Artigo – Educação como prática de liberdade

Por Aline Arroxelas de Galvão Lima*

No fim da década de sessenta do século passado, sob forte e direta influência do pós-guerra, o pensador alemão Theodor Adorno defendeu que a humanidade precisaria ter como principal objetivo, se quisesse sobreviver a si mesma, a educação contra a barbárie. Há muita força e significado nessa expressão, especialmente em uma sociedade cada vez mais massificada e indiferente, tristemente acrítica, perigosamente adestrada para a repetição.

Se entendermos educação não apenas em seu sentido formal (escolas, diplomas, títulos), mas como um processo contínuo de desenvolvimento e aperfeiçoamento de capacidades, logo compreendemos que, desde que nascemos e ao longo de todo a nossa vida, vamos nos emancipando pelo aprendizado. A educação, pois – parafraseando Paulo Freire – liberta: permite que, pelo conhecimento, cheguemos à compreensão, e pela compreensão à ação consciente e verdadeiramente transformadora. A educação, é claro, é a principal arma da cidadania.

Mas não é isso que estamos oferecendo às novas gerações brasileiras. A palavra aparece, é verdade, no rol dos direitos sociais do art. 6º da Constituição Federal de 1988, mas reconheçamos: a educação a que esmagadora maioria da população tem acesso, quando tem, não passa disso – uma palavra. O que deveria ser missão de Estado – educar com qualidade para emancipar um povo historicamente miserável – torna-se, quando muito, uma esmola e uma moeda para capital político.

Embora os números mostrem ampliação das taxas de matrícula e frequência escolar, aliadas à condicionalidades de programas sociais, e uma permeabilidade cada vez maior no acesso à educação universitária, a sonhada educação pública de qualidade para os brasileiros ainda parece longe, e é sempre ameaçada. Em vez de avançarmos no debate sobre nossos erros estratégicos, identificando o que tem nos impedido de formar uma juventude verdadeiramente consciente, crítica e voltada à promoção da cidadania, inclusive nos direitos transgeracionais, estamos agora cada vez mais acuados, reféns mansos de uma onda de retrocesso perigosa, desenhada para manter nossos jovens como massa sem opinião, meramente consumidora, presa ao desamparo social, intelectual e político, à barbárie latente.

A lei 12.852 (Estatuto da Juventude), sancionada no calor dos protestos de meados de 2013 – portanto umbilicalmente atrelada à crise política e institucional instalada no país desde então – claramente prestigia a ideia da educação como exercício de liberdade. Basta constatar que em seu art. 2º a lei estabelece para as políticas públicas para a juventude princípios como o de promoção da autonomia e emancipação dos jovens, valorização e promoção da participação social e política, promoção da criatividade e da participação no desenvolvimento do País, respeito à identidade e à diversidade individual e coletiva da juventude, além da promoção da vida segura, da cultura da paz, da solidariedade e da não discriminação. Foi ainda assegurado o acesso à educação, com disposições específicas, aos jovens indígenas, de povos e comunidades tradicionais, aos que não concluíram a educação básica, aos jovens com surdez e com deficiência, aos jovens do campo. Foi garantido aos jovens negros, indígenas e alunos oriundos da escola pública o acesso ao ensino superior nas instituições públicas por meio de políticas afirmativas.

O Estatuto da Criança e do Adolescente há quase trinta anos já previa diretrizes semelhantes, e em seu art. 53 garante que “a criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho”.

A legislação, portanto, garante a educação pelas liberdades e pela promoção da autonomia, respeitada a diversidade de características, de opiniões e de origens dos alunos.

Impossível coadunar, portanto, tais direitos públicos subjetivos, verdadeiras garantias de cidadania, com propostas como as do “projeto escola sem partido” ou de proibição de discussão de gênero nas escolas. Sem a conscientização das barreiras raciais, sexuais, políticas e de classes que permeiam o acesso a todos os direitos no Brasil, inclusive o direito à educação, não só montaremos uma farsa nas escolas e universidades do país, como sabotaremos gerações. Educar sem fomentar a autonomia e o senso crítico responsável não passa de uma promessa vazia, um direito formal desprovido de qualquer conteúdo.

O Ministério Público brasileiro precisa se manter atento a tais e outras tantas ameaças que não cessam de surgir, zelando por sua missão institucional de garantir o regime democrático e o efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição. Garantir a permanência de crianças e adolescentes no ambiente escolar já tem sido tarefa difícil, considerado o desmonte social a que assistimos e a falta de políticas estruturais que permitam a escolarização eficaz, mas não é suficiente. Nosso compromisso está muito além, e os jovens brasileiros precisam, mais do que nunca, de educação pelas liberdades e contra a barbárie.

*A autora deste artigo é Promotora de Justiça do MPPE, atualmente titular da 1ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania de Olinda.

Confira a íntegra desta edição da Revista Dfato no link: https://issuu.com/amppepernambuco/docs/dfato12final.