Poder requisitório e princípio do dever de colaboração com o Ministério Público

Por Salomão Ismail Filho

Promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco, titular da 22ª PJDC da Capital (direito humano à educação). MBA em Gestão do Ministério Público (UPE). Especialista e Mestre em Direito (UFPE). Doutor em Direito (UNICAP).

RESUMO: Este artigo investiga a natureza jurídica do poder requisitório dos membros do Ministério Público. O estudo apresenta o tema a partir da Constituição Federal e da legislação regulamentar, tratando, ainda, dos limites de natureza formal e cognitiva da requisição ministerial. Trata também do princípio do dever de colaboração com o Ministério Público, demonstrando as consequências do descumprimento doloso de uma requisição ministerial.

PALAVRAS-CHAVE: Ministério Público; Ombudsman; Investigação; Poder requisitório; Princípio do dever de colaboração.

1 Introdução

O objetivo principal deste artigo jurídico é apresentar um estudo a respeito da atribuição requisitória desempenhada pelo Ministério Público.

Os tempos modernos exigem uma permanente reflexão a respeito do desempenho do Ministério Público, enquanto função essencial à justiça e instituição de garantia e promoção dos direitos fundamentais. 

O estudo do poder requisitório encontra-se dentro de tal contexto, sendo um instrumento importantíssimo para que o membro do Ministério Público possa, de fato, obter resolutividade em sua atuação extrajudicial, independentemente de requerimentos ao Poder Judiciário, dentro dos limites estabelecidos para um processo judicial.

Mas, qual o fundamento jurídico para o poder requisitório? Trata-se, de fato, somente de um poder, ou se pode falar também em um dever? Como tem sido o tratamento do poder requisitório no âmbito da legislação infraconstitucional e jurisprudência? Existem limites, formais e materiais, para a requisição ministerial? É possível falar sobre um princípio da colaboração com o Ministério Público?

Eis os principais questionamentos que este artigo jurídico buscará responder, à luz de um Ministério Público resolutivo e comprometido com o projeto constitucional de instituição legitimada universal para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Se se conseguir que o leitor, ao menos, reflita sobre a relevância tema, grande parte do seu objetivo já terá sido atingido.

2 Sobre o poder-dever requisitório do Ministério Público

A Constituição de 1988 consagrou o Ministério Público como instituição Ombudsman, ou seja, ouvidora do Povo, verdadeiro canal de acesso direto ao valor justiça e instrumento de concretização dos direitos fundamentais (ISMAIL FILHO, 2011).

Nesse sentido, o art. 129, inciso II, da Magna Carta, dispõe caber ao Parquet zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia.

Além disso, o Ministério Público atua amplamente no campo investigatório, seja na condição de titular exclusivo da ação penal pública e instituição responsável pelo controle externo da atividade policial (art. 129, incisos I e VII), seja em razão de ser o legitimado universal para a defesa dos interesses sociais e individuais e indisponíveis, mediante a instauração de inquérito civil ou outros procedimentos de natureza investigatória ou fiscalizatória (arts. 127, caput, e 129, inciso III).

Não obstante, para exercer tais relevantes atribuições, no âmbito investigatório e fiscalizatório, a própria Constituição e a legislação infraconstitucional asseguraram meios para o MP desempenhar este mister. Além de instrumentos judiciais, como a ação penal pública e a ação civil pública, tem-se instrumentos de investigação extrajudicial, como o inquérito civil, o procedimento de investigação criminal, o procedimento preparatório e o procedimento administrativo.

Mas, como fazer para garantir a instrução de tais procedimentos? Estariam gestores públicos, empresas e cidadãos em geral obrigados a responder ou a atender aos ofícios e indagações ministeriais?

A resposta é, absolutamente, afirmativa, em razão poder-dever requisitório do Ministério Público, que encontra alicerce constitucional nos incisos VI (expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva) e VIII (requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais) do art. 129 da Magna Carta de 1988.

Note-se que as normas constitucionais não utilizam os verbos requerer ou solicitar, mas sim requisitar, que tem o significado jurídico de ordem emanada de autoridade que detém o poder/atribuição de exigir o seu cumprimento, conforme a legislação em vigor. Conforme Vasconcelos (2009, p. 131-132), a requisição ministerial tem um caráter instrumental e é ordem amparada por lei.

Portanto, não se confunde a requisição ministerial com solicitações ou meros requerimentos feitos pelo membro do MP, as quais não detém o caráter formal e impositivo de uma requisição.

Prefere-se tratar da atribuição requisitória como um poder-dever e não apenas como um poder do Ministério Público. É poder porque, como doravante será demonstrado, confere ao membro do MP a prerrogativa de fazer cumprir a requisição não atendida, acarretando consequências para a pessoa destinatária/inadimplente. 

Não obstante, paralelamente, é também um dever, que exige do membro uma atuação equilibrada, razoável, sem excessos, dentro dos parâmetros fixados pelo ordenamento jurídico. Ou seja, um dever de bem atuar, em prol do projeto constitucional delineado para o Ministério Público, na defesa dos interesses da sociedade.

Adota-se aqui a lógica de “dever-poder”, segundo Mello (1998, p. 14-16), a qual deve orientar a Administração Pública, máxime no que se refere à discricionariedade administrativa, preocupação específica do autor, pois, embora externamente a atribuição se revele como um ato de poder, internamente haverá sempre o dever perseguir o interesse público conforme as metas, os direitos e os princípios estabelecidos na Constituição.

3 A legislação infraconstitucional e o tratamento do tema

Além do art. 129, incisos VI e VIII, da Magna Carta, a legislação ordinária também buscou regulamentar o poder-dever discricionário do Ministério Público.

O art. 26, incisos I, II, III e IV, da Lei nº 8.625, de 12.02.1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público dos Estados Federados) trata da requisição ministerial nas seguintes hipóteses:

  • para a instrução de inquérito civil, outras medidas e/ou procedimentos administrativos:
    • requisição de condução coercitiva, com o apoio da Polícia Civil ou Militar, para prova testemunhal ou esclarecimentos, em caso de não comparecimento injustificado;
    • requisição de informações, exames periciais e documentos a autoridades federais, estaduais e municipais, bem como dos órgãos e entidades da administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
    • requisição de informações e documentos a entidades privadas;
  • requisição à autoridade administrativa competente para a instauração de sindicância ou procedimento administrativo cabível;
  • requisição de diligências investigatórias e para a instauração de inquérito policial e/ou de inquérito policial militar.

A Lei Complementar nº 75, de 20.05.1993 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), em seus arts. 7º e 8º, praticamente reitera tais previsões, acrescentando, outrossim, que é cabível requisição para dispor do auxílio de força policial (art. 8º, inciso IX).

No Código de Processo Penal, existe a previsão da requisição ministerial para a instauração de inquérito policial nos crimes de ação pública, conforme o art. 5º, inciso II. Além disso, poderá haver requisição para a autoridade policial ou a outras autoridades/funcionários que possam fornecê-los, a fim de formar os elementos de convicção do Parquet para ajuizar a ação penal pública (arts. 13, inciso II, e 47).

O art. 13-A do CPP, incluído pela Lei nº 13.344/2016, permite o exercício do poder requisitório do MP, na apuração dos crimes de sequestro e cárcere privado, redução a condição análoga à de escravo, tráfico de pessoas, extorsão qualificada e extorsão mediante sequestro (arts. 148, 149, 149-A e 158, § 3º, todos do CPP, respectivamente), além do crime de promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior ilegalmente ou com o fito de obter lucro (art. 239 do ECA). Em tais situações, poderá ser requisitada de quaisquer órgãos do Poder Público ou de empresas da iniciativa privada, dados e informações cadastrais da vítima ou de suspeitos.

A Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, que dispõe sobre o apoio às pessoas com deficiência, sua integração social e institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, tratou do poder requisitório no art. 6º, prevendo a possibilidade de se requisitar, de qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou particular, certidões, informações, exames ou perícias.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13.07.1990), prevê o poder requisitório ministerial no art. 201, incisos VI, VII e XII, nos seguintes termos:

  • condução coercitiva para a instrução de procedimentos investigatórios, em caso de não comparecimento injustificado, inclusive pela Polícia Civil ou Militar;
  • requisição de informações, exames, perícias e documentos de autoridades municipais, estaduais e federais, da Administração direta ou indireta;
  • requisição de informações e documentos a particulares e instituições privadas;
  • requisição de sindicâncias, diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, para apuração de ilícitos ou infrações às normas de proteção à infância e à juventude;
  • requisição da força policial, bem como a colaboração dos serviços médicos, hospitalares, educacionais e de assistência social, públicos ou privados, para o desempenho de suas atribuições.

Perceba-se que a requisição de força policial e a colaboração de serviços, prevista no inciso XII do art. 201 do ECA, é bastante ampla porque inclui serviços médicos, hospitalares, educacionais e de assistência social, públicos ou privados, para contribuir com o Parquet na defesa da infância e juventude. 

No mais, o art. 223 do ECA também prevê que o MP poderá requisitar, de qualquer pessoa, organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a dez dias úteis. Nesse aspecto, tanto o ECA como a Lei nº 7.853/1989 foram além da própria Lei Orgânica Nacional do MP dos Estados Federados (Lei nº 8.625/1993), incluindo expressamente a requisição destinada a pessoas físicas e não apenas a entidades privadas (MAZZILLI, 2001, p. 679).

O Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003) praticamente reitera as disposições do ECA referentes ao poder requisitório, nos seus arts. 74, incisos V, VI e IX, e 92, com algumas diferenças formais, como o prazo de 10 dias, em vez de 10 dias úteis. 

Não obstante, o art. 45 prevê a possibilidade de requisição ou determinação, pelo Ministério Público, para:

  • encaminhamento do idoso à família ou curador, mediante termo de responsabilidade;
  • orientação, apoio e acompanhamento temporários;
  • tratamento de sua saúde, em regime ambulatorial, hospitalar ou domiciliar;
  • inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a usuários dependentes de drogas lícitas ou ilícitas, ao próprio idoso ou à pessoa de sua convivência que lhe cause perturbação;
  • abrigo em entidade;
  • abrigo temporário.

Demais, o art. 50, em seu inciso XIII, prevê que o poder-dever requisitório poderá ser exercido para obter os documentos necessários ao exercício da cidadania àqueles idosos que não os tiverem.

Entende-se, por força do caráter genérico e não restritivo dos incisos VI e IX do art. 129 e do caput do art. 127, da Magna Carta, que as normas infraconstitucionais que tratam da requisição de força policial ou da colaboração de serviços médicos, hospitalares, educacionais e de assistência social, públicos ou privados, aplicam-se não apenas no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente ou do Idoso, mas também em toda e qualquer atividade ministerial que envolva a defesa/tutela de interesses sociais e/ou individuais indisponíveis, máxime quando se tratar de grupos ou pessoas hipossuficientes.

4 Limites formais e cognitivos da requisição ministerial 

4.1 Limites formais

O exercício do poder-dever requisitório não é absoluto, submetendo-se a limites fixados seja pela Constituição, seja pelo próprio ordenamento infraconstitucional.

Ora, o art. 129, inciso VI, da Magna Carta de 1988, dispõe que a apresentação de requisições, para obter informações, deve ser exercida nos procedimentos administrativos de sua competência. Segundo Garcia (2015, p. 519), existe a expressa necessidade de que o poder requisitório seja exercido nos autos de um procedimento administrativo (em sentido amplo) devidamente instaurado e formalizado pelo órgão ministerial, evitando-se requisições informais ou avulsas.

No mesmo caminho, o art. 3º, parágrafo único, da Resolução nº 174, de 04.07.2017, o Conselho Nacional do Ministério Público, veda o exercício do poder-dever requisitório em sede de notícia de fato. Ou seja, deve haver um procedimento investigatório ou administrativo formalmente instaurado para o exercício da relevante atribuição institucional.

Não pode, portanto, um membro do MP, no exercício do seu labor diário, receber uma notícia de fato e, de chofre, requisitar informações, com prazo fixado, ou requisitar o comparecimento de pessoas à sede da Promotoria ou Procuradoria. É preciso que, se for o caso, instaure, formalmente, o pertinente procedimento para, então, poder exercer a atribuição requisitória.

É evidente que a Constituição Federal, no art. 129, inciso VI, ao se referir a “procedimentos administrativos” valeu-se de uma expressão genérica, albergando todos os procedimentos investigatórios a cargo do Parquet. Leia-se: inquérito civil; procedimento preparatório e procedimento de investigação criminal. Inclua-se também o procedimento administrativo em sentido estrito, que não se refere a investigações de pessoas, em função de um ilícito específico, mas tem o objetivo de acompanhar instituições públicas; políticas públicas; o cumprimento de termo de ajustamento de conduta ou mesmo questões envolvendo interesses individuais indisponíveis (art. 8º da Resolução CNMP nº 174/2017).

Outro ponto importante é que o poder requisitório tem natureza decisória e não possui um caráter de mero expediente ou de administração ordinária. Logo, não pode haver delegação, em hipótese alguma, do membro ministerial para o servidor, seja ele efetivo (analista ou técnico) ou comissionado (assessor de membro do MP), ex vi do art. 129, § 4º, c/c o art. 93, inciso XIV, ambos da CF/1988. Lembre-se, ainda, do art. 25, parágrafo único, da Lei nº 8.625/1993, que veda o exercício das funções do Ministério Público a pessoas a ele estranhas, sob pena de nulidade (absoluta) do ato praticado. Assim, não é possível que servidores da instituição assinem “de ordem” ofícios requisitórios, porque se trata de um ato decisório, típico da atividade-fim do Ministério Público.

Justamente por terem caráter decisório, as requisições ministeriais devem ser fundamentadas e acompanhadas de cópia da portaria que instaurou o procedimento ou da indicação precisa do endereço eletrônico oficial em que tal peça esteja disponibilizada (art. 6º, § 10, da Resolução CNMP nº 23, de 17.09.2007, alterada pela Resolução CNMP nº 59, de 27.07.2010).

Quando as requisições tiverem por destinatário o Governador do Estado, os membros do Poder Legislativo e os desembargadores, serão encaminhadas pelo Procurador-Geral de Justiça, o qual é o membro ministerial que tem a atribuição de exercer a função de Ombudsman perante a Chefia dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, nos termos dos arts. 26, § 1º, e 29, inciso VIII, da Lei nº 8.625/1993.

Na mesma linha, quando a requisição ministerial tiver como destinatário o Presidente da República, o Vice-Presidente da República, membro do Congresso Nacional, Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ministro de Estado, Ministro de Tribunal Superior, Ministro do Tribunal de Contas da União ou chefe de missão diplomática de caráter permanente, deverá ser encaminhada e levada a efeito pelo Procurador-Geral da República ou por outro órgão do Ministério Público a quem essa atribuição seja delegada, cabendo às autoridades mencionadas fixar data, hora e local em que puderem ser ouvidas (art. 8º, § 4º, da LC nº 75/1993).

Lembre-se que, no âmbito do processo civil, o art. 454 do CPC de 2015 assegura a diversas autoridades, além das mencionadas no parágrafo anterior (tais como Governador, Prefeito, Deputado Estadual, Desembargadores e Procurador-Geral do Estado/Município), a prerrogativa de inquirição em sua residência ou onde exerçam suas funções. 

Tais previsões, no entanto, podem, atualmente, ser facilmente atendidas e sem maiores controvérsias se se utilizar o depoimento à distância, como o auxílio de programas de informática, como o Google Meet. Até porque  o art. 6º, § 2º, da Resolução CNMP nº 23/2007, admite qualquer prova admitida pelo ordenamento jurídico, a fim de se chegar ao esclarecimento do fato.

Outro limite importante às requisições ministeriais é a necessidade de que seja fixado um prazo razoável e proporcional para o seu cumprimento. É preciso que o membro tenha empatia e procure entender a situação funcional ou fática da autoridade ou pessoa destinatária da requisição. 

Por isso, o art. 8º, § 5º, da LC nº 75/1993, aplicável ao MP dos Estados Federados em razão do art. 80 da Lei nº 8.625/1993, prevê a fixação de um prazo de até dez dias úteis para atendimento da requisição, mas que pode ser prorrogado, mediante solicitação justificada. Defende-se, inclusive, que tal prazo possa até ser, inicialmente, fixado em um período maior que 10 dias úteis, a depender da situação concreta, pois o objetivo da norma é que exista razoabilidade e bom senso do membro do MP, no momento em que fixar o prazo da requisição.

4.2 Limites cognitivos

De outra banda, a requisição ministerial não tem poderes de conhecimento absolutos, devendo respeitar as matérias sujeitas à ordem judicial, como o sigilo bancário, fiscal; de dados telefônicos ou de correspondência/comunicação, em razão do art. 5º, incisos X e XII, da CF/1988. 

O acesso ao cadastro de endereços de operadoras telefônicas estaria albergado no conceito de dados telefônicos? A resposta é negativa, podendo tal matéria ser objeto de requisição ministerial, porque não se relaciona diretamente com uma atividade ou dados obtidos durante uma ligação ou interceptação telefônica. 

Além disso, o art. 15 da Lei nº 12.850, de 2 agosto de 2013, que trata de organizações criminosas, permite que o Ministério Público tenha acesso direto aos dados cadastrais da parte investigada, atinente à qualificação pessoal, à filiação e ao endereço mantidos pela Justiça Eleitoral, empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e administradoras de cartão de crédito. Da mesma forma, o art. 16, da referida lei, estende a atribuição requisitória para o conhecimento de bancos de dados de reservas e registros de viagens de empresas de transporte. Sobre o tema, há recente decisão do STF, nos autos do HC 139749 (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2020).

Mencione-se, ainda, que o art. 7º, inciso III, da Resolução CNMP nº 181, de 7 de agosto de 2017, alterado pela Resolução CNMP nº 183/2018, que trata do procedimento investigatório criminal, prevê que poder-dever requisitório pode ser utilizado para obter informações e documentos de entidades privadas, inclusive de natureza cadastral.

Com relação ao sigilo bancário, não existe óbice quando se tratar do acesso de contas referentes a entidades públicas (art. 31, § 3º, da CF/1988, c/c a decisão do STF no MS 21.729-4/DF, em 05.10.1995). 

Todavia, quando se tratar de dados referentes a particulares, deve haver prévia ordem judicial, conforme a teleologia dos arts. 1º, § 4º, 3º e 9º da LC nº 105/2001. Há respeitável entendimento em sentido contrário (MARTINS JUNIOR, 2015, p. 129), defendendo que a LC nº 105/2001 não revogou o art. 8º, § 2º, da LC nº 75/1993, mas tal posição não pode prevalecer, considerando que o STF, reiteradamente, vem decidindo em favor da necessidade de ordem judicial para tanto.

Porém, em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal concluiu que, mesmo envolvendo dados de pessoas privadas, quando se tratar de relatórios de unidades de inteligências financeira e até procedimentos fiscalizatórios da Receita Federal, que envolvam o lançamento de tributos, é possível haver o compartilhamento de dados com o Ministério Público e outros órgãos de persecução penal, independentemente de ordem judicial. 

A propósito, consulte-se a tese de repercussão geral, referente ao tema nº 990, elaborada nos autos do RE 1055941, em decisão de 4/12/2019 (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2019):

I – É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional; 

II – O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.

Ora, a conclusão que se chega a respeito é que, referente a esses assuntos, observados os contornos formais da tese de repercussão geral nº 990, poderá haver requisição ministerial a respeito de relatórios de unidades financeiras e dados fiscais referentes a procedimento investigatório instaurado no âmbito da Receita Federal do Brasil ou órgão fiscal equivalente.

Afinal, a 1ª Turma do STF, nos autos do RE 1058429 AgR, já decidiu que (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2018): 

(…)Se a legislação de regência impositivamente determina que o COAF “comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito” (art. 15 da Lei 9.613/1998), seria contraditório impedir o Ministério Público de solicitar ao COAF informações por esses mesmos motivos.

Por fim, lembre-se, conforme o § 2º do art. 26 da Lei nº 8.625/1993, o membro do Ministério Público será responsável pelo uso indevido das informações e documentos que requisitar, inclusive nas hipóteses legais de sigilo.

5 Princípio do dever de colaboração com o Ministério Público. Consequências do descumprimento da requisição ministerial

O princípio do dever de colaboração para com o Ministério Público nada mais é do que a obrigação das pessoas físicas e jurídicas do ordenamento jurídico, de natureza pública ou privada, de colaborarem com a atividade investigatória e resolutiva do MP brasileiro, máxime quando atuar em defesa e da concretização dos direitos fundamentais assegurados na Constituição, na função de Ombudsman do Povo (art. 129, inciso II, da CF/1988).

A propósito, convém mencionar que a Constituição de Portugal consagra o princípio do dever de colaboração com o Provedor de Justiça (Ombudsman, em português), no art. 23, item 4, ao dispor que os órgãos e agentes da Administração Pública cooperam com o Provedor de Justiça na realização da sua missão. 

Como destaca Costa (2015), tal dever de colaboração ressalva apenas as restrições legais respeitantes ao segredo de justiça ou ao interesse superior do Estado em questões referentes à segurança, à defesa ou às relações internacionais. Lembra, ainda, que o Estatuto do Provedor prevê que a recusa não justificada do dever de cooperação constitui crime de desobediência, sem prejuízo do procedimento disciplinar respectivo.

No ordenamento brasileiro, o descumprimento não justificado da requisição ministerial poderá trazer consequências de ordem penal e de improbidade administrativa para a parte inadimplente, cuja conduta seja considerada dolosa.

O art. 10 da Lei 7.347/1985 (Lei da ação civil pública) dispõe constituir crime, punido com pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa, a recusa, o retardamento ou a omissão de dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil, quando requisitados pelo Ministério Público. No dizer de Decomain (2011, p. 387-388), a requisição ministerial é ordem legal, emanada de autoridade pública, e a abstenção imotivada diante dela gera a prática de crime.

O art. 8º, inciso VI, da Lei nº 7.853/1989 (defesa da pessoa deficiente), alterado pela Lei nº 13.146/2015, considera crime, punível com reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa, recusar, retardar ou omitir dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil pública objeto desta Lei, quando requisitados.

O art. 100, inciso V, do Estatuto do Idoso, na mesma linha, considera crime, punível com reclusão de 06 (seis) meses a 1 (um) ano, recusar, retardar ou omitir dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil pública, quando requisitados pelo Ministério Público.

O art. 236 do Estatuto da Criança e do Adolescente é um pouco mais genérico, mas também consagra o dever de colaboração com o MP, ao dispor que é crime, punível com detenção de seis meses a dois anos, impedir ou embaraçar a ação de autoridade judiciária, membro do Conselho Tutelar ou representante do Ministério Público, no exercício de função prevista na Lei nº 8.069/1990.

Em tese, a negativa dolosa e não justificada, para cumprir requisição ministerial, poderá também configurar ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da Administração Pública, quando o inadimplente for servidor público, pela prática de ato visando fim proibido em lei ou em razão retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício (art. 11, caput e incisos I e II, da Lei nº 8.429/1992).

A própria condução coercitiva, com o apoio da Polícia Civil ou Militar, em caso de não comparecimento injustificado para depor ou prestar esclarecimentos, em procedimento instaurado pelo MP, prevista no art. 26, inciso I, a, da Lei nº 8.625/1993, também é uma consagração do princípio do dever de colaboração para com o MP. Em caso de descumprimento doloso, pode até configurar o crime de prevaricação ou desobediência (SOUZA, 2001, p. 123), conforme os arts. 319 e 330 do Código Penal, respectivamente.

O art. 26, § 3º, da Lei nº 8.625/1993, dispõe que serão cumpridas gratuitamente as requisições feitas pelo Ministério Público às autoridades, órgãos e entidades da Administração Pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Acrescente-se, ainda, a falta ao trabalho, em virtude de atendimento à notificação ou requisição ministerial, não autoriza desconto de vencimentos ou salário, considerando-se de efetivo exercício, para todos os efeitos, mediante comprovação escrita do membro do MP (art. 26, § 4º, da Lei 8.625/1993).

É evidente que todos esses instrumentos deverão ser utilizados com moderação e equilíbrio pelo membro do Ministério Público, devendo a pessoa somente ser processada ou responder a procedimento investigatório por crime ou ato de improbidade administrativa, em caso de indícios suficientes da vontade consciente de não colaborar com a atividade ministerial. Tal situação subjetiva haverá de ser aferida em cada caso concreto, como na negativa em cumprir, de forma reiterada, requisições ministeriais. Em razão disso, é importante que os ofícios requisitórios nomeiem a autoridade ou a pessoa destinatária, não bastando a mera indicação do cargo ou função, a fim de que a responsabilidade subjetiva pela violação ao princípio da colaboração com o MP fique devidamente configurada.

6 Conclusões

  • As requisições do Ministério Público equivalem à ordem e tem fundamento constitucional, conforme o art. 129, incisos VI e VIII, da Magna Carta de 1988, além de outras normas legais, como o art. 26 da Lei nº 8.625/1993 e os arts. 7º e 8º da LC nº 75/1993.
  • A atribuição requisitória deve ser entendida como um poder-dever e não apenas como um poder do Ministério Público. Afinal, confere ao membro do MP a prerrogativa de fazer cumprir a requisição não atendida, acarretando consequências para a pessoa destinatária inadimplente com o cumprimento. Paralelamente, a atribuição requisitória é também um dever, que exige do membro uma atuação equilibrada, razoável, sem excessos, dentro dos parâmetros fixados pelo ordenamento jurídico. Trata-se de um poder-dever para bem atuar, em prol do projeto constitucional delineado para o Ministério Público, legitimado universal para a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
  • O poder-dever requisitório do Ministério Público não é absoluto e encontra limites nas matérias sujeitas à proteção judicial, nos termos do art. 5º, incisos X e XII da CF/1988. 
    • Não obstante, é possível requisição ministerial para ter acesso direto a cadastros de endereços de empresas públicas e particulares (arts. 15 e 16 da Lei nº 12.850/2013 e art. 7º, inciso III, da Resolução CNMP nº 181/2017, alterada pela alterado pela Resolução CNMP nº 183/2018), bem como a relatórios de órgãos de inteligência financeira ou à íntegra de procedimento fiscalizatório da Receita Federal ou órgãos fiscais equivalentes, observados os contornos formais da tese/tema de repercussão geral nº 990, do Supremo Tribunal Federal.
  • Em razão do caráter genérico e não restritivo dos arts. 127, caput, e 129, incisos VI e IX, da CF/1988, as normas infraconstitucionais que tratam da requisição de força policial ou da colaboração de serviços médicos, hospitalares, educacionais e de assistência social, públicos ou privados, aplicam-se não apenas no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente ou do Estatuto do Idoso, mas também em toda e qualquer atividade ministerial que envolva a defesa/tutela de interesses sociais e/ou individuais indisponíveis, máxime quando se tratar de grupos ou pessoas hipossuficientes.
  • O poder-dever requisitório tem natureza decisória e não possui um caráter de mero expediente ou de administração ordinária. Destarte, não pode haver delegação, em hipótese alguma, do membro ministerial para o servidor, seja ele efetivo (analista ou técnico) ou comissionado (assessor de membro do MP), sob pena de nulidade absoluta do ato, ex vi do art. 129, § 4º, c/c o art. 93, inciso XIV, ambos da CF/1988, e do art. 25, parágrafo único, da Lei nº 8.625/1993.
  • O princípio do dever de colaboração com o Ministério Público trata da obrigação das pessoas físicas e jurídicas do ordenamento jurídico, públicas ou privadas, de colaborarem com a atividade investigatória e resolutiva do Parquet brasileiro, máxime quando este atuar em defesa e da concretização dos direitos fundamentais assegurados na Constituição, na função de Ombudsman do Povo (art. 129, inciso II, da CF/1988), podendo gerar consequências no âmbito criminal e de improbidade administrativa para o inadimplente doloso.

REFERÊNCIAS

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