Ministério Público: resolutividade como fator de proteção aos direitos fundamentais. Uma análise sob o viés garantista.

Artigo de Jamerson Serafim de Moura
Graduado em Direito pela Faculdade Marista do Recife; pós-graduado em Direito Público pelo ATF-Cursos Jurídicos, com certificação pela Faculdade Maurício de Nassau; Servidor à disposição do MPPE há 14 (catorze) anos; aprovado no Concurso Público para Promotor de Justiça do Estado de Sergipe; nas fases finais do Concurso Público para Promotor de Justiça do Estado do Pará. E-mail: jserafim@mppe.mp.br

Resumo

Análise das funções do Ministério Público, elencadas no plano constitucional, tendo por base o seu papel como agente garantidor do exercício de direitos fundamentais. A importância da atuação resolutiva para efetivação dos direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, além do abandono da visão limitadora do órgão ministerial unicamente como órgão de acusação.

 

Palavras-chave: Ministério Público. Resolutividade. Direitos fundamentais. Garantismo.

 

Introdução

          O presente artigo tem como objetivo analisar o papel constitucional do Ministério Público na efetivação dos direitos fundamentais; a importância de um órgão ministerial resolutivo, que deve atuar como garantidor de direitos, efetivo fiscal da ordem jurídica, e não como um mero órgão de acusação, engessado pelo pragmatismo acusatório, que reduz a sua existência a uma persecução penal monocular, incapaz de perceber que a repressão, embora devida, não é a razão primordial de sua existência. Para tanto, serão analisadas as normas constitucionais que regem a matéria, bem como a legislação infraconstitucional correlata, entendimento dos Tribunais Superiores sobre os papéis constitucionais e posicionamento da doutrina contemporânea sobre o papel o Ministério Público e a defesa de direitos fundamentais de cada indivíduo, demonstrando, ao final, a grande importância que tem o Ministério Público Brasileiro na efetivação dos direitos fundamentais. Adotou-se na pesquisa a metodologia de referencial bibliográfico, utilizando-se de livros, jurisprudência e legislação que versam sobre o tema, além da análise de cunho prático por parte do autor, que já dedica 14 (catorze) anos de sua vida ao trabalho no Ministério Público, assessorando diversos membros ao longo de sua trajetória no Ministério Público do Estado de Pernambuco.

 

  1. O Ministério Público na história.

Não há uma precisão histórica sobre o surgimento do Ministério Público, no entanto, em uma breve síntese, de forma não unânime, a doutrina histórica atribui sua origem aos franceses, em razão da figura que era denominada de “Procurador do Rei”.

A origem do Ministério Público, mais precisa da instituição, vem do direito francês, na figura dos “procureur du roi” (procuradores do rei), nascendo e formando-se no judiciário francês. Na França, era vedado que os Procuradores do Rei patrocinassem quaisquer outros interesses que não os da coroa, devendo prestar o mesmo juramento dos juízes (RANGEL, 2009, p. 117).

 

Segundo Rangel (2009, p. 118), o Ministério Público era uma verdadeira magistratura diversa da dos julgadores. Daqui também que advém o termo Parquet, pois os Procuradores do Rei dirigiam-se aos juízes de mesmo assoalho (Parquet).

Sua principal função era atuar como acusador nos casos criminais, protegendo os interesses do Estado e da comunidade. O Ministério Público era responsável por reunir evidências, apresentar acusações e buscar a condenação dos infratores da lei. Essa função era essencial para assegurar que a justiça prevalecesse, mesmo em um cenário onde o poder político muitas vezes influenciava os tribunais.

Com o tempo, à medida que as sociedades evoluíram e os sistemas legais se desenvolveram, o papel do Ministério Público expandiu-se. Além da atuação nos casos criminais, sua missão passou a incluir a proteção dos interesses públicos, a defesa dos direitos coletivos e individuais, e a fiscalização do cumprimento das leis em diversos setores da sociedade.

No Brasil, o Ministério Público tem suas raízes históricas nas influências do sistema jurídico português e na evolução do sistema legal brasileiro ao longo dos séculos. Sua origem remonta ao período colonial[2], mas foi formalizado com a Constituição Imperial de 1824.

Durante o período colonial, a figura do “Procurador do Rei” existia em algumas regiões, exercendo funções judiciais em nome da Coroa Portuguesa. No entanto, foi com a chegada da família real ao Brasil em 1808 que houve uma reestruturação do sistema judiciário. O Código de Processo Criminal de 1832, que seguia o modelo português, trouxe disposições sobre a atuação de promotores públicos.

Nomeados pelo Imperador no município da Corte, e pelos presidentes nas províncias, por tempo indefinido; e servirão enquanto convier a sua conservação ao serviço público, sendo, caso contrário, indistintamente demitidos pelo Imperador, ou pelos presidentes das províncias nas mesmas províncias (MAZZILLI, 1991, p. 6)

 

O ponto crucial para a institucionalização do Ministério Público no Brasil ocorreu com a promulgação da Constituição Imperial de 1824. Ela estabeleceu, em seu artigo 48, que “no Juizo dos crimes, cuja accusação não pertence á Camara dos Deputados, accusará o Procurador da Corôa, e Soberania Nacional.” . No entanto, essa primeira instituição ministerial foi pouco desenvolvida e sofreu com mudanças políticas e constitucionais ao longo do século XIX.

Foi somente com a Constituição de 1891, que marcou o início da República no Brasil, que o Ministério Público ganhou uma estrutura mais sólida e independente, embora ainda sem uma previsão expressa.

Somente com a Constituição de 1934 é que há uma previsão expressa ao órgão ministerial, dispondo, no capítulo “Dos órgãos de cooperação”, sobre a institucionaliza o Ministério Público, bem como a previsão de lei federal sobre a organização do Ministério Público da União.

Desde então, o Ministério Público tem passado por reformas e ajustes para se adequar às transformações políticas e sociais no Brasil. Sua atuação tornou-se fundamental na defesa dos direitos individuais e coletivos, na promoção da justiça e no combate à corrupção e criminalidade, missão esta consagrada com a promulgação da Constituição da República de 1988.

Hoje, o Ministério Público brasileiro é uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado (art. 127 da CRFB/1988), presente em diferentes esferas (federal e estadual), cabendo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. É sobre essa instituição constitucionalmente construída que iremos nos debruçar, analisando o seu papel e os desafios para a efetivação dos direitos fundamentais.

 

  1. Direitos fundamentais

                    A Constituição da República, no Título II, traz, como gênero, os denominados direitos e garantias fundamentais, subdividindo-os em grupos, a saber, direitos e deveres individuais e coletivos; direitos sociais; direitos de nacionalidade; direitos políticos e partidos políticos.

Não obstante a Carta Magna dispor sobre os direitos fundamentais no “Título II”, é pacífico na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que os direitos fundamentais estão espalhados ao longo da constituição, podendo ser encontrados em outros títulos.

Finalmente, o que são os direitos fundamentais?

Felipe Augusto dos Santos Nascimento[3], no Livro Curso de Direitos Fundamentais, traz uma conceituação objetiva e clara:

 

Direitos fundamentais são os direitos mais básicos do ser humano, essenciais para a garantia de uma vida com dignidade, previstos em uma dada Constituição, temporal e territorialmente especificada, distintos das demais normas constitucionais por gozar de aspectos formais e materiais caracterizadores de sua fundamentalidade. Os direitos fundamentais são, assim, um determinado grupo de direitos previstos na Constituição que são considerados os mais básicos do ser humano. São os direitos essenciais, basilares, prioritários, sem os quais não se pode garantir a dignidade do próprio ser humano. Assim, afirma-se que a dignidade da pessoa humana é o fundamento ético do qual surge a noção de direitos fundamentais. (NASCIMENTO, 2022, p.13).

 

Assim, temos que direitos fundamentais são aqueles mais essenciais da pessoa, indispensáveis para garantir-lhe uma existência digna, havendo, assim, diante da consideração de que não existem direitos absolutos, a compreensão de que há um núcleo intangível desses direitos fundamentais, em nome da proteção à dignidade da pessoa humana.

O Professor Virgílio Afonso da Silva[4] afirma:

 

Em decisão ainda mais recente, o Min. Gilmar Mendes, ao tratar do embate entre a individualização da pena, garantida pelo disposto no art. 5º, XLVI, da constituição, e a previsão do art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/1990, que exige que os condenados pelos crimes chamados “hediondos” cumpram toda a pena em regime fechado, afirmou: “O núcleo essencial desse direito, [à individualização da pena] em relação aos crimes hediondos, resta completamente afetado. Na espécie, é certo que a forma eleita pelo legislador elimina toda e qualquer possibilidade de progressão de regime e, por conseguinte, transforma a idéia de individualização enquanto aplicação da pena em razão de situações concretas em maculatura” . Mesmo quando o STF não fala, expressamente, em “conteúdo essencial” ou “núcleo essencial” a ideia é utilizada em um sem-número de julgados; quando alguns votos ressaltam, por exemplo, que “na ponderação de valores contrapostos, (…) a restrição imposta nunca pode chegar à inviabilização de um deles”; ou que “( … ) a garantia constitucional da ampla defesa tem, por força direta da Constituição, um conteúdo mínimo essencial, que independe da interpretação da lei ordinária que a discipline”; ou quando se fala em um direito a um “mínimo existencial”. (SILVA, 2010, p. 22)

A doutrina[5] também aborda a evolução dos direitos fundamentais ao longo da história, tratando-a como dimensões de tais direitos:

 

Dentre vários critérios, costuma-se classificar os direitos fundamentais em gerações de direitos, ou, como prefere a doutrina mais atual, “dimensões” dos direitos fundamentais, por entender que uma nova “dimensão” não abandonaria as conquistas da “dimensão” anterior e, assim, esta expressão se mostraria mais

adequada no sentido de proibição de evolução reacionária. (LENZA, 2022, p. 1923)

No que diz respeito à titularidade dos direitos fundamentais, por todo o exposto, é possível afirmar que todos os brasileiros, natos ou naturalizados, bem como os estrangeiros, mesmo os que não possuam residência no Brasil, são titulares de direitos fundamentais.

Segundo Lenza (2022, p.1933), “a doutrina e o STF vêm acrescentando, mediante interpretação sistemática, os estrangeiros não residentes (por exemplo, turistas), os apátridas e as pessoas jurídicas (inclusive as de direito público).

                    É importante também destacar que, nos termos exatos do texto constitucional (art. 5º, §1º, CFRB), as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Para Luís Virgílio Afonso da Silva[6], a aplicação imediata prevista na Carta Magna indica a completude da norma definidora de direitos e garantias fundamentais, o que a tornaria pronta para a aplicação nos casos concretos, regendo a matéria relacionada.

 

(…) dotadas de todos os meios e elementos necessários à sua pronta incidência aos fatos, situações, condutas ou comportamentos que elas regulam. A regra é que as normas definidoras de direitos e garantias individuais (direitos de 1.ª dimensão, acrescente-se) sejam de aplicabilidade imediata . (SILVA, 2005, p. 408)

Dessa forma, é possível dizer que direitos fundamentais são aqueles essenciais à preservação da dignidade da pessoa humana; todas pessoas físicas são titulares desses direitos e as normas que definem tais direitos têm aplicação imediata.

 

  • Direitos Fundamentais e sua relação com os Direitos Humanos.

O tema, apesar de ser simples, não é assimilado com facilidade por grande parte das pessoas, inclusive por operadores do Direito, que nunca se viram diante de tal questionamento e não conseguem, de forma imediata, estabelecer um relação entre tais conceitos, seja apontando semelhanças ou diferenças.

Rafael Barretto[7] define os direitos humanos e faz uma relação com os direitos fundamentais, elencando ambos como um conjunto de direitos que materializam a dignidade humana:

 

É possível definir direitos humanos como conjunto de direitos que materializam a dignidade humana; direitos básicos, imprescindíveis para a concretização da dignidade humana. Ocorre que essa definição também pode ser aplicada à expressão “direitos fundamentais”, que igualmente são direitos imprescindíveis para materialização da dignidade humana, d aí cabendo perquirir se haveria alguma diferença entre direitos fundamentais e direitos humanos. Pode-se dizer que, ontologicamente, inexiste diferença, pois ambos designam, em suas essências, direitos que materializam a dignidade da pessoa humana. (BARRETO, 2019, pág. 23).

 

Para BARRETO, não obstante a profunda semelhança entre direitos humanos e direitos fundamentais, é possível diferenciá-los no plano de positivação (2019, pág.23).

De forma muito simples, podemos dizer que os Direitos Fundamentais são os Direitos Humanos positivados na Constituição de um determinado Estado (país). Ou seja, há uma íntima relação entre os Direitos Fundamentais e os Direitos Humanos, sendo, os primeiros, espécie destes últimos; ambos objetivando a materialização da dignidade da pessoa humana.

Assim sendo, os tão falados Direitos Humanos, incompreendidos por nossa sociedade, são direitos que todos os seres humanos precisam ter garantidos, estando, inclusive, presentes na ordem constitucional vigente no Brasil. Logo, uma atuação midiática de alguns veículos de comunicação, que tentam atrelar a existência de Direitos Humanos ao único objetivo de proteger aquelas pessoas que cometeram crimes, está totalmente equivocada.

 

  1. O Ministério Público como Promotor dos Direitos Fundamentais

Nos temos do art. 127 da Constituição da República, o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Tal previsão é praticamente repetida no art. 176 do Código de Processo Civil, porém, no art. 179 daquele diploma legal, foi trazida a expressão “fiscal da ordem jurídica”, referindo-se à atuação do Ministério Público.

No exercício de seu mister, o órgão ministerial, na qualidade de fiscal da ordem jurídica, age como guardião da legalidade, garantindo que as leis sejam aplicadas corretamente e que os direitos fundamentais sejam respeitados e garantidos, nos termos constitucionais.

Também é função do Ministério Público proteger os mais vulneráveis da sociedade, como crianças, idosos, pessoas com deficiência, vítimas de violência doméstica, entre outros. Essa atuação visa garantir que esses grupos sejam amparados e que seus direitos sejam preservados, atuando em prol da igualdade e da justiça social, sem prejuízo da atuação de outros agentes protetivos, a exemplo da Defensoria Pública.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu, inclusive, que é atribuição do Ministério Público participar de Conselhos da Administração Pública:

A participação em Conselhos da Administração Pública – órgãos com atribuição legal para se manifestar, em caráter deliberativo ou consultivo, sobre a formulação de políticas públicas de interesse social – é compatível com as atribuições previstas pela Constituição Federal e pela Lei 8.625/1993 para o Ministério Público, desde que: (a) a representação do Ministério Público seja exercida por membro nato, indicado pelo Procurador-Geral de Justiça; (b) a participação desse membro ocorra a título de exercício das atribuições institucionais do Ministério Público; e (c) vedada a percepção de remuneração adicional. 4. Ação Direta julgada parcialmente procedente. (ADI 3161, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 13/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-294 DIVULG 16-12-2020 PUBLIC 17-12-2020).

 

Para o STJ, a participação do Ministério Público na formulação de políticas públicas de interesse social é compatível com as funções ministeriais, sendo uma verdadeira manifestação do exercício da função, visto que fica vedada a percepção de qualquer adicional. Dessa forma, o STJ manifestou a importância da participação do Ministério Público na formulação das políticas públicas, sendo esta participação uma verdadeira manifestação de resolutividade do órgão, que atuará desde a formulação das políticas de interesse social.

O entendimento esposado pela Corte Superior é uma clara manifestação da concepção de que uma atuação resolutiva é intrínseca a natureza do Parquet.

 

  1. Resolutividade: o que é?

 

                    Resolutividade, em um sentido popular para a palavra, está relacionada à capacidade de resolver ou finalizar um processo, concluindo a problemática de forma que pode ser considerada satisfatória para o caso concreto.

No âmbito jurídico, em especial do Ministério Público Brasileiro, muito se tem falado em resolutividade da atuação ministerial, tendo o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), através da Recomendação nº 54-CNMP[8], trazido o seguinte conceito:

 

Para os fins desta recomendação, entende-se por atuação resolutiva aquela por meio da qual o membro, no âmbito de suas atribuições, contribui decisivamente para prevenir ou solucionar, de modo efetivo, o conflito, problema ou a controvérsia envolvendo a concretização de direitos ou interesses para cuja defesa e proteção é legitimado o Ministério Público, bem como para prevenir, inibir ou reparar adequadamente a lesão ou ameaça a esses direitos ou interesses e efetivar as sanções aplicadas judicialmente em face dos correspondentes ilícitos, assegurando-lhes a máxima efetividade possível por meio do uso regular dos instrumentos jurídicos que lhe são disponibilizados para a resolução extrajudicial ou judicial dessas situações.

 

Pelos próprios termos fixados pelo CNMP, é possível perceber a importância de uma atuação ministerial resolutiva, o que deveria ser o exercício regular da atividade ministerial, visto que a definição trazida na Recomendação, ainda que de forma implícita, já é disposta no art. 127 da Constituição da República, bem como permeia toda a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público.[9]

Nenhum dos órgãos existentes na República Federativa do Brasil possui uma atuação tão ampla como o Ministério Público. Sem demérito aos demais atores do Estado Democrático de Direitos, mas, nenhum deles, no âmbito de sua importância, possui atuação tão impactante na sociedade quanto o Ministério Público.

O órgão ministerial, em sua atuação, transita entre os demais agentes, apresentando uma variedade de possibilidades de intervenções que impactam, de forma direta, a existência da sociedade constituída, fazendo valer o pacto social nos termos pensados por Rosseau[10], trazendo garantia de exercício de direitos e proteção de interesses juridicamente tutelados.

O Ministério Público atua tanto como garantidor de direitos, zelando pelo seu exercício, bem como atua como órgão repressor da violação dessas garantias, buscando a punição do infrator[11], sem deixar de zelar pelo exercício dos direitos que o próprio agente violador possui, impedindo que o Estado, representado como o gigantesco Leviatã[12], abuse de seu puder punitivo, ultrapassando os limites da reprovação e prevenção do crime[13], gerando uma verdadeira vingança estatal.

A atuação ministerial consegue transformar realidades, possibilitando o exercício de direitos como saúde, educação, lazer, segurança pública, entre outros. No entanto, tal prerrogativa conferida ao Ministério Público, não está livre de dificuldades, de obstáculos no seu exercício enquanto instituição una[14].

Um dos maiores entraves à atuação do órgão ministerial, percebidos durante os anos a serviço do Ministério Público do Estado de Pernambuco, está na falta de compreensão, por parte de alguns membros, do valor e da importância de  uma atuação resolutiva, que busca sanar violações a direitos fundamentais com uma presença ministerial marcante no seio social, intervindo, de forma preventiva, na fiscalização da atuação do Poder Público, zelando pelo acesso da população aos direitos mais básicos da pessoa humana.

A atuação resolutiva demandará, por certo, um esforço um pouco maior por parte do órgão de execução, que precisará mediar interesses, pacificar conflitos, combater irregularidades, abrindo mão de uma posição demandista, onde se percebe a problemática e logo se transfere a responsabilidade para solução ao moroso Poder Judiciário, através de uma Petição Inicial.

Não que o ajuizamento de ações tenha se tornado obsoleto, longe disso! O Poder Judiciário é dotado de grande importância na atualidade, sendo agente indispensável no Estado de Direito, principalmente quando se tem em mente a teoria de freios e contrapesos (em oposição a absoluta separação dos poderes de Montesquieu[15]), onde um Poder da República impõe limites ao exercício arbitrário de outro poder republicano, entretanto, é inegável que o nosso sistema jurídico, não obstante o desejo de conferir celeridade ao Judiciário está muito longe disso.

Uma atuação extrajudicial resolutiva por parte dos Promotores e Procuradores de Justiça, tendo por base o órgão estadual, pode, inclusive, contribuir para o desafogamento do Poder Judiciário, evitando que chegue a apreciação judicial casos que poderiam ser solucionados pelas próprias partes após uma mediação ministerial, o que, por consequência, contribuiria para uma tramitação processual mais célere, sendo garantida uma verdadeira duração razoável do processo.

A grande dificuldade de se ter uma atuação dessa natureza, está no fato de que o membro do Ministério Público, por falta de estrutura para o trabalho, falta de compreensão ou até mesmo falta de vontade, precisa estar disposto a sair de seu gabinete para, como fiscal da ordem jurídica, conhecer a realidade da cidade onde desempenha suas funções.

Não é muito difícil de encontrarmos membros que enxergam unicamente uma função acusatória monocular, sem se dar conta de que o crime possui contextos sociológicos[16] e que o Ministério Público não só tem a possibilidade, mas tem o dever de intervir na garantia do exercício de direitos fundamentais aos integrantes das camadas sociais mais baixas. São pessoas que não se reciclaram durante a carreira, trancaram-se dentro de uma bolha e encastelaram-se em seus aposentos, negligenciando a importantíssima função ministerial, tornando o órgão um mero acusador, preocupado simplesmente em abarrotar as unidades prisionais, diga-se de passagem sem o mínimo de proteção à dignidade da pessoa humana, acreditando que está prestando um serviço de excelência.

 

  1. Desafios do Ministério Público na efetivação dos direitos fundamentais

 

Inúmeros são os desafios enfrentados pelo Ministério Público para efetivação dos direitos fundamentais. O membro, em sua atuação diária, enfrentará problemas de diversas ordens, desde falta de estrutura física e de pessoal, até o confronto com poderes inimigos do Estado, dentre tantos outros que se apresentam no cotidiano ministerial.

Garantir o exercício de direitos fundamentais não é uma tarefa fácil, exige do órgão de proteção um grande esforço e comprometimento social. Lidar com violações, por vezes intencionais, dos direitos mais básicos da pessoa humana, demanda uma atuação pontual, técnica e eficiente por parte daquele a que foi atribuída a função de fiscal da ordem jurídica.

Diante da constatação de violação a direitos, o presentante ministerial deverá sopesar os valores em conflito e ponderar qual atuação jurídica, dentre as diversas possíveis, que melhor protegerá o interesse tutelado, levando-se em consideração, inclusive, o eventual decurso do tempo para efetiva proteção, pois este pode fulminar o direito, tornando inócua qualquer intervenção.

Não é incomum que Promotores de Justiça se deparem, nas Comarcas de sua lotação, com um verdadeiro sucateamento da educação, da saúde, da proteção à infância e juventude, dentre tantas outras violações de direitos, geralmente da população mais pobre e menos instruída.

A falta de investimento em áreas como saúde e educação, não raro, é um projeto de manutenção de poder[17] por aqueles que foram democraticamente eleitos pelo povo, que buscam manter seus eleitores dependentes das migalhas que distribuem em época eleitoral, no afã de granjear mais uma vez o voto do eleitor.

Diante da falta de vontade política em garantir direitos básicos à população, ajuizar uma Ação Civil Pública[18] buscando que o Poder Público cumpra com suas obrigações, pode fazer, diante do rito a ser cumprido, com que a situação de violação se prolongue ainda mais, tornando ainda mais danosa a vioalção, razão pela qual, a busca ao Poder Judiciário deve ser a última opção.

Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, ganhou destaque a denominada “Justiça Multiportas”, que busca a solução de conflitos por outros meios, que não seja unicamente o Poder Judiciário, tema que foi muito debatido pela doutrina:

O Direito Processual passa por uma transformação paradigmática. Além da releitura de seus institutos pelo viés constitucional, o que no caso brasileiro se revela na conformação à ideologia estabelecida pela Constituição Federal de 1988 desde o primeiro artigo do CPC/2015 (Art. 1°), as recentes mudanças econômicas, sociais, jurídicas e legislativas aceleraram a transformação do processo civil contemporâneo em um processo não só judicial.

A justiça Multiportas é a expressão de uma nova arquitetura para a tutela dos direitos. (ZANETI e NAVARRO. 2017. p.4).

Para ZANETI e NAVARRO, a “Justiça Multiportas” é fruto de necessárias intervenções estatais, nos moldes republicanos, que, através de diversos estudos, buscaram soluções para a sobrecarga do Poder Judiciário:

A incontida litigiosidade que sobrecarrega o Poder judiciário deu causa no Brasil a diversos estudos e iniciativas em busca de soluções que trouxessem novas perspectivas para a prestação jurisdicional. Os Pactos Republicanos de Estado por um Sistema de Justiça mais Ágil e Efetivo traduziram as intenções de todos os poderes da República neste desiderato, consolidaram a política nacional de estímulo à solução consensual dos conflitos (Art. 3°, § 2° e 3°, CPC/2015; Resolução CNMP n° 118/2014; Resolução CNJ n° 125/2010). (2017. p.05).

O sistema multiportas estimula uma atuação mais presentes das parte envolvidas e dos órgãos encarregados da proteção a determinados interesses. Tal fato vem corroborar com a possibilidade/necessidade de um Ministério Público resolutivo, que contribui decisivamente na solução de conflitos e, principalmente, na prevenção, especialmente no âmbito do exercício de direitos fundamentais, visto que estão intimamente ligados à dignidade da pessoa humana.

Uma atuação ministerial em casos de evidente omissão do Poder Público pode ir além da repressão de eventuais ilegalidades existentes, podendo o agente ministerial realizar intervenções extrajudiciais, como reuniões, vistorias, inspeções, requisições e todas as articulações necessárias para a célere garantia do exercício de tais direitos indisponíveis, sem prejuízo também firmar termos de ajustamento de conduta (TAC), além de medidas educativas para conscientizar a população do exercício de seus direitos.

É importante também ressaltar que uma intervenção ministerial preventiva, além de garantir uma celeridade na resolução da problemática, garantirá que as medidas implementadas tenham um caráter mais duradouro, visto que não foram impostas, mas sim criadas conjuntamente entre os agentes envolvidos e o Ministério Público.

Além de toda a problemática externa, cultural e política que dificulta a implementação dos direitos fundamentais, merece destaque o fato de que alguns membros do Parquet conservam uma postura meramente acusatória, esquecendo-se de que a figura de órgão de acusação é só uma das faces da instituição, que possui um nível constitucional de responsabilidade muito mais profundo.

Não é difícil encontrar Promotores de Justiça que, olvidando a responsabilidade institucional com a garantia de direitos fundamentais, levantam, cegamente, bandeiras de combate à criminalidade, esquecendo-se que sua atuação preventiva foi pífia, deixando de zelar por condições dignas de existência da população na base, fazendo com que aquelas pessoas sejam inseridas no submundo do crime.

Garantir acesso à educação, saúde, lazer, alimentação, planejamento familiar, profissionalização, entre outros direitos, conferirá novas perspectivas de vida para a população, que não terá o crime como único meio de sobrevivência.

Por óbvio o combate à criminalidade é demasiadamente importante, sendo o ponto de destaque do órgão ministerial, que ao mesmo tempo possui prerrogativas para proteger e acusar os sujeitos, porém devemos estar atentos para a seletividade do sistema de justiça penal, que tem, na maioria dos casos, o banco dos réus ocupados por pessoas prestas, pobres e marginalizadas.

Dados estatísticos, publicados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública[19], apontam que a maioria dos encarcerados é composta por pessoas de cor/raça negra:

Nos últimos anos, o perfil da população encarcerada não tem se modificado. O que se vê, na realidade, é a intensificação do encarceramento de negros e jovens: 46,4% dos presos têm entre 18 e 29 anos e 67,5% são de cor/raça negra8 . Ao longo dos últimos anos, o percentual da população negra encarcerada tem aumentado. Se em 2011, 60,3% da população encarcerada era negra e 36,6% branca, em 2021, a proporção foi de 67,5% de presos negros para 29,0% de brancos.

No estado de Pernambuco, o perfil da população carcerária não destoa do padrão nacional, havendo um histórico de encarceramento e vítimas de crimes violentos entre jovens negros, do sexo masculino, com pouca escolaridade e baixa renda:

No Brasil e em Pernambuco, as principais vítimas dos homicídios são jovens negros, do sexo masculino, com pouca escolaridade e baixa renda. Entre as mulheres que são vítimas de homicídio, a maioria é também jovem, negra e com baixa escolaridade. Além disso, os homicídios – tanto de homens quanto de mulheres – concentram-se em áreas onde são precárias as condições sociais de existência coletiva e onde a qualidade de vida é acentuadamente degradada. As mulheres que aí residem estão expostas a múltiplas vulnerabilidades, possivelmente encontrando inúmeras dificuldades para evitar ou sair de uma situação de violência doméstica. [20]

Assim, diante do padrão existente para os casos de encarceramento, é evidente que o combate à criminalidade deve começar, de forma preventiva, pela garantia de fruição dos direitos fundamentais por essas pessoas, minimizando os efeitos das desigualdades sociais e, por conseguinte, melhorando as oportunidades para essa parcela da população, o que se revelará como um verdadeiro combate à criminalidade, só que através de uma atuação preventiva, a que, um Ministério Público resolutivo tem muito com o que contribuir, quiçá seja o maior contribuinte.

Por fim, é importante pontuar que não se defende que o simples gozo de todos os direitos fundamentais fará com que seja extinta a criminalidade. O crime como fato social, nos termos propostos por Émile Durkheim (2004), é próprio do homem socialmente organizado, logo, sempre haverá quem transgrida a lei, seja por um ato de ímpeto, de vontade direcionada ou até mesmo de propensão da própria personalidade voltada para o crime. O que se argumenta é que o contexto social em que o indivíduo está inserido pode ser um fator determinante para envolvimento com delitos, tendo o órgão ministerial atribuições que lhe possibilitam interferir nesses contextos sociais e oferecimento de outras oportunidades para manutenção e desenvolvimento pessoal desses indivíduos vulneráveis.

 

  • Resolutividade e garantismo

 

A resolutividade, nos moldes propostos pelo Conselho Nacional do Ministério Público, tão amplamente debatida pelos juristas e demais profissionais do direito, tem uma íntima ligação com o garantismo penal, isto porque, ser garantista significa dizer que o agente estatal proporcionará ao acusado o exercício de seus direitos fundamentais, dentre os quais pode-se destacar o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal[21], logo, ao agir no combate à ilegalidade e à violação de direitos, prevenindo a ocorrência de problemas posteriores e outras consequentes violações, o órgão ministerial resolutivo também é garantista.

O garantismo é inerente ao fiscal da ordem jurídica. Não pode haver um verdadeiro defensor da ordem jurídica posta se este não garantir o exercício de direitos constitucionalmente previstos aos seus titulares. A isto equivaleria dizer que o garantidor violaria os direitos cuja missão é resguardar, sendo um verdadeiro contrassenso.

Há, em verdade, uma deturpação do conceito de garantismo, que é, equivocadamente, empregado por alguns operadores do direito como sinônimo de regalias para pessoas que cometeram crimes e ônus para a sociedade, cujas forças de segurança pública perderiam o poder de atuação no combate à criminalidade por conta de uma proteção desarrazoada ao agente delitivo. Tal construção deturpada sobre o garantismo, tem levado muitos a rotulá-lo como negativo, pelo simples fato de não conhecerem sua essência e se deixarem influenciar por opiniões, por vezes, unicamente midiáticas.

Cléber Masson[22], em uma análise a alguns princípios que norteiam a execução da pena, em que há uma série de direitos fundamentais do apenado dispostos no art. 5º da Constituição da República, cuja proteção também é função do Ministério Público, dispõe da seguinte forma, analisando sob o prisma do garantismo penal:

Há muito tempo o princípio da proporcionalidade, um dos vetores do Direito Penal democrático, vem sendo encarado por uma dupla face. De um lado, representa a proibição do excesso, pois não se pode punir mais do que o necessário para a proteção do bem jurídico (garantismo negativo). Mas, de outro lado, a proporcionalidade revela a proibição da proteção insuficiente de bens jurídicos, pois não se tolera o tratamento penal impotente ou meramente simbólico (garantismo positivo). Há de se buscar um garantismo integral, capaz de atender com equilíbrio tanto as necessidades do acusado como também os reclamos da sociedade. (2019, p. 845).

 

Ferrajoli[23], principal exponente do garantismo, no decorrer de sua obra “Direito e Razão: teoria do garantismo”, analisou o garantismo sob o prisma da igualdade dos direitos fundamentais, baseando-se no valor da pessoa, tolerância e igualdade:

 

O seu primado axiológico, consequentemente, equivale ao primado da pessoa como valor, ou seja, do valor das pessoas, e portanto, de todas as suas específicas e diversas identidades, assim como da variedade e pluralidade dos pontos de vista externos por elas expressos. E sobre tais valores que se baseia a moderna tolerância: a qual consiste no respeito de todas as possíveis identidades pessoais e de todos os relativos pontos de vista, e da qual é um corolário o nosso princípio da inadmissibilidade das normas penais constitutivas. A tolerância pode ser antes definida como a atribuição a cada pessoa do mesmo valor; enquanto a intolerância é o desvalor associado a uma pessoa qualquer em força de sua particular identidade. Inversamente, a esfera do intolerável é identificável, por oposição, com aquela das violações das pessoas por meio das lesões intolerantes de suas personalidades ou identidades.

Valor primário da pessoa e conexo princípio de tolerância formam, a meu ver, os elementos constitutivos do moderno princípio da igualdade jurídica: que é um princípio complexo, o qual inclui as diferenças pessoais e exclui as diferenças sociais. (2006, p.726).

Assim, analisando com um pouco de profundidade o tema, podemos perceber que o garantismo está intimamente ligado à atuação do Ministério Público, visto que este é o fiscal da ordem jurídica, defensor do regime democrático, protetor e garantidor dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

O que não se almeja é aquilo que Cléber Masson chama de “Garantismo Penal Hiperbólico Monocular”, que é, em palavras simples, a proteção exacerbada do acusado em detrimento dos interesses da coletividade. Aqui, como todos os exageros, devem ser rechaçados, pois a colocação de peso em um lado só da balança da justiça causará, inevitavelmente, o desequilíbrio, o que, por via de consequência, ocasionará injustiça. Assim leciona o autor:

A doutrina moderna divide o garantismo penal em monocular e binocular (ou integral). O primeiro preocupa-se unicamente com os interesses do acusado. Em situações extremas, caracterizadas pelo favorecimento exagerado aos anseios do agente, é rotulado como hiperbólico monocular. O segundo (binocular ou integral) volta sua atenção igualmente às pretensões do acusado e da sociedade. (2019, p. 194).

 

Garantir o exercício dos direitos é papel do Ministério Público. Utilizar-se de métodos resolutivos é uma missão, umbilicalmente ligada ao seu papel constitucional, logo, o Ministério Público deve ser, por sua natureza, garantista e resolutivo, impactando diretamente e positivamente nas construções sociais para as futuras gerações.

 

  • A atuação do STJ na proteção aos direitos fundamentais.

Os mesmos operadores do direito que atacam o garantismo, deturpando seus conceitos, criticam alguns posicionamentos do Superior Tribunal de Justiça, principalmente no que diz respeito à obtenção de provas e anulação de processos criminais, em razão de violação de direitos fundamentais do acusado.

Insuflam esses profissionais um sentimento de revolta na população e nos agentes de segurança pública, introduzindo a ideia de que os Magistrados daquela Corte Superior agem contra os interesses sociais; que menosprezam o trabalho diário daqueles que estão na linha de frente, nas ruas cotidianamente.

Tais vozes alegam que o Superior Tribunal de Justiça desconhece a realidade das ruas, por estarem encastelados em seus gabinetes.

Ao analisarmos algumas, das mais recentes decisões do STJ, podemos perceber que, em verdade, aquela corte tem desfeito erros cometidos desde a base, que poderiam ser evitados por uma postura constitucional do Ministério Público, no sentido de, verificada a ilegalidade da obtenção da prova ou qualquer outra violação a direito fundamental, abster-se da acusação fundada em tais provas, requerendo, conforme o caso, novas diligências, zelando pelos direitos indisponíveis do acusado, limitando o abuso de poder dos agentes estatais, e evitando que o acusado, muitas vezes, fique anos privado de liberdade indevidamente, simplesmente porque o fiscal da ordem jurídica encarnou a figura do acusador irracional e esqueceu-se de proteger os direitos inerentes à pessoa humana, fechando os olhos para as irregularidades existentes.

Vejamos:

A expedição de mandado de busca e apreensão de menor não autoriza o ingresso no domicílio e a realização de varredura no local. STJ. 6ª Turma.AgRg no REsp 2.009.839-MG, Rel. Min.Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 9/5/2023 (Info 776)[24].

 

A confissão do réu, por si só, não autoriza a entrada dos policiais em seu domicílio, sendo necessário que a permissão conferida de forma livre e voluntária pelo morador seja registrada pela autoridade policial por escrito ou em áudio e vídeo.
STJ. 5ª Turma.AgRg no AREsp 2.223.319-MS, Rel. Min. Messod Azulay Neto, julgado em 9/5/2023 (Info 778)[25].

 

O fato de policiais, em diligência para intimar testemunha, considerarem suspeita a atitude do irmão desta, por si só, não justifica a dispensa de investigações prévias ou do mandado judicial para ingresso forçado no domicílio.
STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 708400-RS, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 12/12/2022 (Info Especial 10)[26].

 

Mesmo se ausente coação direta e explícita sobre o acusado, as circunstâncias de ele já haver sido preso em flagrante pelo porte da arma de fogo em via pública e estar detido, sozinho – sem a oportunidade de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos -, diante de dois policiais armados, poderiam macular a validade de eventual consentimento para a realização de busca domiciliar, em virtude da existência de um constrangimento ambiental/circunstancial.
STJ. 6ª Turma. HC 762932-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 22/11/2022 (Info 760). [27]

Dos julgados elencados acima, dos inúmeros que poderiam ser aqui citados, é fácil perceber que o STJ corrigiu violações que poderiam ter sido evitadas desde o Juízo de primeiro grau ou, até mesmo, ainda na fase pré-processual, onde o Ministério Público, como titular da Ação Penal Pública, em análise aos elementos de prova, percebida a violação de direitos fundamentais, promove o arquivamento do Inquérito Policial por contaminação das provas obtidas por meio ilícito ou requer diligências, em razão da existência de outros elementos de informação não contaminados, porém insuficientes para formulação da opinio delicti.

Note-se que as decisões do STJ visam coibir violações de domicílio, pesca probatória[28] ou qualquer outro ato que, por violação aos direitos fundamentais do acusado, contaminem o devido processo legal, merendo também aqui reforçar a já abordada seletividade da justiça penal.

Aqui também temos um grande desafio para o Ministério Público na efetivação dos direitos fundamentais, que, assumindo uma postura resolutiva, pode garantir a proteção de direitos indisponíveis do acusado e dos agentes estatais, estes últimos, muitas vezes, exercem suas atividades sem o mínimo de condição.

A atuação ministerial resolutiva preventiva deve buscar condições dignas de trabalho para as polícias, opondo-se à desídia do Estado para com seus agentes, buscando qualificação e constante aperfeiçoamento daqueles que estão na linha de frente, garantindo o aparato técnico necessário para uma atuação policial pautada nos valores constitucionais, evitando riscos desnecessários por parte dos presentantes do Estado, bem como coibindo eventuais excessos cometidos no desempenho das funções.

Assim, incitar os ânimos da população contra o que vem sendo decidido pelo STJ, colocando-o na posição de opositor aos direitos da população, é compactuar com arbitrariedades e negar-se a cumprir o próprio papel, manifestando uma cegueira seletiva, que não enxerga a própria omissão como protetor dos direitos fundamentais, atribuindo a culpa sempre a outrem, inculcando sempre o papel acusador em detrimento do papel protetivo, inerente às funções ministeriais.

 

 

  1. Considerações Finais

 

A Constituição da República de 1988, coroando uma construção histórica de trabalho intenso, reconheceu ao Ministério Público toda a sua importância para o Estado Brasileiro, atribuindo-lhe funções capazes de impulsionar o desenvolvimento e o progresso social, zelando pela proteção ao exercício dos direitos fundamentais de todas as pessoas que estiverem no Brasil, além de atribuir-lhe o mister de coibir os atos atentatórios ao pacto social que ocasionem violação das regras postas.

 

É preciso que os membros da instituição assumam o papel que constitucionalmente lhe foi dado, abrindo mão da visão unicamente punitivista, e, através da presença ministerial no seio social, marcando um Ministério Público que está de portas abertas e próximo ao povo, seja construída uma sociedade livre, justa e solidária, com redução das desigualdade sociais e plena efetivação dos direitos fundamentais.

O desempenho da função ministerial é um verdadeiro sacerdócio, que requer do investido compromisso com a missão assumida, um verdadeiro sentimento republicano, revestido de zelo pela democracia em defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Um Ministério Público presente, garantidor dos direitos humanos, com postura resolutiva e aberto ao diálogo, atende perfeitamente aos termos propostos por nossa Constituição, sendo esta a imagem que se deve ter do órgão, que é um zeloso guardião dos direitos previstos, agindo sempre em prol do progresso coletivo.

 

Referências:

 

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[1] Graduado em Direito pela Faculdade Marista do Recife; pós-graduado em Direito Público pelo ATF-Cursos Jurídicos, com certificação pela Faculdade Maurício de Nassau; Servidor à disposição do MPPE há 14 (catorze) anos; aprovado no Concurso Público para Promotor de Justiça do Estado de Sergipe; nas fases finais do Concurso Público para Promotor de Justiça do Estado do Pará. E-mail: jserafim@mppe.mp.br

[2]SAUWEN FILHO, João Francisco. Ministério Público Brasileiro e o estado democrático de direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p.105.

[3]NASCIMENTO, Felipe Augusto dos Santos. Curso de Direitos Fundamentais– Leme, SP: Mizuno, 2022.

[4]SILVA, Virgílio Afonso da.  Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

[5]LENZA, Pedro. Direito Constitucional. Coleção Esquematizado. 26.ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

[6]SILVA, Luís Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005.

[7]BARRETO, Rafael. Direitos Humanos – 9 ed. – Bahia: Juspodivm, 2019.

[8]Recomendação-CNMP nº 054/2017, art. 1º, §1º. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Recomendacoes/Recomenda%C3%A7%C3%A3o-054.pdf. Acesso em 17 ago. 2023.

[9]Lei nº 8.625/1993.

[10]ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens. São Paulo:.Abril, 1987

[11]CF, art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei.

[12]HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil. Organizado por Richard Tuck. Trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[13]CP, art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime

[14]CF, art. 127, § 1º – São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

[15]MONTESQUIEU. De L’Esprit des Lois. São Paulo: Abril, 1973.

[16]Aqui está, portanto, uma ordem de factos que apresentam características muito especiais: consistem em maneira de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, e dotadas de um poder coercitivo em virtude do qual se lhe impõem. Por conseguinte, não podem confundir-se com fenômenos orgânicos, visto que consistem em representações e ações; nem com os fenômenos psíquicos, que não têm existência senão na consciência individual, e devido a ela. (DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 9ed. Lisboa: Editora Presença, p.39, 2004).

[17]A falta de planejamento fortalece articulações políticas para a liberação de recursos emergenciais alocados em rubricas que deveriam potencializar a riqueza local para a autosustentação comunitária. Mas, em campo, a lógica é perversa. Parece ser calculada para alimentar sistemas que não funcionam, como, Saúde, Educação, Moradia, Segurança. A miséria é alimentada em períodos longos por meio de programas como Bolsa Família e outros mecanismos de combate à fome. Funcionam no curto prazo e, ao longo dos anos, inibem a proatividade e a autosustentação . O plantio diminui, os pastos aumentam, a mata some e o lixo aparece. Além disso, os leitos dos rios ficam cada vez mais invisíveis e o povo, em agonia, faz de conta que vive. (PEIXINHO, Liana. Indústria da seca, poder político e pobreza. 2013. Disponível em: http://www.cienciaecultura.ufba.br/agenciadenoticias/noticias/industria-da-seca-poder-politico-e-pobreza/).

 

[18]Lei nº 7.347/1985

[19]FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/20-anuario-2022-as-820-mil-vidas-sob-a-tutela-do-estado.pdf

[20]PORTELLA, Ana Paula; NASCIMENTO, Marília Gomes do. Impactos de Gênero na Redução da Mortalidade Violenta: Reflexões sobre o Pacto pela Vida em Pernambuco. Revista Brasileira de Segurança Pública. São Paulo v. 8, n. 1, 48-68 Fev/Mar 2014.

[21]CF, art. 5º, LIV, LV.

[22]MASSON, Cleber. Direito Penal – Parte Geral. 13.ed. Rio de Janeiro: Método, 2019.

[23]FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavarez e Luiz Flávio Gomes. 2. ed. São Paulo: RT, 2006.

[24]CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A expedição de mandado de busca e apreensão de menor não autoriza o ingresso no domicílio e a realização de varredura no local. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/2af1e9eaa807096a11b32ed26ecc2cbb>. Acesso em: 17/08/2023

[25]CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A alegação de que houve prévia confissão informal do réu – desacompanhada de qualquer registro em vídeo, áudio ou por escrito – não justifica a busca domiciliar desprovida de mandado judicial. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/1f44ebfabbb703784f12a4e66632e720>. Acesso em: 17/08/2023

[26]CAVALCANTE, Márcio André Lopes. O simples fato de os policiais terem considerado a atitude do morador suspeita não justifica o ingresso forçado no domicílio. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/26fd45817c0a0bb1e951d17fa7df947c>. Acesso em: 17/08/2023

[27]CAVALCANTE, Márcio André Lopes. O simples fato de o acusado ter antecedente por tráfico de drogas não autoriza a realização de busca domiciliar. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/abb451a12cf1a9d93292e81f0d4fdd7a>. Acesso em: 17/08/2023

[28]“Apropriação de meios legais para, sem objetivo traçado, ‘pescar’ qualquer espécie de evidência, tendo ou não relação com o caso concreto. Trata-se de uma investigação especulativa e indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado, que, de forma ampla e genérica, ‘lança’ suas redes com a esperança de ‘pescar’ qualquerprova, para subsidiar uma futura acusação ou para tentar justificar uma ação já iniciada”. (SILVA, Viviani Ghizoni da; MELO E SILVA, Philipe Benoni; MORAISDAROSA. Fishing expedition e encontro fortuito na busca e na apreensão: um dilema oculto do processo penal. 2ª ed. Florianópolis: Emais, 2022, p. 50).