradouros que servem à referida Região Metropolitana do Recife, inclusive o denominado COTEL (de acolhimento oficialmente provisório), a realidade é frequentemente exposta à sociedade, não se limitando ao conhecimento restrito dos operadores do direito, tornando inequívoca a compreensão sobre a total impropriedade do sistema, especialmente no que se refere ao caráter ressocializador da pena que, tanto ou mais que o aspecto retributivo, deve receber as reformas necessárias para que se torne efetivo, o que parece longe de ocorrer.

Por tudo isto, em sentido contrário ao desejado por todos, vê-se há tempos os nossos estabelecimentos prisionais serem chamados de universidades do crime. São logradouros que aumentam em número, tanto o quanto crescem em péssimas condições gerais: o país dispõe em torno de 1400 unidades prisionais e, aproximadamente, 832.000[7] pessoas encarceradas, em julho de 2023, a maior população carcerária de sua história.

A inexistência de efetivo controle estatal, com o caos instalado pela superlotação absurda, permite que os presos (alguns poucos) estabeleçam as próprias regras no interior dos estabelecimentos prisionais, o que tem proporcionado cenários os mais cruéis em todo o país e ainda o aumento e a permanência do controle da criminalidade no lado de fora.

Em face à insalubridade, as condições de saúde da população carcerária brasileira também acabam sendo brutalmente atingidas e cerca de 62% das mortes ali são decorrentes de doenças.[8]

As barbáries apresentadas, constantemente, pela imprensa nacional e internacional já soam à sociedade e a maioria dos operadores do direito, como algo aceitável ou relegado mesmo ao esquecimento, talvez pela crença de que se trata de problema insolúvel.

Mas, como pontua Walmyr Júnior, graduado em História pela PUC-RJ, em artigo  :

“A crise carcerária só poderá ser resolvida quando a sociedade e os políticos tiverem vontade de solucionar o problema. Para isso acontecer, é preciso acabar com os preconceitos em relação aos presos e aos ex-presidiários. É preciso criar mecanismos para que aquele jovem, ou adulto, encarcerado possa ser reabilitado. É preciso tratá-lo como ser humano.”

É preciso que se diga que a questão respeitante à superlotação dos estabelecimentos, embora por si só muito grave, não é o único dos problemas que se verifica existir e a se agravar, tanto em relação aos próprios presos, visitantes e agentes penitenciários, como relativamente à própria sociedade que se recusa ou que não está preparada ao enfrentamento racional – único possível, em torno do sistema prisional, notadamente no que tange à ressocialização.

A multicitada Declaração Universal dos Direitos Humanos pontifica que “ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”, ao passo que “Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos”, além de dispor de igual preceito, ainda pugna que “todas as pessoas privadas de sua liberdade devem ser tratadas com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana”.

A Carta Magna brasileira, em seu artigo 5º, incisos III e XLIX, veda a utilização da tortura ou o tratamento desumano ou degradante, assegurando também aos presos, o respeito à integridade física e moral.

Como se vê, as condições em que se opera a restrição da liberdade individual no Brasil, pelo Estado, desafiam aos operadores do direito à adoção de ações efetivas de enfrentamento dessa problemática gravíssima.

Afinal, há algum fundamento, lógico ou jurídico, à manutenção de uma pessoa em cárcere que viola direitos humanos?

  1. DAS ROTINEIRAS DECISÕES INCONSTITUCIONAIS

A reforma do Código de Processo Penal, introduzida pela Lei 12.403/2011 e alcançando o art. 310 do citado diploma legal, passou a exigir do juiz que, ao receber o auto de prisão em flagrante, adote uma das seguintes medidas: a) relaxar a prisão ilegal; b) converter a prisão em flagrante em preventiva, desde que presentes os requisitos do artigo 312 do CPP e forem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares previstas nos art. 319 do CPP; ou c) conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.

Não por acaso, a primeira das hipóteses diz respeito ao relaxamento da prisão ilegal, pois apenas se superado tal requisito formal, será observado do cabimento da prisão preventiva ou da concessão da liberdade provisória.

O juiz é, então, incumbido de observar, primeiramente, se a prisão se reveste de legalidade e, nesse sentido, confere, por exemplo, se o flagrante se deu numa das circunstâncias previstas no art. 302, do CPP: “Considera-se em flagrante delito quem: I – está cometendo a infração penal; II – acaba de cometê-la; III – é perseguido, logo após, pela autoridade”. Fora da hipótese de flagrante, observará o magistrado se o caso é de cumprimento de mandado de prisão.

Mas, como se percebe, tratam-se de requisitos meramente formais e, assim, não dizem respeito ao modo como se dá o efetivo cumprimento da prisão, do ponto de vista material de sua execução pelo Estado e cumprimento pelo  .

Neste sentido, impõe-se examinar, também, se o local destinado ao cumprimento da medida atende aos requisitos legais pertinentes, de modo que não basta avaliar se a prisão é legal, apenas, do ponto de vista formal, mas ainda se ela é materialmente aceitável.

Assim, além da análise sobre os requisitos legais formais da prisão, tem-se por imperioso, ainda, o exame quanto aos aspectos afetos ao local e condições de cumprimento da medida restritiva da liberdade, decorra a prisão de flagrante delito ou do cumprimento de mandado, seja ela de natureza provisória ou definitiva.

Todavia, não é o que se observa na prática da atuação jurídica em geral e rotineira. Nem os advogados ou defensores ao pedir, nem o Ministério Público ao emitir o seu posicionamento, nem, por fim, o juiz, em suas decisões a respeito, de regra, não discorre sequer uma linha sobre as condições em que se materializará o encarceramento do indivíduo, como se todos desconhecessem a realidade ora discutida.

O fato é que são dissecados os requisitos formais relativos à prisão ou sua manutenção, mas nada é dito sobre iguais pressupostos de lei, expressos na Constituição da República e detalhados na Lei de Execução Penal, acerca do local do cumprimento da medida prisional.

É que parece haver se convencionado observar, quando muito, às violações formais de direito, como ocorre nos casos de excesso de prazo ou na hipótese de flagrante intempestivo, de regra sendo relaxada a prisão, como consequência.

Todavia, quanto às violações materiais de garantias fundamentais, de regra sedimentadas e notoriamente correntes nos locais reservados ao cumprimento da prisão, normalmente são ignoradas, toleradas, como se fosse isso menos importante do que a mera violação formal.

Mas, ao contrário da realidade comumente ignorada, apresenta-se muito mais grave a ilegalidade decorrente das condições materiais da prisão.

Por isso mesmo, destoam as decisões como a adotada pelo então juiz da 2ª Vara da Comarca de Bezerros/PE, no já distante ano de 2000, que assim entendeu sobre o tema, quando da análise de determinado caso concreto:

“É direito da sociedade a segregação das pessoas que cometem crimes, ou até mesmo daqueles contra quem se faz acusação de crime, dentro dos limites estabelecidos na lei, porém, é mais certo ainda que essa sociedade, através do Estado, deve propiciar as condições mínimas para a manutenção dos detentos, pois a legislação pátria garante esse direito aos segregacionados. Entretanto, infelizmente, não é isso que acontece e as cadeias e presídios tornaram-se, invariavelmente, locais de ócio e de difusão do crime. Neste caso, acolherei o parecer do Ministério Público, determinando que o acusado cumpra a prisão em domicílio, sob a fiscalização das polícias e dos oficiais de justiça. Será uma experiência e espero que os resultados sejam favoráveis

Também excepcionais decisões como a do Superior Tribunal de Justiça, por voto da lavra do Eminente Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, confirmado à unanimidade pela 5a. Turma daquela Corte de Justiça, no habeas corpus n. 30218 (D.J. de 03.09.03), apreciando o cumprimento da pena em condições mais rigorosas que as estabelecidas na condenação, concedeu por unanimidade a ordem “para determinar que o Paciente seja encaminhado ao estabelecimento destinado ao regime semiaberto ou, se inexistente vaga, seja-lhe conferida a prisão domiciliar até resolvida a questão, em ambos os casos, ser-lhe-á garantido o tratamento médico.”

Contudo, o plenário do Supremo Tribunal Federal, em 2015, em sede de medida cautelar, na ADPF 347, reconheceu o chamado “estado de coisas inconstitucionais” de determinadas unidades prisionais do país e, ainda em 2023, deve voltar ao julgamento do mérito da ação.

Neste sentido, entidades e órgãos da sociedade que integram aquela medida como amicus curiae, entre elas a Pastoral Carcerária Nacional – CNBB e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em setembro de 2023, protocolaram memoriais junto à referida ADPF, visando influir no processo decisório e pressionar a que ocorra o julgamento de mérito

Não por acaso, entre outras coisas, ali é apontada A responsabilidade do Judiciário, que vem descumprindo suas obrigações na garantia dos direitos das pessoas privadas de liberdade. Devido a omissões e interpretações contrárias à Constituição, diariamente prisões sem fundamentação vêm sendo concretizadas e as visitas de inspeção não são feitas com regularidade. As medidas penais mais graves tomaram frente e, assim, fecharam-se os olhos para os inúmeros problemas estruturais presentes nos cárceres.

Ao que parece, tais entidades não se deram conta das correlatas omissões e responsabilidades também por parte do Ministério Público, enquanto fiscal da lei.

 É que o cárcere em nosso país, da forma como aos olhos de todos se materializa, desafia um atuar audacioso não apenas à magistratura, mas ao Ministério Público, à Defensoria e à Advocacia, além, é claro, às organizações sociais em geral. Foi isso o que levou a um consequente melhoramento das aviltantes condições do sistema prisional em Contagem/MG há alguns anos, por exemplo.

Realmente, deve ser alcançado um autêntico e sustentável equilíbrio, entre o poder estatal ao prender um indivíduo e os direitos e garantias fundamentais dissociados nesse mesmo indivíduo, como sendo – o equilíbrio, aquele que ao menos se coloque em harmonia com os ditames da Constituição Federal, com os tratados internacionais de que o Brasil participa e com a Lei de Execução Penal. E isto não se alcança com a mera formalidade da prisão.

Não há dúvida de que o ordenamento jurídico nacional autoriza o Estado a restringir a liberdade individual, em específicas e excepcionais circunstâncias, porém igualmente impõe ao ente estatal que atenda a objetivos regramentos legais para que assim proceda, pois o que se permite é apenas – e tão-somente – o aprisionamento de conformidade com a mesma ordem jurídica e não a prisão inconsequente.

A violação de garantias constitucionais é deveras grave e totalmente inaceitável, sob qualquer argumento ou pretensa justificativa, ainda mais se patrocinada por omissão estatal, previamente conhecida e, mesmo assim, assentida por órgãos e Poderes do Estado que têm o dever de zelar pelo respeito à Constituição Federal e às leis do país.

As odiosas medidas restritivas da liberdade às vezes são de fato necessárias, mas jamais à custa da violação de direitos e garantias fundamentais.

 Decisões assim são, flagrantemente, inconstitucionais e a importância da atuação do Ministério Público, enquanto custos legis no processo penal, verifica-se no cumprimento de um seu dever constitucional, em verdadeiro controle difuso de constitucionalidade dos atos judiciais afetos à apreciação de cada membro, de outro lado cabendo às promotorias extrajudiciais de cidadania um atuar visando um controle específico, como quando se ingressa com ações civis públicas questionando as ilegalidades do sistema prisional.

Finalmente, vê-se que somente no ano de 2022, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de 67% das leis, normas administrativas e decisões judiciais analisadas, no todo ou em parte .

  1. DO QUE OCORRE NA GENERALIDADE

 Parece insofismável que, em qualquer situação, deve ser garantida a dignidade da pessoa humana, de forma efetiva, sendo isto em especial esperado por parte do Estado detentor do poder legítimo à restrição das liberdades individuais, para tanto devendo, simplesmente, assegurar o respeito aos direitos fundamentais, de modo que a compatibilização de tais garantias constitucionais assegure ao indivíduo preso o cumprimento da medida constritora em cárcere que se revele não apenas formal, mas constitucionalmente apto para tal propósito.

Todavia, em que pese se revelar, realmente, ululantemente ilegal o decreto prisional ou a sentença condenatória que não consideram essa baliza elementar, ignorando condições prisionais que se revelam, de modo público e notório, violadoras de direitos e garantias fundamentais, é fato que é exatamente isto o que ocorre cotidianamente, isto é, magistrados que determinam o encaminhamento de indivíduos para prisões sabidamente inapropriadas, quanto ao que impõem a Constituição Federal e a Lei de Execução Penal.

Contudo, assim como é esperado que o juiz conceda, por dever de ofício, a ordem de habeas corpus em casos em que a prisão, sob sua competência, afigure-se ilegal, ao membro do Ministério Público, igualmente, impõe-se posicionamento e ação que apontem a ilegalidade. Isto em todas as hipóteses.

Quanto a tais considerações a compreensão parece ser fluída. E é.

Mas, na prática não é o que ocorre.

Ora, por qual razão foi instituída, ainda que com atraso, a audiência de custódia, senão para verificar as condições, de fato, em que ocorreu a prisão do indivíduo, como forma de preservar e restitui, de plano, esses direitos e garantias constitucionais quando violados?

Então, verdadeira hipocrisia estatal, é admitir que o indivíduo, submetido à uma audiência cautelar, onde se verificou a validade formal da prisão em flagrante e a imperatividade de uma prisão preventiva, agora possa ser levado ao cumprimento da medida em um estabelecimento prisional onde é certeira a ideia de violação de direitos e garantias fundamentais que se queria preservar com a audiência de custódia.

É o caso de se concluir que ao Estado-polícia é vedado proceder à prisão ilegal, mas ao Estado-juiz, não.

Parece também a hipótese de se entender, por dedução lógica, que a verificação sobre a legalidade da prisão formal é importante, mas as condições em que se materializa a prisão não importam.

Assim, no que toca ao Ministério Público, o encaminhamento do preso, pelo Poder Judiciário, à cárcere que se revele materialmente ilegal, deve levar a duas possibilidades: propor o remédio legal mais apropriado ou justificar, nos autos, a razão de não o fazê-lo. Esta última alternativa deve ser bem mais desafiadora!

A conclusão é a de que, quando, na esfera de atuação criminal, a hipótese de prisão se revelar ilegal, não será faculdade a propositura do habeas corpus pelo Ministério Público, mas dever de ofício inescusável.

É que, é clara a incumbência constitucional fixada no art. 127, da Constituição Federal de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, cabendo ao membro do Ministério Público adotar a medida legal mais eficaz, diante da ocorrência ou ameaça de violações a esses direitos e garantias  .

  1. DO ENFRENTAMENTO PONTUAL EM PERNAMBUCO

A despeito de inexistente qualquer orientação objetiva por parte dos órgãos da administração superior do Ministério Público, em face a essas evidentes constatações de violações de direitos e garantias fundamentais, as quais são diuturnas, permanentes e gravíssimas, decorrentes de omissões estatais sedimentadas, isoladamente, a 57ª Promotoria de Justiça Criminal da Capital – 57ª PJCC tem se empenhado em adotar específicos critérios em sua atuação judicial cotidiana, junto à 13ª Vara Criminal do  .

Assim, a 57ª PJCC vem se posicionando, de modo firme e uniforme nas ações penais ali em curso, interpondo medidas judiciais afetas às suas atribuições, em todos os casos em que se coloque em perspectiva a restrição da liberdade individual em estabelecimento prisional estatal, partindo do entendimento de que tais estabelecimentos, no Estado de Pernambuco, revelam-se, pública e notoriamente, violadores de direitos e garantias  .

Contudo, tais posicionamentos ministeriais não se limitam à mera constatação e crítica da   ora discutida, mas, sobretudo, esforça-se em apontar alternativas que entende e procura demonstrar viáveis, em conformidade com o perfil do processado e as particularidades de cada caso concreto.

Assim é que, na prática, em pareceres, alegações finais e recursos, quando em jogo a possibilidade de restrição da liberdade do indivíduo, a 57ª PJCC, não apenas aborda a temática das condições materiais dos estabelecimentos prisionais em Pernambuco, como fundamenta o pleito para que o juízo adote logradouro e forma diversos ao cumprimento da medida que venha a restringir a liberdade do processado, trate-se a hipótese de prisão temporário ou definitiva .

Na hipótese, por exemplo, de sentença condenatória, quando não acatadas as medidas concretas sugeridas pelo Ministério Público em suas alegações finais, determinando o juízo as soluções pragmáticas formais conhecidas, ignorando a realidade carcerária, a 57ª promotoria de justiça recorre, em apelação, da sentença, do ponto que determina o cumprimento da pena em estabelecimento prisional sabidamente violador de direitos e garantias fundamentais.

Todavia, conforme já observado em outras atuações no Ministério Público de Pernambuco, como pela 17ª Promotoria de Justiça Criminal da Capital, o remédio legal mais apropriado parece ser mesmo a propositura da ação constitucional do habeas corpus, por óbvias razões, sobretudo ligadas a rapidez da resposta e potencial do resultado, especialmente em se considerando a possibilidade de sua condução até a mais alta Corte de Justiça, o Supremo Tribunal Federal, como já procedido, de modo reiterado, pela 37ª Promotoria de Justiça Substituta do Recife, entre os anos de 2004 a 2006, junto à 10ª Vara Criminal da Capital.

  1. DAS CONLUSÕES

É intrigante o fato de que, passados 35 (trinta e cinco) anos da promulgação da Magna Carta de 1988, possa persistir uma lacuna no atuar do Ministério Público criminal custos legis no Brasil, no que se refere à efetivação dos direitos fundamentais e à prevenção de sua violação, no âmbito do processo penal, notadamente no Estado de Pernambuco.

Os dados aqui apontados e a discussão do tema parecem, realmente, indicar a urgência de medidas por parte dos órgãos centrais da administração superior do Ministério Público de Pernambuco, de modo a levar aos seus membros a discussão sobre novas formas de atuação, visando a efetivação dos direitos e garantias fundamentais à todas as pessoas, para que não se mantenham tais direitos e garantias, apenas, como mera previsão constitucional.

A proposta é a de que se conclua pelo entendimento de que a ação de habeas corpus é o remédio jurídico a ser manejado pelo membro do Ministério Público com atuação na seara criminal, por dever de ofício, em todos os casos em que se evidenciar a ilegalidade de restrições às liberdades individuais, muito mais quando antecedido por manifestação expressa e diante de encarceramento que se revele, materialmente, contrário à dignidade humana.

Assim, em tais hipóteses, o habeas corpus se traduz em um dever fundamental de ofício.

 

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. São Paulo: Editora Atlas, 2008. 23ª  .

 

PACHECO, J. E. De Carvalho. Habeas Corpus. Curitiba: Juruá, 1983. P. 16.

 

JUNIOR, Aury Celso Lima  .

JORNAL DO COMMERCIO. Edição de 17/01/2017. Disponível em: http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/politica/pernambuco/noticia/2017/01/17/sistema-prisional-e-calo-da-gestao-do-psb-em-pernambuco-267105.php

G1. Edição de 26/04/2019. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2019/04/26/pernambuco-tem-maior-superlotacao-carceraria-do-brasil-com-quase-tres-presos-para-cada-vaga.ghtml

FOLHA DE SÃO PAULO. Edição de 17/01/2017. Disponível em:   https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/brasil-tem-832-mil-presos-populacao-carceraria-e-maior-que-a-de-99-dos-municipios-brasileiros.shtml#:~:text=Cadeia%3A%20presos%20no%20Brasil%20chegam,07%2F2023%20%2D%20Cotidiano%20%2D%20Folha

JORNAL DA USP. Edição de 13/06/2023. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/cerca-de-62-das-mortes-em-prisoes-brasileiras-sao-causadas-por-doencas/

JORNAL DO BRASIL. Edição de 10/01/2014. Disponível em: https://www.jb.com.br/juventude-de-fe/noticias/2014/01/10/a-violencia-nos-presidios-tambem-e-culpa-nossa.html

Angelim, Augusto Napoleão Sampaio. Decisão prolatada no proc. n. 008/2000, A. L. P., art. 157, I e II, CP, 2ª Vara da Comarca de Bezerros-PE.

CONECTAS Direitos Humanos. Edição de 14/07/2023. Disponível em: https://www.conectas.org/noticias/no-stf-entidades-de-direitos-humanos-pedem-fim-da-tortura-e-da-superlotacao-em-presidios/

CONSULTOR JURÍDICO conjur.com.br. Publicado em 14 de maio de 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-14/aumenta-numero-decisoes-judiciais-contrarias-constituicao

Como exemplos, as atuações nos processos ns. 0000170-17.2021.8.17.4001 e 0000080-16.2021.8.17.5001, entre outras dezenas de casos.

[1] 57º Promotor de Justiça Criminal do Recife, formado pela UFPE, Faculdade de Direito do Recife, pós-graduado em Direito Ambiental.

[2] PACHECO, J. E. De Carvalho. Habeas Corpus, Curitiba: Juruá, 1983. P, 16.

[3] MORAES, Alexandre. Direito Constitucional, 23ª edição. São Paulo, 2008, P, 123.

[4] Aqui há controvérsias, na doutrina e na jurisprudência.

[5]JORNAL DO COMMERCIO. Edição de 17/01/2017. Disponível em: http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/politica/pernambuco/noticia/2017/01/17/sistema-prisional-e-calo-da-gestao-do-psb-em-pernambuco-267105.php

[6]G1. Edição de 26/04/2019. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2019/04/26/pernambuco-tem-maior-superlotacao-carceraria-do-brasil-com-quase-tres-presos-para-cada-vaga.ghtml

[7]FOLHA DE SÃO PAULO. Edição de 17/01/2017. Disponível em:   https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/brasil-tem-832-mil-presos-populacao-carceraria-e-maior-que-a-de-99-dos-municipios-brasileiros.shtml#:~:text=Cadeia%3A%20presos%20no%20Brasil%20chegam,07%2F2023%20%2D%20Cotidiano%20%2D%20Folha

[8]JORNAL DA USP. Edição de 13/06/2023. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/cerca-de-62-das-mortes-em-prisoes-brasileiras-sao-causadas-por-doencas/

[9] JORNAL DO BRASIL. Edição de 10/01/2014. Disponível em: https://www.jb.com.br/juventude-de-fe/noticias/2014/01/10/a-violencia-nos-presidios-tambem-e-culpa-nossa.html

[10]

[11] Angelim, Augusto Napoleão Sampaio. Decisão prolatada no proc. n. 008/2000, A. L. P., art. 157, I e II, CP, 2ª Vara da Comarca de Bezerros-PE.

[12]CONECTAS Direitos Humanos. Edição de 14/07/2023. Disponível em: https://www.conectas.org/noticias/no-stf-entidades-de-direitos-humanos-pedem-fim-da-tortura-e-da-superlotacao-em-presidios/

[13] CONSULTOR JURÍDICO conjur.com.br. Publicado em 14 de maio de 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-14/aumenta-numero-decisoes-judiciais-contrarias-constituicao

[14]Como exemplos, as atuações nos processos ns. 0000170-17.2021.8.17.4001 e 0000080-16.2021.8.17.5001, entre outras dezenas de casos.

[15] Como exemplos os HCs sobre as ações penais ns. 001.2006.011013-0 e 001.2003.015187-3, este último levado até o STF, entre outras dezenas de casos.