Artigo – Escolaridade e violência

Por Marcos Rolim*

Quem observar os dados a respeito do sistema prisional norte-americano verá linhas demarcatórias muito nítidas quanto ao perfil dos internos. A grande maioria deles é formada por pessoas pobres; negros e latinos são encarcerados em taxas muito superiores aos brancos e poucos concluíram o ensino médio (high school). Nos EUA, as taxas de encarceramento despencam a partir da conclusão do ensino médio. Nas prisões brasileiras, também temos essas linhas demarcatórias, com a diferença de que, no tocante à escolaridade, a grande maioria dos nossos presos não possui o ensino fundamental. Nos EUA, ter concluído o ensino médio é quase o mesmo que escapar das dinâmicas sociais que conduzem ao encarceramento. No Brasil, concluir o ensino fundamental costuma assegurar o mesmo resultado.

O fenômeno pode ser compreendido por duas vertentes: por um lado, é fato que as condições de empregabilidade são mais amplas para pessoas com maior escolaridade. Por outro, também é verdadeiro que jovens com baixa escolaridade vivem uma realidade de marginalização, o que os transforma em um grupo muito mais vigiado e abordado pelas polícias. Assim, uma menor escolarização agrega, entre outros problemas, uma dificuldade importante para a inserção no mercado de trabalho e também uma possibilidade bem maior de estigmatização; ambos fatores criminogênicos por excelência.

Segundo dados do IBGE, 20% dos jovens entre 15 a 29 anos no Brasil estão fora da escola e também do mercado de trabalho. Eles integram a chamada geração “nem nem” (nem estudam, nem trabalham), mas se separamos desse grupo os adolescentes entre 15 e 17 anos, então 56% deles não tem o ensino fundamental completo quando já poderiam ter terminado o ensino médio. No caso brasileiro, há uma melhoria significativa das remunerações para as faixas de maior escolaridade a partir do segundo grau, o que sugere que, entre nós, a conclusão do ensino fundamental e a sequência dos estudos devem produzir efeitos de prevenção ao crime e à violência ainda mais relevantes do que nos EUA.

Minha tese de doutoramento em Sociologia na UFGRS, editada com o título “A Formação de Jovens Violentos, estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016, 385 p), tratou de desvelar as dinâmicas que condicionam a perpetração de crimes especialmente violentos. Após entrevistas em profundidade com jovens que haviam cometido atos infracionais muito graves, incluindo múltiplos homicídios, comparei os dados obtidos com um grupo de colegas de infância indicados por eles e que não haviam se envolvido com o crime. Então, desenvolvi um estudo quantitativo, adaptando o questionário empregado por Hirschi (2001) em seu Estudo sobre a juventude de Richmond (High School Questionnaire, Richmond Youth Study) e a “Escala de Socialização Violenta” (Violent Socialization Scale), que mede a teoria de Athens (1992) criminólogo que encontrou um padrão de violentização na infância de condenados à pena de morte nos EUA. Além dos dois grupos de jovens da parte qualitativa do estudo, apliquei esses instrumentos a presos condenados por crimes com violência e sem violência do Presídio Central de Porto Alegre e a alunos de uma escola da periferia da mesma cidade, o que me ofereceu as respostas de 111 jovens do sexo masculino, em uma mesma faixa etária e condição social, viabilizando o processamento estatístico de uma expressiva quantidade de informações.

Encontrei que a disposição violenta dos jovens está informada, basicamente, pelo “treinamento violento”, confirmando em parte a Teoria da Violentização de Lonnie Athens. Quando analisamos a influência causal (β), vimos que esse processo responde por 54,2% da disposição violenta da amostra. Ou seja, sem essa experiência, o problema seria reduzido a menos da metade. Muito bem, mas o que é o “treinamento violento”? A resposta aponta para uma dinâmica perversa onde os meninos são introduzidos no mundo do crime, por alguém que lhes ensina desde o manuseio das armas de fogo até os valores do grupo criminal. São os jovens que se evadem da escola pública aqueles que estão mais amplamente expostos aos riscos dessa socialização em comunidades menores e ultraviolentas. Em contextos dessa natureza, permanecer mais tempo na escola faz uma diferença enorme e costuma ser a única chance para a ampla maioria.

O que a pesquisa sugere é que o fenômeno específico da violência extrema, ao contrário do que se costuma crer, parece ter pouca relação direta com as famílias dos jovens e mesmo com experiências disruptivas comuns à adolescência. Trata-se de um tipo de violência coletiva que envolve uma identidade grupal. Nas periferias, é comum que uma parte dos jovens do sexo masculino conviva com “instrutores” violentos, um tipo de associação que, obviamente, é favorecida pela negligência, pela ausência paterna e pela falta de estruturas de cuidado, como escolas infantis e clubes juvenis. O “ponto de virada” em direção ao crime e à violência só se afirma como realidade para muitos jovens pobres, entretanto, na exata medida em que a escola pública falha em lhes oferecer perspectiva diversa. Também por conta disso, o fenômeno da evasão escolar deveria ser objeto de especial preocupação no Brasil, demandando políticas públicas específicas e, ao que tudo indica, profundas mudanças na escola.

Referências

ATHENS, Lonnie H. The Creation of Dangerous Violent Criminals. University of Illinois Press.1992.

HIRSCHI, Travis. Causes of Delinquency. New Brunswick (USA) and London (UK). Transactions Publishers, 2001.

* Doutor e mestre em Sociologia, representante da UNESCO no Conselho Administrativo do Centro Internacional para a Promoção dos Direitos Humanos (CIPDH), membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e presidente do Instituto Cidade Segura.

Confira a íntegra desta edição da Revista Dfato no link: https://issuu.com/amppepernambuco/docs/dfato12final.